terça-feira, 28 de novembro de 2023

O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO

Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York.

Shakespeare, Richard III

Este é o inverno desolado
do nosso fundo desapontamento
e não há sol vindo de nenhum lado,
que nos dê uma sombra de alento.

O mundo está feio e disforme
e os que propõem ser salvadores
desvelam apenas o seu enorme
apetite de infames predadores.

Semeiam palavras enviesadas,
cheias de mentira e de veneno
e bem amaciadas por pomadas.

Tanto faz sarraceno ou nazareno,
é tudo o mesmo pântano obsceno,
com práticas atrozes de checheno.

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

DE UM RAPAZINHO DA MEMÓRIA A UM CIRURGIÃO CARDÍACO COM MEMÓRIAS

Meu posfácio ao livro de Manuel Antunes, "Uma vida com o coração das mãos", que acaba de sair na Gradiva:

Se o leitor chegou até aqui é porque leu este livro. E, se o fez, deve, como eu, estar grato ao autor por ter partilhado connosco as suas memórias de uma vida intensamente vivida em favor dos outros. Há, numa vida, coisas que só o próprio pode contar e que ficariam injustamente ignoradas se não tivessem sido transmitidas.

Uma Vida com o Coração na Mãos, do Professor Doutor Manuel Antunes, nome maior da medicina portuguesa, é um documento imprescindível não apenas para conhecer o seu notável percurso pessoal e profissional, mas também para conhecermos melhor a história do nosso país na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do actual. Fomos – somos – um país de pessoas que, por razões variadas, em grande número se espalharam pelo mundo. Uma pequena parte delas voltou, procurando, dentro das suas possibilidades, melhorar o país, com base nos conhecimentos e na experiência adquiridos lá fora. Todas essas pessoas tiveram percursos singulares e com cada uma delas podemos aprender a ser melhores.

Parecia, em princípio, improvável que um rapazinho nascido de uma família modesta na Memória, um pequeno lugar no extremo interior do município de Leiria, chegasse, aos 40 anos, a Professor Catedrático de Medicina da Universidade de Coimbra e a Director de Serviço de Cirurgia Cardiotorácico dos Hospitais da Universidade. Aos seis anos, com a mãe e um irmão, rumou para Moçambique, onde o pai já estava há quatro anos, e, entrando então na escola, completou toda a escolaridade necessária para se tornar médico. Só depois de terminado o curso se casou com uma jovem curiosamente também da Memória. 

Foi, aos 27 anos, obrigado pelas contingências da história, a transferir-se, com a família, para Joanesburgo, na África do Sul, onde se praticava cirurgia cardíaca da mais alta qualidade (esse país é a terra do famoso Doutor Christiaan Barnard!), e onde pôde, por isso, aprender e praticar o exigente ofício de cirurgião cardíaco. Em boa hora, Coimbra o chamou, pois foi graças a ele que foi montado nessa cidade um moderno Serviço de Cirurgia Cardiotorácica. Se já tinha nome, o Doutor Manuel Antunes ganhou aí renome.

Por azar da minha saúde – uma pneumonia prolongada forçou a uma descorticação da pleura, nada de grave comparado com a situação de alguns pacientes que lá vi – tive, há mais de uma década, de passar por esse Serviço como doente. E posso testemunhar por experiência directa que, bem cedo, se me não falha a memória logo pelas 7h da manhã, o Doutor Manuel Antunes já percorria as camas para se inteirar sobre como estavam os doentes. Um ministro falou de «manuelantunização» e, se isso significa rigor e cuidado, só posso dizer que o referido Serviço estava bem «manuelantunizado». O «estrangeirado» estabeleceu um modelo organizacional num país bastante avesso a organização. Mas nessa organização havia a imprescindível compaixão.

A sua Última Lição, há cinco anos, proporcionou a escrita destas memórias a um cirurgião, que teve nas mãos, com impressionante sucesso, cerca de 50 mil corações. Tendo dedicado toda a sua carreira ao sector público, entre nós no Serviço Nacional de Saúde, o autor continua, aos 75 anos, activo, agora no sector privado, a ajudar quem precisa dos seus serviços, uma actividade a que ele acrescenta outras que considera serem sua obrigação social e moral. Como ele diz, continuará «até que as mãos lhe tremam».

Qual foi o segredo do seu tão bem-sucedido percurso? Julgo que ele reside na assumpção plena da definição de médico que foi feita por um outro cirurgião, este do cérebro, o Doutor João Lobo Antunes, bom amigo dele e meu. O Doutor Manuel Antunes cita uma frase do Doutor João Lobo Antunes que vale a pena repetir aqui:

«Médicos - Médicos - mulheres e homens dedicados e íntegros, imbuídos do sentido do dever e do sacrifício, corajosos na luta, humildes na vitória, inconformados na derrota; devotados à verdade e à excelência intelectual, dotados de sentido de humor e das conveniências, aptos a trabalhar em harmonia com outros – iguais ou diferentes, tudo temperado por uma profunda compaixão (…)»

Como bem disse Rodrigo de Castro, um médico português de origem sefardita que trabalhou em Hamburgo, na Alemanha, no seu livro O Médico Político (1614), um médico não pode ser apenas alguém que sabe medicina. Tem também, e primeiro que tudo, de ser um «homem bom», um homem que se dedica com gosto a ajudar os outros, minorando ou anulando o sofrimento e a angústia que não raras vezes afligem a nossa frágil condição humana. «Dedicação e paixão» tem sido e continuará a ser o lema da vida do Doutor Manuel Antunes.

URBANO NO PAÍS DOS SOVIETES


Meu artigo no último Artes e Letras:

O ano de 2023 foi o ano do centenário de grandes escritores portugueses: por ordem cronológica de nascimento), Eugénio de Andrade, i.e., José Fontinhas (n. Póvoa da Atalaia, Fundão, 19 de Janeiro de 1923), Eduardo Lourenço (São Pedro de Rio Seco, Almeida, 23 de Maio de 1923), Mário Cesariny (n. Lisboa, 9 de Agosto de 1923), Natália Correia (n. Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, 13 de Setembro de 1923) e Urbano Tavares Rodrigues (n. Lisboa, 6 de Dezembro de 2013).

Falemos do último dos “centenários”: Urbano Tavares Rodrigues, falecido há dez anos. A sua longevidade, só batida entre os escritores nascidos no mesmo ano, pela de Eduardo Lourenço, permitiu-lhe deixar uma obra muito vasta. O seu primeiro livro foi o livro de crónicas de viagens Santiago de Compostela (1949) e a última, já póstuma, foi o romance Nenhuma vida (2013). Entre uma e outra escreveu livros de viagens (mais sete), ensaios (25, das quais destaco a tese doutoral Manuel Teixeira Gomes. O sentido do desejo (de 1984, sobre o escritor que foi Presidente da República há cem anos, e que, como Urbano, escreveu sobre o amor, a mulher e o erotismo), 40 romances (destaco dois best-sellers: Bastardos do Sol, de 1959, e Os Insubmissos, de 1961), contos e narrativas (cinco livros), antologias (cinco), crónicas (quatro), teatro (um), e outros (oito). salvo erro ou omissão, dá o total de 97 títulos, um número difícil de superar.

