De quando em vez retoma a discussão na sociedade se a espécie humana se divide em raças. Contudo, desde há décadas que é consensual dentro da comunidade científica, com base do que se conhece de biologia e de genética, que não faz sentido falar-se em raças. Assim se vê que este é um daqueles temas em que o consenso científico ainda não passou para o senso comum da sociedade. Nesta perspectiva, é pertinente a reflexão trazida pelo Miguel Mealha Estrada sobre este tema, que aqui se reproduz.
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Texto de Miguel Mealha Estrada:
Num mar de desinformação científica, o qual inclui a
genética, assistimos cada vez mais à proliferação da iliteracia científica, muita
com intuitos nefastos e com o propósito de consolidar o populismo que cimenta
as políticas extremistas, alimentando os mais vulneráveis com respostas falsas,
não científicas e exponencialmente perigosas.
Historicamente, houve episódios em que a ciência foi
abusada, deturpada e encomendada à medida da ideologia vigente na altura ou da
crença preferencial. Relembremo-nos que no século XIX foi cunhado o termo
Eugenia para designar um conjunto de ideias que ganhava cada
vez mais apoios. A ideia subjacente era de uma ciência que servisse a
humanidade ao retirar do pool genético “raças inferiores”, indivíduos imorais e
com patologias do foro mental e genético.
E a história não para aqui. Ainda mais recentemente, durante
o século XX tivemos cientistas na Alemanha Nazi que escreveram acerca de
“raças” para o benefício da sua crença, nos EUA vários ideólogos apoiavam-se na
ciência para manter a segregação, a escravidão, o colonialismo, e escreviam
contra misturas entre etnias e contra a imigração. Tudo isto com o apoio na
palavra “raça”.
Mas, ideologias à parte, vamos dar uma olhada à realidade
e ver o que nos informa a ciência. Como irão ver, o assunto é extremamente
complexo:
Se olharmos para a história da taxonomia e da sua relação
com o conceito de ‘raça’, entramos num oceano de disparidades pseudocientíficas
(embora tenhamos em conta o rudimentar conhecimento científico de outros tempos,
e por tal temos de dar um desconto). Já no período da ciência europeia moderna,
o botânico e médico iluminista
Carl Linnaeus, mais
conhecido por Lineu, viria a adquirir reconhecimento pelas suas intervenções a
nível económico, social e científico. Mas foi na área da taxonomia (classificação
das espécies com base nas suas características) que ficou globalmente
conhecido: não só reuniu as espécies em grupos (filos e famílias) com base em
características semelhantes, como criou uma nomenclatura binominal em latim
para designar as espécies, permitindo que os naturalistas de qualquer
nacionalidade compreendessem numa só língua qual a espécie que estava a ser
designada. Lineu delineou que reconhecia as diferentes espécies não por raça,
mas muito importante, e no que toca à ciência, por área geográfica: americanos,
europeus, africanos e asiáticos.
Contudo, este método de Linnaeus, embora geograficamente correto,
apresenta o erro fatal de apresentar em termos taxonómicos uma homogeneidade
que
simplesmente não existe
por mera geografia. No entanto, no trabalho de Lineu havia uma sensação de
que a mulher estava a um nível abaixo do homem, herança de uma visão
Aristotélica na qual se baseava.
Contudo ainda nos dias de hoje temos cientistas
que
abusam e deturpam a ciência perante as suas convicções ideológicas e
políticas. Existem cientistas que são aliados à extrema-direita, deturpando a
ciência à medida da sua crença. Mas talvez o pior, sejam os cientistas bem-intencionados
(felizmente cada vez menos), que continuam a usar uma terminologia taxonómica
que sugere o conceito de ‘raças’, pelo único propósito de se referirem a um
grupo, confundindo ainda mais a ciência.
Faz-me lembrar
um
debate na BBC com o então
Nick Griffin líder do BNP
(British National Party), em que disse ao então secretário do Ministério da
Justiça,
Jack Straw, que
defendia que Inglaterra deveria ser constituída pelo povo indígena que lá
habitava desde a idade do gelo. Quando confrontado com a curadora do museu de
História Natural em que lhe disse “mas não habitava cá ninguém na idade do
gelo”, Griffin num ápice mudou a retórica. Disse “perdão, quando o gelo
derreteu”. Parece uma anedota? Mas não é. Existem pessoas que acreditam nesta
alucinação e ainda votam nele.
Mas afinal o conceito de raça existe?
A realidade é que é absolutamente inútil tentar dividir a
nossa espécie
Homo Sapiens em termos de raça. Tem sido
demonstrado
cada vez mais que subdividir a nossa espécie
Homo sapiens em
diferentes unidades raciais, numa análise objetivamente cientifica, é uma
tarefa falaciosa e completamente inútil.
