Novo excerto do livro "O Jazz da Física" de Stephon Alexander, que acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva (na imagem de baixo o desenho da mandala de Coltrane):
"Vou explicar por que razão considero que Coltrane concretizou as ideias da relatividade na sua música.
Uma revelação da sua mandala que discuti com Yusef Lateef fornece‑nos uma pista. Tal como o cone de luz
de Einstein, a mandala de Coltrane era uma estrutura geométrica que unificava relações entre algumas das
principais escalas e mecanismos harmónicos usados no seu repertório. Dado que a prática musical estava
no centro da mestria musical de Coltrane, a mandala poderia ter funcionado como um mecanismo geométrico
que revelava uma imensidão de padrões do universomusical. Assim que percebi isso, comecei a utilizar a
mandala como uma ferramenta para praticar relações de escala entre eles, guiado pelos padrões da mandala.
Na relatividade restrita, o facto de a velocidade da luz ser fixa leva a que outras quantidades sejam distorcidas
para manter a invariância da luz em diferentes quadros de referência. Por exemplo, o comprimento de
um comboio para um observador em movimento irá diminuir em relação ao mesmo comboio em repouso,
visto também por um observador.
Da mesma forma, se fôssemos tocar as mesmas notas, mas em duas tonalidades diferentes, essas notas
idênticas teriam um som diferente. Não só seriam percebidas como diferentes, como, de facto, ocupariam
posições diferentes nessa nova escala. Tocar lá, si, só, na tonalidade de dó, soa como uma sexta, sétima, oitava,
terminando na resolução de uma tónica. Se eu tocar o mesmo conjunto de notas, digamos, na tonalidade de si,
então começam na sétima, passam a tónica e terminam numa segunda menor acima da tónica. Relacionam‑se
de forma completamente distinta com os pontos fixos (oitavas, quintas) da tonalidade em que estão a ser tocadas.
Pensamos que essas notas, como o comprimento de um comboio, são uma coisa fixa e única — é a nota
lá ou a nota si — mas quando tocadas no contexto de uma determinada tonalidade, são diferentes, distorcidas,
devido aos valores fixos da tónica dos intervalos dentro dessa tonalidade. O diagrama de Coltrane é o exemplo
mais elegante desta ideia, onde as relações entre as quintas, o trítono, o tetracorde, são estruturas fixas que
actuam como uma base para relacionar escalas relativas.
À primeira vista, a mandala é intimidante, pelo que, para encontrar a estrutura subjacente, a vamos reduzir a um esqueleto que caracteriza a invariância. E tal como na relatividade restrita, assim que tenhamos a estrutura
invariante, podemos gerar a complexidade na dinâmica a partir de interacções ditadas pela invariância. O
nosso primeiro passo é identificar a invariância, ou a geometria que nos impele a ignorar as notas. Vemos
imediatamente um relógio com cada hora representada por um aglomerado de três notas. Por exemplo, ao
meio‑dia, vemos um aglomerado de três notas (si, dó, dó sustenido) no número um. O aglomerado de três
notas pode ainda ser simplificado se identificarmos cada aglomerado como um ponto. Obtemos agora o mostrador
de um relógio com doze horas, o que se reduz ao ciclo de doze notas da escala de música ocidental.
Há uma outra coisa peculiar no esquema: Coltrane liga cinco notas de dó repetidas dentro de uma estrela
de cinco pontas. O que temos é geometria cíclica no seguinte sentido: se o leitor contar as notas, encontrará
sessenta notas que se repetem ao longo do ciclo. No entanto, incorporado nesse ciclo estão doze notas que
geram cinco notas de dó dentro do ciclo de sessenta notas — a estrela da mandala. A mandala de Coltrane
é, portanto, um ciclo incorporado noutro ciclo.
Quando identificamos todas as notas de dó na estrela de cinco pontas, obtemos o sistema de doze tons
da música ocidental. No entanto, perde‑se informação quando identificamos as cinco notas de dó como uma
nota em dó na mandala. Por informação, quero dizer geometria, ou o objecto de cinco pontas incorporado
no ciclo de sessenta. Se tentasse manter o pentágono no nosso ciclo de doze notas, obtinha uma escala muito
interessante — a escala pentatónica. Somos levados a especular, guiados pela declaração de Coltrane a Amran, que «ele estava a tenta fazer algo semelhante como [reduzir a complexidade em algo simples] na música,
algo que surgisse de fontes naturais, da tradição do
blues e do jazz». É um facto que a escala pentatónica
existe em culturas de todo o mundo e que remonta à
China e à Grécia de há dois mil e quinhentos anos.