Urbano foi perseguido pelo Estado Novo. Foi obrigado a exilar-se em França, onde foi leitor e assistente nas universidades de Montpellier, Aix-en-Provence e Paris entre 1949 e 1955 (em Paris, onde viveu com a então sua mulher, a escritora Maria Judite de Carvalho, conheceu pessoalmente Louis Aragon, Albert Camus e Marguerite Duras). Só pôde ascender a uma cátedra da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se tinha licenciado em Filologia Românica, depois do 25 de Abril. Membro do Partido Comunista Português, considerava-se um comunista heterodoxo. Descendente de latifundiários alentejanos, doou, em coerência ao seu ideário, a maior parte das terras que herdou a trabalhadores rurais. Porém, ao contrário de outros escritores comunistas, nunca foi neorrealista. Mantendo sempre preocupações sociais, bem visíveis na valorização que fazia da solidariedade humana, cultivou uma literatura intimista, em que o eu estava omnipresente. O amor e a morte foram temas que o obcecaram. Disse, numa entrevista ao JL em 1991, que “boa parte da minha obra é projecção da minha vida, não no sentido biográfico, mas naquele em que espelha preocupações, angústias, esperanças, formas de estar no mundo» e, noutra em 1993, que “a escrita é sempre autobiográfica assim como a biografia não deixa de ser romanesca.”

Como colecciono livros que contam os relatos e impressões de escritores e cientistas das suas viagens ao estrangeiro, fui a essa secção das minhas estantes para procurar um livro muito curioso de Urbano: Viagem à União Soviética e Outras Páginas (Seara Nova, 1973; reedição: Cavalo de Ferro, 2017). Nele conta a sua visita à União Soviética, em 1973, na companhia de Alberto Ferreira (como ele militante comunista, autor de vários livros sobre a cultura portuguesa no século XIX, incluindo Bom Senso e Bom Gosto. Questão Coimbra, 1968) e de Fernando Namora (que nem era comunista nem anticomunista; haveria de publicar as suas impressões dessa viagem no livro URSS Mal Amada, Bem Amada, 1986).  Os três viajaram a convite da União das Associações Soviéticas para a Amizade e Relações Culturais entre os Povos.

Urbano declara-se admirado com o progresso da União Soviética, que ele percorreu em grande extensão. Foram-lhe dadas a conhecer pessoas e obras não apenas das artes e letras, mas também da ciência e tecnologia. Na Sibéria, teve a oportunidade de visitar a central hidroeléctrica de Bratsk, então a segunda maior do mundo. Escreveu: “Creio que só um cretino ou um obcecado, independentemente das suas ideias políticas, poderá ficar insensível ao cântico colectivo desta nova Sibéria. A frase de Lenine, segundo a qual o saber tem de tornar-se parte integrante da existência, é ali uma verdade diariamente vivida. Na Central Hidroeléctrica de Bratsk, a barragem majestosa atinge 127 m de altura e estende-se por mais de 5 km, retendo a pressão do mar artificial de Bratsk, parte do qual pude ver em pleno degelo, numa euforia suave de branco-ausência e de perfumes virgens (...).” Mas, para além das obras de engenharia, apreciou o ambiente humano: “A vivência humanística acompanha, como em toda a URSS, o fantástico avanço científico e técnico, que é simultaneamente o prolongamento e o resultado das profundas transformações sociais.” O escritor, que sofria de enxaquecas, teve uma crise aguda em Tachkent, capital do Uzbequistão, que o obrigou a cuidados dos médicos uzbeques. E recebeu também sugestões de uma companheira de viagem de um voo interno, que lhe recomendou uma pomada oriental para as cefaleias.

Urbano disse mais: “Homem de letras, não deixo de maravilhar-me ante as realizações da ciência e da técnica sobretudo, quando, como nesses arredores de Tachkent, posso (pude) constatar a existência dos tampões verdes que absorvem as poeiras e os gases poluentes. As cortinas de árvores neutralizam a acção deletéria dos gases sulfurosos. O escoamento dos resíduos é igualmente objecto de atenção máxima.” Realcem-se as suas preocupações ecológicas nesses anos de 1970, quando a questão maior não era tanto, como é hoje, a das emissões de dióxido de carbono, mas sim as emissões de substâncias poluentes, venenosas mesmo. O escritor remata: “O primeiro dos dogmas (há alguns) na União Soviética é não envenenar a existência humana.” A União Soviética desfez-se, como é sabido, em 1991, ao fim de uma sucessão de eventos que Urbano acompanhou, com mágoa, em Portugal. Ele, que tinha chegado a simpatizar com Gorbachev, repudiou-o depois.

sábado, 25 de novembro de 2023

CELEBRAR O 25 DE NOVEMBRO ou A FALÁCIA DAS DATAS FRACTURANTES

Por Eugénio Lisboa
 
Vai por aí uma estranha balbúrdia, que é também uma vergonhosa balbúrdia: celebrar ou não celebrar o 25 de Novembro, conjuntamente com o 25 de Abril. A gente democraticamente moderada, que sempre se identificou com o movimento que, em 25 de Novembro, pôs cobro a fantasias totalitárias de vascogonçalvistas inconformados com o advento de uma “democracia burguesa”, mostra-se agora bizarramente desconfortável com a celebração daquele movimento salvífico. 
 
Porque tal celebração é “fracturante”, por outras palavras, pode desagradar ao PCP e ao BE. Quanto ao fracturante, já lá vamos. 
 
Antes disso, quero chamar a atenção para um importante pormenor: o 25 de Abril e o 25 de Novembro significam exactamente a mesma coisa: o 25 de Abril deitou abaixo uma ditadura e o 25 de Novembro impediu que outra ditadura se instalasse, em substituição daquela. Exactamente o mesmo, pelo que se não divisa a razão de celebrar uma e nos encolhermos, envergonhados, perante a outra. 
 
Quanto à data de 25 de Novembro ser “fracturante”, temos conversado: todas, mas todas as datas que assinalamos são ou foram fracturantes. 
Celebrar o 25 de Dezembro é fracturante para os portugueses muçulmanos ou budistas ou simplesmente ateus ou agnósticos; 
o 1.º de Dezembro é fracturante para os portugueses favoráveis à união de Portugal com a Espanha: havia muitos, na altura da Restauração, havia não poucos entre os do tempo da Geração de Setenta e bastantes portugueses haverá ainda hoje favoráveis a tal união, ou, no mínimo, nada preocupados com o advento dela; 
o 5 de Outubro é fracturante, para os monárquicos: há-os por aí e o nosso MNE acolhia, não há muito, um número não insignificante deles (até nunca percebi como, sendo monárquicos, aceitavam representar, no estrangeiro, um Estado republicano);
os feriados de Fátima são fracturantes para os agnósticos, os ateus e os portugueses praticantes de outras religiões. 
Agradecia que me dessem, sendo capazes, uma data celebrativa que não seja fracturante. 
 
O 25 de Abril, a cuja celebração, justamente se não objecta, é também uma data fracturante: os saudosistas do Estado Novo não escondem a sua aversão a essa data. E todos nós sabemos de gente, ao mais alto escalão da hierarquia do Estado, que sempre se recusou a exibir um cravo vermelho na data da Revolução dos cravos.
 
Portanto, invocar o carácter fracturante do 25 de Novembro é apenas uma vergonhosa cobardia de quem se assusta com o sruru que venham a fazer os suspeitos do costume. Para os quais, de resto, o 25 de Abril que gostam de celebrar, não é o mesmo 25 de Abril que assinalam os outros portugueses… 
 
Fractura? Por amor de todos os deuses do Olimpo: arranjem outra desculpa! 
 
Não celebrar o 25 de Novembro corresponderá a uma grande maioria de portugueses ajoelharem perante uma minoria recalcitrante e conhecidamente pouco amiga da liberdade de pensamento. Não vejo um Mário Soares a ceder desta maneira! 
 
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

OS PROTOCOLOS DA GUERRA

Os ademanes bizarros da guerra:
a troca de reféns com prisioneiros,
um cessar fogo, que não é pós-guerra,
interregnos curtos e traiçoeiros.

Na guerra mente-se como quem jura,
estupram-se com ardor os vocábulos,
solene proclamação logo augura
destruição de hospitais e estábulos.