Mas porquê?
Bom, aqui entra a complexidade da coisa.
Sem dúvida nenhuma que ainda existe debate dentro da ciência
não só em relação às diferentes possibilidades de taxonomias entre populações como
também nos métodos científicos para atingir consenso. Isto é saudável, pois
existe a necessidade, para compreender e estudar os nossos ecossistemas e
biodiversidade, de uma linguagem que denomine um certo tipo de conhecimento.
O
Homo sapiens é o recém-chegado da nossa linhagem
evolutiva. Em termos evolutivos, fisicamente as
variações na
nossa espécie são na realidade uma minoria em relação à totalidade do
genoma, e só podem ser compreendidas através do prisma do nosso processo
evolutivo num contexto geográfico.
A variação entre espécies é extremamente crucial para a
sobrevivência e adaptação da nossa espécie. Relembremo-nos que a evolução não
se foca de maneira nenhuma com uma finalidade de atingir uma perfeição,
e nem sempre se
conforma ao fenómeno de adaptação para evoluir como se pensava. Já Charles
Darwin sublinhava que o essencial à evolução é
o conceito de
variação. E porque é a variação numa espécie essencial à sobrevivência e
evolução da mesma? Simplesmente porque a variação consegue oferecer a melhor
solução a algum problema evolutivo. Se há um problema evolutivo, por exemplo, a
nível de doença, se não existisse variação que pudesse oferecer a melhor
resposta a esse problema, o problema ficaria com as ferramentas genéticas que
existissem, muito provavelmente guiando-nos à extinção.
Vamos agora dar uma breve olhada em algumas problemáticas na
replicação do ADN, pois é essencial compreender este aspeto. É precisamente
este aspeto de replicação que é extremamente importante em como atua o conceito
de variação entre espécies e se elimina cientificamente do vocabulário o termo
de ‘raça’.
Vários fatores podem gerar este fenómeno. Vamos ver o exemplo
de
Seleção
Natural: a seleção natural irá dar atenção a uma nova variação, ou mutação,
em
3 sentidos diferentes. Pode ver a mutação como benéfica, em que então irá
ficar em favor (e propagar) essa mesma nova mutação, pode ver essa mesma
mutação como patogénica, e pelos seus mecanismos eliminar essa mesma mutação da
população, ou poderá considerar essa mutação como neutra, à qual não lhe dará
importância.
Na realidade, as pequenas diferenças que se notam no
Homo
Sapiens são fatores adaptativos à área geográfica onde habitam, que
influencia a cor dos olhos, pigmentação da pele, suscetibilidade a certas
doenças, altura entre outros poucos fatores. Mas tais fatores na realidade não
têm praticamente relevância estatística para sequer poder usar o termo ‘raça’
pela seguinte razão: todas essas variações amontam a 0, 1% do genoma comum
humano: sim, independentemente das diferenças mencionadas,
o nosso código
genético é 99,9% comum ao Homo sapiens.
Podemos então concluir que usar o termo ‘subespécies’ servirá
apenas se for de alguma forma útil em termos de referência específica a um
taxonomista.
De resto, como seres humanos, temos a intrínseca necessidade
de classificar o que nos rodeia, muito provavelmente no inicio da linguagem há
uns 100,000 anos atrás. Por tal, a taxonomia tem as suas origens já desde o
inicio da linguagem.
O egocentrismo humano como espécie superior
É interessante termos a noção de como, ao longo da história da
ciência, os cientistas deram como adquirido que eramos os seres superiores do
planeta: o ato divino de Deus na sua criação –
mas, como já vimos anteriormente, só para alguns.
Por um fator de curiosidade vamos dar uma olhada à mais
famosa árvore filogenética feita por
Ernst Haeckel denominada
“Pedigree of Man”:
Baseado no trabalho de Ernst Haeckel, The evolution of man (1896).
Contudo existem erros cruciais
nesta filogenia. Apenas o conceito de uma árvore, pequena com ramificações é um
erro. De uma forma mais científica, teríamos de ter uma floresta filogenética (outros
cientistas preferem a imagem do arbusto) cheia de ramificações, sem um tronco
central ou pilar de referência. Para tal teríamos de recuar milhões de anos.
Mas aqui fica como a ciência via
a estrutura da vida, onde o homem era o ser superior, numa visão enquadrada no
contexto do seu tempo.
Em termos comparativos, ficamos
aqui com uma representação
filogenética viável e
científica da “árvore da vida”, como a compreendemos no presente. Agora
vejam bem, na imagem seguinte, a diferença entre o avanço da ciência e a antiga
ciência evangelista, em que predomina o homem branco:
Erros Antropológicos na Noção
de Divergência Humana
Imaginemos este cenário: estão na
baixa de Lisboa e observam vários turistas a passar, com feições distintas.