A escala é amplamente utilizada em cânticos gregorianos,
espirituais negros (
Nobody Knows the Trouble I’ve
Seen), música escocesa
(Auld Lang Syne), indiana, jazz
standard (
I Got Rhythm, Sweet Georgia Brown) e rock
(Stairway to Heaven). Coltrane andava à procura do
que era universal na música e o lugar de partida era
determinar que aspecto da música era universal a todas
as culturas humanas. Disse também que queria encontrar
música de fontes naturais. Bem, a escala pentatónica
pode ser gerada a partir de cinco quintas perfeitas. De
recordar que a quinta perfeita é naturalmente gerada
como a segunda harmónica na série de Fourier, de modo
que satisfaz a afirmação de Coltrane de «que estava a
tentar fazer algo com origem em fontes naturais».
Mas a maior das provas é o facto de duas das suas
peças mais conhecidas, A
Love Supreme e
Interstellar Space, se basearem na escala pentatónica. Stacy Dillard,
meu amigo e actualmente um dos mais famosos saxofonistas
tenor de Nova Iorque, disse que a escala pentatónica
é o esqueleto da improvisação em jazz. Por outras
palavras, tal como a ideia de invariância de Einstein,
a escala pentatónica é uma base a partir da qual a
complexidade pode desdobrar‑se
numa improvisação de
jazz. Isto não quer dizer que a escala pentatónica seja
a única base, mas levanta sem dúvida algumas dúvidas
sobre a razão pela qual esta escala relativamente simples
possui uma tal potencialidade musical.
A mandala de Coltrane contém também outras relações
baseadas na geometria cíclica. E há ressonâncias
de Schoenberg e Messiaen que utilizaram igualmente
ideias da teoria de conjuntos nas suas composições.
Um dos mecanismos importantes em improvisação de
jazz é a substituição do trítono. O que isto realmente
significa é que na passagem de um acorde para outro, é
possível substituir o acorde subsequente por outro mais
fácil. Discutimos que a progressão 2.o‑5.o‑1.o é uma das
progressões mais comuns no jazz e na música clássica
ocidental. O trítono não é mais do que a simetria de
reflexo no ciclo de doze tons. Então,
na tonalidade de dó, a 5.a é um acorde de sol e o seu
reflexo/trítono para sol é um ré bemol dominante.
Por conseguinte, quando mudamos de sol dominante
para dó, podemos tocar ré bemol dominante em vez
de sol dominante. Isto é fantástico porque o ré bemol
dominante está próximo da 5.a, que é ré. A mandala
de sessenta ciclos de Coltrane reflecte também uma
simetria de reflexão típica do trítono.
O aglomerado de três notas na oval gera admiravelmente
o misterioso tetracorde. Por exemplo, onde
vemos o número um, começamos com a nota dó e
seguimos as quatro notas seguintes no aglomerado de
ovais. Obtemos dó, dó sustenido, mi, fá e fá sustenido,
um tetracorde. Tem sido alegado pelo pianista australiano,
Sean Wayland, que o tetracorde pode ser usado
como mecanismo para tocar através das mudanças
de acordes de Giant Steps. Mas há mais. Note que
Coltrane desenha um quadrado no aglomerado de três
notas. Estas notas são exactamente o ciclo de quintas,
que gera a escala pentatónica. E, finalmente, Coltrane
sublinha uma das escalas mais amplamente usadas — a
escala de tons inteiros, que são as notas que ocupam
o círculo interno e externo. Ou seja, a mandala é uma
espantosa criação geométrica de Coltrane que relaciona
estas importantes escalas gerais, da mesma forma que a
transformação do espaço‑tempo
relaciona a contracção
do comprimento com a dilatação do tempo e os campos
eléctricos com os campos magnéticos.