A guerra é o cúmulo dos absurdos,
porque é um jogo em que todos perdem:
perdem os turcos e perdem os curdos

e tudo o que fizeram desfazem.
Fazer, desfazer, jogo de patetas,
levados ao açougue por profetas…

Eugénio Lisboa

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

Por A. Galopim de Carvalho

Estamos a viver um tempo altamente preocupante, não só a nível internacional, como cá dentro deste “torrão” de iliteracia de quase tudo, mercê de um sistema educativo que deu e dá diplomas, mas não deu nem dá esse tudo que tanta falta nos faz. 

O poder do feiticeiro reside da ignorância dos seus irmãos tribais. Quer isto dizer que, quanto mais inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder. 

Tornámo-nos um país caído nas lutas entre aparelhos partidários, onde emergem políticos incompetentes e oportunistas, de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

Ao aproximar-se a data de comemorarmos os 50 anos de liberdade (apenas a de expressão, reunião, criação de partidos, associações e coisas assim) é com um sentimento de profunda decepção que me dou conta deste grande número de anos desaproveitados. É por demais evidente que não soubemos aproveitar a liberdade que nos foi oferecida, para erradicarmos muitos dos nossos atavismos civilizacionais e culturais. “O que é preciso é ter bons padrinhos”. “O gajo é que foi esperto, amanhou-se. Entrou de mãos a abanar e hoje anda de Mercedes”. “Estudar para quê? O que interessa é esperteza p’ró o negócio”. “São 230 euros, mas se for sem recibo, a gente fecha os olhos e só pagas 180”. “Quanto mais cedo vier a reforma, melhor”. Estas e outras frases e atitudes do desenrascanço, do enganar o Estado ou o patrão, ainda perduram em muitos dos nossos compatriotas.

Como já escrevi tantas vezes e volto a escrever a generalidade da classe política a quem os Capitães de Abril, há quase 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas partidárias, nos compadrios e nas vantagens do poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional, científica e humanística. Esqueceu-se? Ou entendeu que havia outras prioridades?

É evidente que a revolução iniciada com o 25 de Abril de 1974 nos trouxe grandes progressos materiais e sociais, por demais apontados, mas muito aquém do que poderia ter sido se as competências e as vontades tivessem sido outras. Mas pouco ou nada mudámos nas mentalidades. Vimos um vislumbre de um real propósito de elevação do nível cultural e cívico dos portugueses no fugaz e efémero programa da 5.ª Divisão de Estado-Maior-General das Forças Armadas, chefiada pelo saudoso primeiro-tenente médico Ramiro Correia, mas não vimos nada que se lhe comparasse em nenhum dos governos constitucionais destes cinquenta anos de democracia. Fez-nos falta a honestidade, o pensamento e a vontade de servir de Melo Antunes, o “capitão de Abril” que nos deixou cedo demais.

À semelhança do sempre esquecido mundo rural, as nossas cidades têm, ainda, uma lamentável percentagem de analfabetos funcionais, a par de uma classe média a que a escola não deu a educação, a formação e a preparação essenciais a uma cidadania plena, antes. Uma escola que, desde há muito, por falta de visão política, atravessa uma crise, sem solução à vista, As conquistas na segurança social, nos cuidados de saúde, na ciência, no ensino e no apoio à cultura conseguidas na vivência em democracia que se seguiu à Revolução dos Cravos, estão a fugir da nossa vida colectiva como areia por entre os dedos. Só a justiça se mantém intacta no seu pedestal. 

Perdemos uma parte significativa da independência nacional e assistimos à asfixia e destruição de muitas das nossas valências económicas. Estamos a viver tempos de miséria e, até, de fome para um número cada vez maior de famílias, de miserável abandono dos idosos, de corrupção descarada e impune e de aumento do número e da riqueza dos ricos. A chamada classe média está a afundar-se, o desemprego está a ressurgir e é mais um incentivo crescente à igualmente dramática emigração de uma juventude qualificada. 

Tudo isto e mais alguma coisa foi sabiamente previsto por Natália Correia (1923-1993), grande portuguesa, que deixou nome na poesia e na política (deputada à Assembleia da República entre 1980 e 1991). Estou muito longe de ter lido a obra desta saudosa açoriana de São Miguel, mas o que li, em especial, poesia, sempre me mostrou, pela excelência do conteúdo e da forma, a mulher com quem tive o privilégio de conviver nos últimos anos da sua vida. Quando a procurei, em começos da década de 90 eu era um profissional, a tempo inteiro, com 30 anos de dedicação exclusiva a uma ciência demasiado terra-a-terra - a geologia - em busca de um outro caminho que tinha o dela e de muitos outros mestres da palavra, por modelo. Prenderam-me a esta lutadora a intransigência com que defendia a liberdade, a solidariedade, a justiça e a cultura, o desassombro, a elevação e a beleza, a força e a energia, que usou na palavra falada e escrita, características que sempre igualei às do também grande e saudoso Ary dos Santos. 

Apraz-me aqui e agora transcrever, pelo que têm de impressionante realismo, algumas premonições desta grande Senhora, trazidas a público por Fernando Dacosta em “O Botequim da Liberdade” (Casa das Letras, 2013). "Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente". “O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida”. "Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. 

Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a pôr gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão". "As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo”. “Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres”. 

A. Galopim de Carvalho

terça-feira, 21 de novembro de 2023

NOVIDADES DA GRADIVA

 EU VI UMA FLOR SELVAGEM, O HERBÀRIO DE UM ASTROFÌSICO  Hubert Reeves


Vi uma flor selvagem.
Quando aprendi o seu nome,
achei-a mais bela.

 
Haiku japonês


Em Eu vi uma flor selvagem – o herbário do astrofísico, Hubert Reeves apresenta-nos as flores que observou diariamente durante os seus passeios pelos bosques de Malicorne, em França. Flores do campo que podemos facilmente encontrar durante os nossos passeios - mesmo na cidade. Para cada uma delas o autor revela uma história, uma memória, um facto improvável quiçá desconhecido do leitor. Uma viagem deslumbrante ao reino das flores selvagens através da voz singular do «poeta das estrelas».

UMA VIDA COM O CORAÇÃO NAS MÃOS, Manuel Antunes

Fundador do serviço de cirurgia cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra, defensor convicto do Serviço Nacional de Saúde, no qual desenvolveu a sua carreira, e um dos mais notáveis cirurgiões portugueses, Manuel Antunes operou cerca de 35 mil corações. Um percurso singular dedicado aos doentes e às causas em que acredita. Este é um livro sobre o médico, o cidadão, a pessoa, cuja vida tem sido marcada pela frontalidade, a dedicação e a paixão consagrada ao serviço dos outros.

Uma Vida com o Coração nas Mãos marcada pela frontalidade, a dedicação e a paixão que continua a consagrar, agora no sector privado, ao serviço dos outros.

OS PORTUGUESES NO JAPÂO, Luís Filipe Thomaz

Os encontros entre os portugueses e os japoneses no século XVI tiveram um papel marcante na história do Japão. Além das relações comerciais e da difusão do cristianismo, os portugueses proporcionaram um primeiro contacto com uma cultura diferente e com o Outro, face ao qual a identidade japonesa começou a ganhar forma.

Fotografias e reproduções de documentos de época acompanham o texto rigoroso e documentado de Luís Filipe Thomaz, num livro que narra este primeiro encontro entre duas culturas assinalando afinal o momento que abriria definitivamente ao Japão as portas da modernidade.

OS TAIS MISTERIOSOS CAMINHOS DE DEUS

Como há de um deus preocupar-se
com a morte de cinco mil crianças
palestinianas, sem inquietar-se
com milhões de mortos, noutras matanças?

Seria um bem bizantino deus,
preocupado, sei lá, só com um,
e distraído de tantos hebreus
trucidados quase sempre em jejum.