Conseguem adivinhar com certeza de onde vêm? A que continente pertencem? As
chances de ficarem incrédulos o quão errados podem estar é altíssima.
Isto quer dizer que a nível
morfológico é extremamente difícil, senão impossível detetar a etnia de um
esqueleto ou por partes ósseas.
O método mais viável
de revelar uma etnia é o crânio, devido a fatores típicos de populações, tais
como cavidade nasal, perímetro cranial, etc.
Contudo, a ciência não é exata.
Vamos ver o exemplo do “
Kennewick
Man”. O esqueleto do Kennewick Man tem cerca de 9000 anos, e foi encontrado
no estado de Washington, EUA em 1996. A análise do esqueleto foi interessante:
quando os peritos forenses estudaram o esqueleto, notaram traços Caucasianos no
mesmo e nenhuma característica nativa americana. Tendo em conta a idade do
esqueleto é no mínimo muito estranho devido à disparidade geográfica das
populações de então. Para acentuar o mistério, na zona do pélvis estava feita uma
acentuação com uma ponta típica dos
Pale indianos exatamente
nesse período. Após uma reconstrução feita por especialistas em modelo real,
usando a tecnologia mais avançada, qual é o espanto em que na realidade o
Kennewick Man se parecia com o ator Britânico
Patrick Stewart, mais
conhecido pelo seu papel como Capitão da nave
USS Enterprise.
Após uns anos, o mistério adensou-se
quando com nova tecnologia, os peritos forenses (e usando a métrica craniana),
concluíram que a aproximação mais viável a uma etnia não era com americanos
nativos ou caucasianos, mas sim com os
Ainu, antigos descendentes
de ilhas do arquipélago do Japão! Portanto: a tarefa de concluir a
identificação de uma etnia através de um crânio é perigosa, pois embora seja
mais viável, mesmo assim está
suscetível a erros
estatísticos.
Por tal os cientistas são muito
cuidadosos em assumir uma etnia em relação à morfologia óssea.
Claro que existiram cientistas
que aproveitaram a onda da medida do crânio para promover as suas crenças hoje
tidas como
pseudocientíficas. Um exemplo é o
cientista do século XIX
Samuel George Norton,
que mediu vários crânios de várias etnias em que ele denominava “diferentes
raças”, com o propósito
de estabelecer uma
correlação entre raça e inteligência. Claro que o passo seguinte foi demonstrar
que indivíduos de etnia ‘branca’ têm um perímetro cranial um pouco maior e por
consequência, maior inteligência. Sabemos hoje que em termos neurobiológicos é
uma falácia,
como
nos demonstra esta meta-análise.
Características tais como
inteligência (situação geográfica, cultural e estatuto social), capacidade
atlética, dieta, cor da pele e morfologia corporal são de uma complexa vastidão
em termos que englobam geografia, adaptação e mutação, como já vimos
anteriormente. Mas absolutamente. E nenhuma destas características serve como
diagnóstico para descrever diferentes grupos no planeta.
Testes de ADN
Então o que nos dizem os testes
de ADN em relação a ‘raça’? Hoje em dia temos à nossa disponibilidade um leque
variado de testes de ADN, maioritariamente dedicados a pessoas que têm
curiosidade em saber as suas ascendências. Mas na realidade, o que é que
realmente esses testes nos informam? Basicamente
informam-nos
acerca do ADN no nosso genoma e, possivelmente, de onde tem origem.
Uma nota importante neste erro
crasso de identificação é que em cada humano o genoma é um
mosaico
de ascendências passadas, o qual
pode
incluir partes de ADN de outras espécies. Inevitavelmente é inviável usar o
genoma para identificar ‘raças’ não existentes dentro da nossa espécie, mas
sim, diferenças e variabilidade. Resumindo, não dão nenhum significado real à
ciência, muito menos em determinar variantes, alelos e adaptações que provêm
das mais variadas condições evolutivas.
As diferenças estão lá, mas são
superficiais. Portanto se o conceito fantasioso de ‘raça’ explica o que quer
que seja acerca do Homo sapiens, a resposta científica é redondamente NÃO!
Conclusão:
A cultura também
exerce um peso em certas diferenciações, contudo, a falta dela, especialmente a
científica, exerce um peso maior, quando a beleza da biologia e ciência cai nas
mãos dos ignorantes, que usam a complexidade da biodiversidade para alimentar crenças
populistas. Mais uma vez, um apelo ao governo para que insista na educação
científica da população, pois a falta dela certamente alimenta o extremismo, a
ignorância, a intolerância e um atalho ao supermercado do pronto-a-pensar.
É desta ignorância que se alimenta a extrema-direita e o
populismo, pois é fácil compreender o mundo com a ignorância. Saber dá mais
trabalho, mas compensa.