Este livro não é apenas sobre a analogia entre
música e cosmologia, mas também sobre a importância
do raciocínio musical e do improviso quando trabalhamos
em física. Os físicos teóricos exemplificam a
abordagem de John Coltrane à música. Usamos um
arsenal de ferramentas conceptuais matemáticas que
praticamos através de exemplos elaborados pelos mestres,
como Einstein ou Feynman. Da mesma forma, os
músicos de jazz como Coltrane dominam a tradição
com inúmeras horas de prática. Mas, quer para o físico
teórico quer para o improvisador de jazz, não basta
simplesmente dominar o material do passado; tem de
haver descobertas.
O ser humano é a única criatura que pode descobrir
matemática avançada, e a única criatura que pode criar
e formalizar a música. Se a beleza e a física do Universo,
e a beleza e a física da música, estão ligadas, esses
laços existem exclusivamente nos cérebros humanos.
Neurocientistas como Rick Granger, György Buzsáki e
Ani Patel lutam ainda para compreender o modo como
o cérebro pode experimentar, aprender e recordar, e
planear e prever. Mas até os ratos, os cães, os ursos
conseguem fazer tudo isso. Então, o que distingue os
cérebros humanos? O que nos faz únicos em relação
aos cérebros não humanos: apreciar música e compreen
der matemática? E criar coisas novas debaixo do Sol:
compor, improvisar, descobrir novos factos matemáticos
sobre o Universo?
Alguns músicos, como Coltrane, têm uma capacidade
surpreendente de improvisar, encontrar padrões ocultos
e regularidades subjacentes a formas harmónicas e
usar essa inspiração para gerar tipos completamente
novos de sequências melódicas. E alguns cientistas,
como Einstein, conseguem encontrar regularidades que
escaparam mesmo aos melhores cientistas — como
usar as equações de Maxwell e reduzi‑las
a uma única
formulação unificadora.
Talvez tenhamos todos uma capacidade inerente de
fazer cálculos como Einstein ou de improvisar como
Coltrane. Talvez a sua singularidade resida na capacidade
de levar essas habilidades inatas para além da
normalidade. Assim que a área das neurociências tenha
conseguido captar os fundamentos da percepção e do
pensamento, talvez o próximo passo seja o de compreender
as semelhanças e diferenças entre os nossos
cérebros, e se é necessária uma nova física — para
compreender o que tinham de especial o cérebro de
Coltrane e de Einstein para elevar os seus pensamentos
até essas visões e descobertas. Alguma da investigação
neurológica actual debruça‑se
já sobre estas questões: o
que acontece quando experimentamos as complexidades
da música? Porque é que os cérebros humanos processam
o ambiente de forma tão distinta da dos outros
animais, concedendo‑nos
a matemática, a improvisação
e a linguagem?
Parafraseando o famoso porco de O Triunfo dos Porcos,
aparentemente alguns cérebros humanos são mais
únicos do que outros. Einstein e Coltrane mostraram‑nos coisas que não teríamos descoberto sozinhos. À
medida que compreendemos melhor o nosso cérebro,
em geral e em particular, talvez a neurociência comece
a mostrar‑nos
não só como a forma musical e a forma
física se relacionam, mas como é que nós, únicos entre os
seres físicos, poderemos ver e compreender essa relação.
Talvez as respostas a estas questões exijam avanços
fundamentais no contexto da física, da arte e das neurociências.
As relações profundas entre forma musical
e forma física podem ser reveladas compreendendo
como ambos os tipos de conhecimento — música e
física — surgem ligados nos cérebros humanos e em
mais nenhum outro lugar. Afinal, os cérebros, independentemente
do seu grau de mistério, são as estruturas
mais complexas do Universo.
Um dos pais do cálculo infinitesimal, Gottfried Leibniz,
teve a ideia de que o elemento irredutível do Universo,
o mónada, podia conter a essência do Universo.
Que os cérebros humanos, que surgem e operam sob
as leis da física, possam chegar a compreender as leis
da física, permanece um mistério. Se uma das funções
fundamentais do Universo, como aleguei, é improvisar
a sua estrutura, talvez que quando Coltrane improvisa
ele esteja a fazer o que o Universo faz, e o que o Universo
fez foi criar uma estrutura que viria a conhecer
o próprio Universo."
Stephon Alexander