Haverá sentido em tudo isto?
O que será uma guerra cirúrgica?
Não haverá hipocrisia nisto?

Será toda esta trampa litúrgica?
Que significam os livros sagrados?
E vale a pena serem decifrados?

Eugénio Lisboa

NOVO ATLANTIS

A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à informação.

Imprensa da Universidade de Coimbra

Atlantís - review, v. 54 (2023) https://impactum-journals.uc.pt/atlantis/index
Sumário

-------------------------------

[Recensão a] ORTEGA VILLARRO, Begoña y AMADO RODRÍGUEZ, María Teresa, Antología Palatina. Libros XIII, XIV, XV (Epigramas variados). Introducción, edición y traducción. Colección Alma Mater, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2021. XLIX+310 pp. ISBN: 978-84-00-10888-5 (hardback); 978-84-00-10889-2 (e-book)

Carlos Martins de Jesus

[Recensão a] ATHANASSAKI, Lucia & TITCHENER, Frances (Eds.), Plutarch’s Cities, Oxford, University Press, 2022. Pp. xx + 378. ISBN: 978-0-19- 285991-4

Vicente Ramón & Fabio Tanga

[Recensão a] KAKLAMANOU, Eleni; PAVLOU, Maria & TSAKMAKIS, Antonis (eds.), Framing the Dialogues. How to Read Openings and Closures in Plato, Leiden-Boston, Brill, 2021. xii, 318 pp. ISBN: 978-90-04-44398-3

Anna Motta

[Recensão a] ANDRÉ, João Maria, Renascimento e modernidade: releituras filosóficas, Coimbra, Grácio Editor, 2022. 237 pp. ISBN: 978 -989 -534-48-3

Klédson Tiago Alves de Souza

Aliete Cunha-Oliveira - As Doenças Venéreas do Passado ao Presente

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

NEM INOVADORES NEM DIVERSOS. UMA ANÁLISE DOS MÉTODOS PEDAGÓGICOS EMERGENTES

Manuel Montanero Fernández, professor de Ciências da Educação, estará, pela sua formação (licenciatura em Psicologia e em Ciências da Educação e doutoramento em Pedagogia), especialmente habilitado para analisar os efeitos, na aprendizagem, dos múltiplos métodos pedagógicos que, em tempos mais recentes, têm sido apresentados como "emergentes". Num estudo de 2019, que só agora li, detêm-se num conjunto apreciável de métodos que cabem nessa designação, organiza-os em categorias, descreve-os e interpreta-os. A sua conclusão é a que apresento de seguida, tendo nela incluído alguns elementos interpretativos.

Os princípios de ensino que sustentam a inovação didática tal como afirmada neste século são basicamente os mesmos que inspiraram os métodos clássicos, propostos, há mais de um século, como alternativas à educação designada por tradicional.
 
Portanto, os métodos emergentes têm menos elementos inovadores do que se faz crer na sua apresentação, sobretudo a que acontece nos meios de comunicação social. Pode dizer-se que retomam ideias pedagógicas do século passado, mas adornadas com as atraentes roupagens das neurociências e das tecnologias da informação e da comunicação.
 
Recorrendo, em diversos momentos, à "teoria da carga cognitiva", formulada por Kirschner e colaboradores em 2006, Montanero explica, com base numa extensa e relevante bibliografia, que essas metodologias pelo facto de recusarem a "instrução directa", alegando que ela é tradicional e centrada no professor, tendem a sobrecarregar a memória de trabalho dos alunos, dificultando-lhes o acesso a recursos cognitivos capazes de lhes permitir chegar a processos de raciocínio complexo, sobretudo à crítica e à criatividade, que tanto invocam. 
 
Ora, para os alunos chegarem a estes processos, é preciso que o professor lhes preste a "ajuda" necessária e suficiente, proporcionando-lhes tarefas sequenciadas por ordem de aprendizagem, que orienta de perto; tarefas que os alunos não conseguiriam realizar por si mesmos. 
 
É, na verdade, arriscado pensar que, para a maioria dos alunos, as tecnologias da informação e da comunicação aliadas aos diversos modos de aprendizagem por pares, por descoberta, cooperativa, imersiva, gamificada, por projectos, de resolução de problemas, investigativa, etc., podem, mesmo com a ajuda pontual dos professores, resolver as normais dificuldades de aprender o que a escola deve ensinar.
 
Parece, pois, razoável não descuidar a instrução direta, guiada pelo professor, pelo facto de ela proporcionar conhecimento de tipo declarativo e procedimental, ambos essenciais para que os alunos reorganizem o seu pensamento, chegando, desejavelmente, ao conhecimento meta-cognitivo, ou seja, ao conhecimento que permite pensar sobre o conhecimento adquirido e, eventualmente, ir além dele.
 
Situando-nos no domínio cognitivo do desenvolvimento humano (deixando aqui de lado os domínios afectivo e motor, que a educação escolar contemplará em pé de igualdade), a instrução directa, adequada sobretudo nos primeiros estágios de um determinado processo pedagógico, deverá estimular não só a capacidade de aquisição de conhecimento mas outras capacidades, como a compreensão, a aplicação, a análise e a síntese... E também capacidades de topo como a avaliação, a crítica, a criatividade. 
 
Assim, a instrução direta, como modo de ensino-aprendizagem, não é incompatível com muitos dos modos ditos "inovadores". Assentando estes em conhecimento relevante e inscrevendo-se no propósito de desenvolvimento da inteligência, dão-lhe continuidade, conduzem os alunos à concretização de capacidades superiores, actuando com orientações pontual do professor ou por sim mesmos.
 
Isto significa que a instrução directa, orientada pelo professor, prepara os alunos para se tornarem autónomos no quadro de cada processo pedagógico. Como Vigostsky disse: o aluno faz agora com a ajuda do professor, o que no futuro fará sozinho.
 
Ainda que este raciocínio faça sentido à luz do saber disponível, Montanero adverte-nos para o seguinte: a pressão imposta aos professores para levarem os seus alunos a alcançarem bons resultados em provas de avaliação externa (que tendem a contemplar áreas restritas de aprendizagem e apenas algumas capacidades) revela-se de difícil compatibilização com o tempo que é preciso à exploração, cooperação, à formação da consciência.
 
Assim, se por um lado, se lhes transmite a necessidade e a urgência de deixar de lado a instrução directa e adoptar modos de ensino "inovadores", por outro lado, retira-se-lhes o tempo e o contexto que eles implicam. Resulta daqui a insistência numa falsa dicotomia e a criação de uma impossibilidade.
 
O autor do artigo nota ainda a insuficiência da investigação objectiva e desapaixonada acerca de muitos dos "métodos. emergentes". Os estudos sérios que os comparam com a instrução direta tendem a focar-se nos efeitos imediatos em termos da aquisição do conteúdo de aprendizagem, o que poderá explicar algumas das desvantagens que lhe são atribuídas. Se, como acima disse, tais métodos apelam a esse conteúdo para os alunos pensarem sobre ele se exprimirem a partir dele, as capacidades que requerem não são propriamente fáceis de avaliar e muito menos o são a curto prazo.
_________________________
Referência do artigo: Montanero Fernández, M. (2019). Métodos pedagógicos emergentes para un nuevo siglo ¿Qué hay realmente de innovación?. Teoría de la Educación. Revista Interuniversitaria, 31(1), 5–34. https://doi.org/10.14201/teri.19758

domingo, 19 de novembro de 2023

CÂNTICO NEGRO

Estou-me marimbando para os burros,
para os que querem salvar o mundo,
com as ideologias aos urros
e um programa francamente imundo.

Os que matam as pessoas à fome,
recorrendo a uma pseudociência,
grata a um chefe com aço no nome,
que confunde ciência com demência.

Borrifo-me para o socialismo dito,
comicamente, científico,
mas não passando de novo czarismo!

Que se lixe o Timoneiro Magnífico
e os sabujos de merda que o lambem
e, agachados, à sua ordem, latem.
Eugénio Lisboa

NOTA: Não vão os idiotas de serviço acusar-me de plágio, vejo-me forçado a lembrar que CÂNTICO NEGRO é o título de um poema célebre, de José Régio, a que este meu soneto presta tardia e humilde homenagem. E, agora, é fartar, destemidos Anónimos, sempre atentos aos desvios burgueses… A saudade que tendes de julgamentos sumários e sem direito a recurso!

O QUE É A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?

Primeira parte do meu capítulo do livro "Inteligência Artificial e Cultura", que acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva, e que é o registo de um debate realizado em 12 de Maio de 2023 em Lisboa pela Sociedade Portuguesa de Autores, com a participação de Daniel Innerarity, Patricia Akester, José Barata-Moura, José Pacheco-Pereira, Pedro Abrunhosa e Javier Gutiérrez Vicén:

Depois desta espantosa exibição de inteligência natural por parte do José Barata‑Moura, o que é que eu posso dizer sobre a outra, a IA - Inteligência Artificial? Parece que há aprendizagem por máquinas, mas também há a aprendizagem por humanos, que foi o que se passou hoje comigo, como «pupilo do senhor Reitor». 

Na Universidade de Coimbra normalmente o reitor fala por último, de modo que eu vou dizer umas coisas e depois o senhor reitor terá a possibilidade de ter a última palavra. Vou então apresentar algumas reflexões sobre IA e, mais em geral, sobre a ciência e o futuro. Começo por vos dizer algo que me parece óbvio: não podendo escolher o momento em que nascemos, vivemos hoje numa época da história absolutamente revolucionária. Se me tivessem dado a escolher, eu teria escolhido ou nascer agora ou na época de Gutenberg, quando começou a Idade Moderna. Em ambas houve uma «explosão» do acesso à informação. 

Enfim, o José Barata‑Moura uantes de mim, mas todos temos beneficiado de um artefacto que os físicos criaram em 1947, logo após a Segunda Guerra Mundial,  o transístor. O primeiro tinha apenas três centímetros de comprimento e hoje, com os mesmos três centímetros existe uma peça, a CPU — Central Processing Unit, contendo milhares de milhões de transístores no interior dessa geringonça — vou chamar‑lhe assim, sem qualquer intenção pejorativa — que é um computador portátil.

Foi o processo de encolhimento dos transístores e o seu consequente maior empacotamento que mudou o mundo nas últimas décadas. O mundo deixou de ser aquela coisa antiquada que era, para ser a coisa moderna que está à vista. Foram os físicos John Bardeen, William Shockley e Walter Brattain, a trabalhar na Bell Labs, que merecidamente ganharam o Prémio Nobel em 1956, ano em que nasci, por causa dessa invenção. O José Barata‑Moura já tinha nascido pouco depois do primeiro transístor e, por isso, talvez se lembre melhor do que eu dos primeiros rádios transístores no início dos anos de 1960.

Há pouco tempo morreu o cientista e empresário norte‑americano Gordon Moore, que ajudou a mudar o mundo fomentando a proliferação de transístores. Em 1965, quando estava à frente da divisão de investigação de uma empresa da Califórnia que fazia circuitos integrados, isto é, placas electrónicas contendo numerosos transístores — toda a história da informática se pode resumir ao fabrico de transístores cada vez mais pequenos — teve a visão de poder fazer muito mais com um computador do mesmo tamanho. 

Ele é o autor da chamada «lei de Moore»: em 1965 previu, com base nos poucos dados então disponíveis, que de dois em dois anos o poder de cálculo dos computadores ia passar praticamente para o dobro. Esta é uma lei exponencial, uma coisa assombrosa que nunca antes se tinha visto: o dobro em dois anos; depois o dobro do dois, que é quatro; depois o dobro de quatro, que é oito; a seguir, o dobro de oito, que é 16, etc. 

O certo é que a previsão se revelou certeira. De facto, Moore ajudou a que assim fosse, pois esteve durante largos anos à frente da empresa que ele próprio fundou, que é a maior empresa americana de fabrico de transístores, a Intel: foi um profeta que fez o que pôde para cumprir a sua profecia. Num gráfico em que o eixo vertical são sucessivas potências, o crescimento do poder de cálculo dos computadores traduz‑se por uma linha recta. Temos vivido num tempo de aceleração tecnológica. Os computadores, que antes de haver transístores eram uns equipamentos «monstruosos», feitos de válvulas electrónicas, passaram a ser muito pequenos, cabendo hoje no nosso bolso. 

Eu lembro‑me de comprar o que deve ter sido o primeiro computador pessoal na Universidade de Coimbra, pouco depois de eles aparecerem no mercado: foi um Olivetti M24, no ano  de 1983, que tinha por CPU o Intel 8086 (por isso dizia‑se «IBM‑PC compatível »; o primeiro computador pessoal de massas foi o IBM‑PC, lançado em 1981, que usava o Intel 8088),  com 128 kB de memória RAM, um disco duro de 20 MB e um drive de disquetes de 5,25". Lembro‑me também de ter comprado por essa altura o meu primeiro computador pessoal, um Apple IIc. Rapidamente ficaram obsoletos, dada a prodigiosa evolução tecnológica. Lembro‑me, como muitos se lembrarão, que esses computadores funcionavam isolados: só no início dos anos de 1990 os computadores começarem a «falar» uns com os outros  em redes informáticas pós a invenção da www — World Wide Web.

Mais uma vez foi uma criação dos físicos: os investigadores dao CERN - Organização Europeia de Investigação Nuclear, em Genebra, na Suíça, que, querendo partilhar ficheiros, a fim de optimizar o seu trabalho colaborativo sobre problemas fundamentais da física, puseram os seus computadores a comunicar uns com os outros. O que fizeram foi dado ao mundo todo. Ninguém podia na altura adivinhar, eles pelo menos não adivinharam, que o mundo ia mudar: na sequência da www veio a Google, a Amazon, o Tinder, e todas essas coisas que hoje nos entusiasmam, a uns evidentemente mais do que a outros. O Google não era mais e não é mais do que uma espécie de «páginas amarelas» que nos ajuda a procurar uma informação na gigantesca rede que cobre o globo. 

Hoje dispomos de supercomputadores que, de facto, são assombrosos: o poder económico e político está em quem tem mais poder de cálculo. Por exemplo, o maior supercomputador do mundo está nos EUA, é o Frontier, em Oak Ridge, Tennessee. O segundo está no Japão, o terceiro na Finlândia, mas deve notar‑se que o sexto é o primeiro chinês de um conjunto de 173 na lista dos Top 500: os chineses têm mais supercomputadores nessa lista do que os norte‑americanos (126), o que significa uma supremacia científica e tecnológica, na qual procuram basear a supremacia económica e política. O eixo do mundo científico‑tecnológico está a virar para o lado da Ásia. 

No final da Segunda Guerra Mundial, o mais poderoso computador do mundo era norte‑americano: o ENIAC conseguia 5000 = 5 × 10^3 flops (o flop significa operações por segundo). A «programação» era feita por umas senhoras que mudavam fios de um sítio para outro, como as antigas operadoras telefónicas. Agora, o Frontier consegue 10^18 flops, um seguido de 18 zeros. O processo não parou. Amanhã vamos ter computadores ainda mais potentes do que hoje. 

Foi este impressionante desenvolvimento tecnológico que permitiu a IA. O objectivo da IA, como o próprio nome indica, é construir sistemas que exibam comportamentos inteligentes. A questão é saber o que é a inteligência. Nós somos inteligentes, uns mais do que outros... Atribuímos ao Homo sapiens uma capacidade a que chamamos inteligência e os sistemas informáticos conseguem imitar algumas das capacidades dos seres humanos. Nalgumas delas a IA bate‑nos sem apelo nem agravo. Com o progresso da IA estamos também a compreender melhor o que significa a inteligência e, portanto, a obedecer ao imperativo grego «conhece‑te a ti mesmo», que estava inscrito no templo de Apolo, em Delfos.

Queria acentuar que a IA, o ramo das ciências da computação que estuda a inteligência das máquinas, não vem aí, está cá há algum tempo. Só para dar alguns exemplos, quando usamos o motor de busca da Google, está a ser utilizada IA porque o sistema sabe quem sou e onde estou, de modo que vai adaptar a sua resposta àquilo que ele julga que, com base no meu histórico, são os meus interesses e necessidades. Quando vamos à Netflix ou ao YouTube, não há propriamente um catálogo para escolher os filmes ou vídeos, mas há uma montra com aquilo que o sistema da empresa entende que são os nossos interesses e necessidades. Quando vamos à Amazon a mesma coisa: aquela empresa sabe espantosamente aquilo que me interessa, até porque se lembra melhor do que eu dos livros que eu comprei há dez ou mais anos. Eu fico satisfeito quando a Amazon me propõe rapidamente algumas obras que me interessam e compro‑as: o sistema de oferta funciona muito bem. A IA ajuda‑nos quando fazemos traduções no Google ou no DeepL, que actualmente fazem traduções muito razoáveis. Quando usamos filtros para eliminar lixo no correio electrónico (vulgo SPAM), são sistemas de IA que nos facilitam a vida: eu recebo muito lixo, mas podia ser mais se não houvesse esses filtros. Portanto, a IA existe, está aí, não é uma coisa que aí vem. 

Faço notar que, na IA, o ser humano é sempre a referência. Há uma coisa nova, mas nós somos o modelo de IA. Em 1950, um matemático inglês, Alan Turing, disse que, para ser chamada inteligente, uma máquina tem de dar respostas indistinguíveis das de um ser humano. A pergunta dele foi: «Existirão computadores digitais que funcionem bem neste jogo de imitação?» Turing falou em «imitação», o que significa que não interessa a essência, mas sim a semelhança. Jogo da Imitação é aliás o título de um filme sobre a vida de Turing. 

O que é a inteligência? É a capacidade que temos de interagir com o mundo (falar, ver, mover‑nos, manipular objectos, etc., portanto o que estou neste momento aqui a fazer), a capacidade de modelar o mundo e de raciocinar sobre ele (fazemos continuamente representações do mundo e projecções baseadas nelas), e a habilidade para aprender e adaptar‑se (significa que darei respostas diferentes conforme a minha experiência; se eu tiver aprendido, reagirei de maneira diferente, um processo que se desenvolve na escola, a instituição que inventámos para preparar para a vida).

O termo IA surgiu, em 1956, quando um matemático norte‑americano, John McCarthy, organizou um workshop no Dartmouth College, em New Hampshire, para averiguar melhor como é que as máquinas poderiam imitar os humanos (o proponente usou o termo «simular» a inteligência humana). Estiveram lá nomes importantes como Marvin Minsky, Claude Shannon e Herbert Simon, que foi depois Nobel da Economia. Passados três anos, em 1959, aplicando aquelas ideias, um engenheiro norte‑americano, Arthur Samuel, introduziu a palavra machine learning, aprendizagem automática, tendo criado para a demonstrar um programa de computador que jogava — e bem! — o jogo de damas, um jogo relativamente simples. Antes só os humanos jogavam. A partir de então os computadores, feitos por humanos, passaram também a jogar: a IA começou por replicar aquilo que nós fazemos. 

Todos nós possuímos um cérebro, que o cérebro é feito de unidades, células chamadas neurónios, com muitas ligações. As neurociências estudam o sistema nervoso, em particular o cérebro, com os seus neurónios, ligados por sinapses. É uma colecção de células que permite o pensamento e a acção. Alguns dos primeiros modelos de IA, que remontam aos anos de 1940, foram feitos exactamente para imitar o conjunto de neurónios, pelo que se chamaram «redes neuronais». De facto, muitas máquinas que hoje dispomos dotadas  de IA têm por base essa ideia de redes neuronais. Numa rede neuronal, existem camadas de unidades de processamento que se ligam a outras e em cada camada vai‑se depurando a informação até se chegar a uma camada final. Cada unidade tem várias entradas e várias saídas. As intensidades das ligações vão sendo definidas com a aprendizagem. De certo modo, as redes neuronais fazem aquilo que os nossos neurónios fazem, embora de uma forma algo simplificada. Como os tempos típicos nos processos cerebrais são de microssegundos, enquanto nos computadores são de nanossegundos, os computadores podem ser mais rápidos em certas tarefas. Mas os nossos emaranhados de ligações neuronais podem garantir mais eficiência noutras.

A IA é, hoje em dia, uma disciplina que se liga com muitos ramos do conhecimento: liga‑se com as neurociências, mas também com a matemática, com a física, com a informática, com a psicologia, com a psiquiatria, com a medicina em geral, com a economia, com a filosofia, etc. Enfim, é uma das áreas que conjuga mais disciplinas: ao procurar imitar os seres humanos, estamos a perceber melhor quem somos, uma questão que está na base de toda a ciência, e somos seres extremamente complexos. Queremos saber como é o mundo porque estamos no mundo, somos parte dele, somos, tanto quanto sabemos, a parte mais complexa dele.

Na prática, houve dificuldades de execução do objectivo da IA, que contrariaram o entusiasmo inicial: de início não havia suficientes transístores para imitar os neurónios: os computadores eram lentos e desmemoriados, e os problemas de IA pareciam demasiado grandes e complexos. Mas a lei de Moore seguiu o seu curso. Nos anos de 1970 surgiram os expert systems, sistemas computacionais que simulam a capacidade de decisão de um ser humano, e nos anos de 1980 surgiu a primeira aplicação comercial desses sistemas. Um marco importante, como já se referiu, foi em 1997 a vitória de um computador da IBM, o Deep Blue, sobre o campeão do mundo, o russo Garry Kasparov. Depois disto, dado o tremendo avanço da capacidade de cálculo, uma máquina banal passou a ganhar a qualquer ser humano. Hoje em dia os humanos não podem ser assistidos por máquinas nos campeonatos de xadrez. Não só as máquinas se tornaram campeões mundiais de xadrez, como qualquer um de nós perde se jogar xadrez contra o seu telemóvel. Eu fui jogador de xadrez na minha juventude e sei que o meu telemóvel é melhor do que eu. O xadrez mostra que as máquinas podem analisar mais rapidamente grandes conjuntos de dados e tomar melhores decisões.

Há uma ideia importante que gostaria de realçar. Quando se fala em algoritmos temos a ideia mecanicista de algoritmo: existe uma entrada, um processamento e uma saída. Mas a aprendizagem automática da IA quer dizer o seguinte: o software incorpora os dados, o que significa que não é um programa rígido, as ligações entre as unidades das redes neuronais vão‑se modificando de acordo com modelos probabilísticos. Dizemos que o sistema aprende e a aprendizagem pode ser supervisionada, não supervisionada ou reforçada. É preciso na machine learning um treino, uma aprendizagem inicial, mas o sistema está sempre a aprender. Por outras palavras, nós não podemos saber o que está no programa em cada momento, pois ele está continuamente a ser  modificado. Não há distinção nítida entre dados e o programa que os processa. Não é como um programa tradicional, em que o programa é fixo, em que as mesmas entradas dão sempre as mesmas saídas. As mesmas entradas poderão dar saídas diferentes, se o sistema tiver aprendido. 

No fundo, é o que se passa connosco: em princípio as pessoas (há casos que são incorrigíveis!) vão aprendendo, vão dando respostas diferentes perante as situações que encontram com base na sua experiência de vida. Portanto, um programa de IA é, e algum modo, uma caixa negra. Se se pedir a alguém que explique o que está dentro dela, a resposta é impossível. O criador da máquina não sabe e não pode dizer fisicamente o que lá está, pois o software é auto‑ajustável. 

Os computadores já ganharam não apenas no xadrez mas num jogo muito mais complicado chamado Go, usando um sistema de IA chamado AlphaGo. Havia um campeão sul‑coreano, Lee Sedol, que depois de, em 2016, ter perdido com a máquina, desistiu pura e simplesmente da modalidade, tão frustrado ficou. De facto, a ciência e a tecnologia produziram estes avanços nos jogos, mas estes também se têm revelado úteis na ciência e tecnologia. 

Dou um exemplo da ciência: a descoberta do ano para a revista Science, em 2021, foi uma proeza conseguida com a ajuda da IA: saber como é que se enrola uma proteína, um grande problema da biologia que não estava resolvido. As proteínas são as máquinas‑ferramentas que temos dentro de cada uma das nossas células. Trata‑se de conjuntos de compostos químicos, os aminoácidos, cuja «receita» está nos nossos genes e que se vão enrolar nas células de uma certa maneira para cumprirem uma certa função. Nós não sabíamos indicar, a partir do código genético, qual era o enrolamento de cada proteína, mas agora com  a IA passámos a saber. A novidade tem consequências não apenas para a compreensão do nosso corpo, mas também, por exemplo, para fazer novos medicamentos. Actualmente os novos medicamentos fazem‑se no computador e já existem alguns produzidos com a ajuda da IA. 

O último grito da IA, tenho de falar disso porque está nas bocas do mundo, são os sistemas de linguagem, como o ChatGPT. Os sistemas desse tipo são antigos, tendo sido usados por exemplo para transcrição da voz (uma pessoa fala e o computador escreve), para tradução automática e para conversa (chat) computacional. Há tentativas bem‑sucedidas de transcrição de voz desde 1997. Aliás, porque é que eu tenho de teclar num computador, em vez de simplesmente falar com ele? Já é possível, mas será ainda mais e melhor. A tradução automática já é bastante funcional, sendo usada não só por turistas em terras estranhas como por tradutores profissionais, porque lhes facilita a tarefa (designadamente em traduções técnicas, nas literárias é mais complicado). E modernamente há então a conversa computacional, por exemplo a proporcionada pelo famigerado ChatGPT, que começou por ser baseado num sistema chamado GPT3, mas que agora se serve do GPT4, bastante recente.

A capacidade de processar texto pode ser medida com testes convencionais e desde 2019 que, usando esta métrica, a capacidade humana é excedida nessa área por sistemas de IA. Os computadores já conseguem escrever tão bem ou mesmo melhor do que nós — se o que dizem está certo ou não, isso é uma outra história! Já conseguem escrever de uma maneira indistinguível da de um ser humano, cumprindo as leis lógicas da linguagem. Os sistemas desse tipo chamam‑se Generative Language Systems. Após um treino que se serve de um grande conjunto de textos, esses sistemas conseguem, por enquanto melhor em inglês do que noutras línguas, escrever textos com sentido. O ChatGPT é um assistente virtual para escrita criado em São Francisco pela OpenIA em 2022, que começou por ser um laboratório de investigação e hoje é uma empresa. O Bill Gates disse que é «tão importante como a Internet. Vai mudar o mundo». 

(...)

BREVE HISTÓRIA DO FIM DO MUNDO NOS ÚLTIMOS DOIS MIL ANOS


Parte do meu texto do livro "O Fim do Mundo em Cuecas" (Editora Desassossego), com organização do Hugo van der Ding, que acaba de sair. Recomendo o livro por ser não só muito divertido como muito informativo. É uma óptima para dar a si ou a outros antes que o mundo acabe! O problema do fim do mundo é que depois não há mais prendas...

O fim do mundo já foi anunciado inúmeras vezes por todo o tipo de profetas. E, no entanto, o mundo ainda cá está. Apesar de nunca terem faltado profetas da desgraça — neste caso, a última de todas as desgraças —, o facto é que ele, para o bem e para o mal, permanece. O mundo tem-se revelado muito resistente. Parece estar para lavar e durar, resistindo a epidemias, guerras e alterações climáticas. Os profetas do fim do mundo é que têm morrido, isto é, têm tido o seu fim do mundo pessoal. Mas, como profetizar é próprio do Homem, não faltam nem faltarão novos profetas com novas profecias. O fim do mundo tem futuro: só no caso, cientificamente pouco provável, de o mundo acabar é que os profetas acabarão de vez. Nesse caso, eles nem estarão cá para se gabarem da única vez em que as suas profecias acertaram.

Os relatos do fim do mundo são tão antigos quanto as mais primitivas civilizações. Logo no início da Bíblia encontra-se descrito um quase fim do mundo, baseado numa versão judaica de um mito tão antigo quanto persistente: a história do dilúvio contada no Génesis é, ao fim e ao cabo, um fim do mundo falhado. E ainda bem que falhou, pois o mundo tinha acabado de nascer e ainda não tinha mostrado o que valia. Por intervenção divina, Noé e a sua grande arca foram salvos da gigantesca inundação. O arco-íris que apareceu a Noé no fim foi o sinal da «velha aliança» entre Deus e o Homem, que passou a ser uma espécie de «seguro de vida» da Humanidade.

No final da Bíblia surge descrito o fim do mundo a sério, bem pior do que o dilúvio universal. A história do Apocalipse, contada por S. João (ou alguém por ele, pois S. João já tinha morrido no final do século i, quando o livro foi escrito, com base em tradições pré-cristãs), é particularmente aterradora: quatro cavaleiros espalham a peste, a guerra, a fome e a morte a uma escala que faz empalidecer tudo que, desse género, temos visto até agora: só no cinema é que há coisas parecidas. Houve «granizo e fogo misturados com sangue, que foram lançados sobre a Terra» e também «caiu do céu uma grande estrela que ardia como uma tocha chamejante». E a banda sonora, além dos trovões e gritos, inclui trombetas tocadas por anjos. De facto, este fim do mundo não é bem o fim de tudo, porque as almas humanas merecedoras de vida eterna continuarão a viver na presença de Deus. Para os cristãos, o fim do mundo não é exactamente o fim do mundo, apenas o início de um mundo novo e interminável.

Apresento aqui uma breve história do fim do mundo nos tempos cristãos. No tempo contado convencionalmente a partir da data de nascimento de Jesus Cristo (há um paradoxo no calendário que usamos: Cristo nasceu, muito provavelmente, no ano 4. a. C.), houve, por causa dos profetas, momentos de séria preocupação com o fim do mundo, ou pelo menos com o fim da Humanidade, que é a parte do fim do mundo que mais preocupa os humanos.

No século ii, o historiador e viajante cristão Sextus Julius Africanus (c. 160–c. 240) sustentou que a Criação tinha ocorrido em 5500 a. C. e que o fim do mundo seria no ano 500, portanto no ano 6000. Seria marcado pela segunda vinda de Cristo à Terra.  A mesma posição tomou o seu contemporâneo Hipólito de Roma (c. 170–c. 235), que foi canonizado. Há algo de sábio nestas profecias, como haverá noutras: a antecedência é tanta que o próprio não vai poder saber se tinha ou não razão.

No final do primeiro milénio houve uma enorme vaga de temor do fim do mundo. O papa francês Silvestre II (c. 950–1003) terá celebrado a missa de Natal do ano 999 em Roma, com muita gente a pensar que o mundo ia acabar. Viveu-se um ambiente de misticismo e pânico colectivos: perante a iminência do Apocalipse, os cristãos arrependiam-se dos pecados que tinham cometido ao mesmo tempo que libertavam os seus animais domésticos para que estes pudessem eventualmente sobreviver aos donos. Sobreviveram todos, pelo que os donos tiveram de andar atrás dos animais. Houve quem dissesse que afinal o fim de tudo deveria ser 1000 anos depois da morte de Cristo, o que adiava o Apocalipse por 33 anos. Quem lá chegou pôde verificar que era afinal mais uma profecia baldada.

Embora de menores proporções, uma vaga semelhante de milenarismo ocorreu nos anos anteriores a 2000, com o medo de que o mundo acabasse na passagem de 31 de Dezembro de 1999 para 1 de Janeiro de 2000. Eu estava lá e não vi nada de especial, além de um maior fogo-de-artifício (eram foguetes em vez de trombetas!). Ninguém parecia muito arrependido pelos pecados cometidos, como a turba 1000 anos antes, nem tinha soltado os animais domésticos. De facto, a entrada no novo século e milénio teve lugar apenas um ano depois, pela simples razão de que um século tem 100 anos, um milénio 1000 e não houve qualquer ano zero. Um bug no registo da data nos sistemas informáticos foi muito anunciado e, por isso, temido, mas revelou-se um grande flop. O tempo continuou a fluir normalmente nos relógios dos computadores.

O papa Inocêncio III (c. 1160–1216) previu que o mundo acabaria 666 anos após a ascensão do Islão, que segundo ele teria sido em 618: portanto, o Apocalipse seria em 1284. Tal como muitos outros, foi sábio ao morrer antes da data pretensamente fatídica. O número 666 é o «número da besta», um dragão de sete cabeças que encarna o Mal, no Apocalipse de S. João. Tem, por isso, um tenebroso significado esotérico. No ano 1666 registou-se em Inglaterra o grande incêndio de Londres e uma epidemia de peste bubónica, o que podem ser vistos como um apocalipse local. De facto, incêndios e pestes não tinham faltado antes na Europa e não haveriam de faltar depois. Uma grande peste chegou à Europa, vinda da China, em 1347, havendo quem pensasse que era o fim do mundo. E outras haveriam de chegar: em 2019, a COVID-19, também de origem chinesa, rapidamente se tornou global. A ressonância diabólica do 666 ainda é visível na contemporaneidade: a Intel, em 1999, em vez do chip Pentium IIII 666, de 666 MHz, lançou o Pentium III 667.

O matemático e astrónomo renascentista alemão Johannes Mueller de Königsberg (1436–1476), mais conhecido por Regiomontanus, previu o fim do mundo para o ano de 1588. Na geração seguinte, o monge reformador seu compatriota Martinho Lutero (1483–1546), que era muito entendido na Bíblia, indicou 1600 como o limite máximo para o mundo, um prazo com uma base teológica, mas compatível com a data do astrónomo.

No seu El Libro de las Profecías (escrito entre 1501 e 1502), que parte de uma compilação de citações bíblicas, o navegador italiano Cristóvão Colombo (1451–1506), que em 1492 tinha sido o primeiro europeu a chegar à América (um feito que, segundo ele, estava anunciado nas Sagradas Escrituras), previu que o mundo acabaria em 1658. Sustentou que o mundo foi criado em 5343 a. C. e duraria 7000 anos. Como não há ano zero, isso significa que o fim chegaria em 1658. Mas Colombo não tinha a certeza: também poderia ser 1656. Mais uma vez, esteve longe de poder assistir, pois faleceu pouco depois de escrever o seu livro.

Alguns astrólogos de Londres previram que haveria uma enorme cheia das águas do Tamisa em 1 de Fevereiro de 1524, com base no alinhamento de sete planetas. Perante o fracasso da profecia (de facto, o ano de 1524 foi muito mais seco do que era costume), usaram uma táctica usual nestes casos: adiaram a profecia em cem anos.

O médico, astrólogo e vidente francês Michel de Nostredame (1503–1566), mais conhecido por Nostradamus, escreveu o livro Les Prophécies, publicado pela primeira vez em 1555 e ainda hoje em circulação. Numa das suas profecias, em quadras, que entraram na cultura popular, fala de Julho de 1999 como o tempo do «terror do céu». Os estudiosos concordam que as profecias de Nostradamus são muito vagas, servindo bem para encaixar nas mais variadas circunstâncias e nos mais diversos propósitos. O último eclipse total do Sol do milénio, ocorrido na quarta-feira dia 11 de Agosto de 1999, deu alento à profecia de Nostradamus. O fenómeno só pôde ser observado plenamente numa estreita faixa, com cerca de 120 quilómetros, que se estendeu entre a costa oriental americana e o Norte da Índia. Em Portugal, o eclipse foi visto como sendo parcial. Em todo o caso, o ano do fim do século e do milénio foi, como referi, inteiramente banal.

Os falsos profetas foram, em alguns casos, pessoas com conhecimentos de ciência. Houve até algumas previsões feitas por cientistas. Por exemplo, o matemático inglês John Napier (1550–1617), inventor dos logaritmos, previu o fim do mundo primeiro para 1688 e depois para 1700 (refez os cálculos), no livro que publicou em 1593, A Plaine Discovery, baseado no Apocalipse de S. João. De novo: teve o cuidado de datar a catástrofe para décadas muito posteriores ao seu tempo de vida, já que os profetas preferem estar ausentes quando é manifesto o seu fracasso. Há quem diga que «falso profeta» é um pleonasmo, uma vez que todos os profetas são falsos: só por acaso acertam. Verdadeiramente sábio foi o futebolista português João Pinto, que um dia afirmou: «Prognósticos só depois do jogo.»

Longe de atenuar os receios do fim do mundo, os avanços da astronomia acentuaram-nos. O matemático suíço Jacob Bernoulli (1654–1705), descobridor do número e=2,718… (a base dos chamados logaritmos naturais) e autor da lei dos grandes números da estatística, previu que um cometa ia destruir o nosso planeta em 5 de Abril de 1719. Esta é uma das modalidades mais comuns de apocalipse — a queda de um cometa ou, em alternativa, de um asteroide — mas até agora todas as previsões desse tipo têm falhado estrondosamente. Já vimos um cometa cair em Júpiter (o Shoemaker-Levy 9, em 1994), de modo semelhante à queda da estrela no Apocalipse, mas na Terra ainda não, até porque era preciso pontaria. E quanto aos asteroides só têm caído, nos tempos históricos, alguns bastante pequenos e, por isso, não muito perigosos. O maior caiu na Rússia em 1908, em Tunguska, na Sibéria. Devia ter cerca de 50 metros e desintegrou-se numa explosão na atmosfera, destruindo floresta, mas sem provocar uma cratera.

O físico inglês Isaac Newton (1642–1727), que tinha um lado alquímico, teológico e místico (por ele mantido secreto!), fez em 1704 uns cálculos do fim do mundo, que não publicou, onde previu a sua ocorrência para o ano 2060. Não se baseou na astronomia, mas nas profecias do Livro de Daniel do Antigo Testamento. Ainda vamos ter de esperar umas décadas para ver se os cálculos do autor do cálculo infinitesimal falharam. Numa base mais científica, Newton temia que a força da gravidade pudesse colocar as estrelas em colisão umas com as outras, imaginando por isso que seria necessária uma intervenção divina. De facto, a regra geral no Universo é o afastamento das galáxias (agrupamentos de estrelas; o conceito é posterior a Newton) e não de colisão, apesar de a força de gravitação universal de Newton ser atractiva. O físico não fazia qualquer ideia de que houve um início explosivo do Universo: as colisões galácticas, que existem, seriam decerto mais frequentes se não tivesse havido o Big Bang, o evento primordial que colocou o Universo em expansão. Sabemos hoje que o Universo não é eterno para trás, mas, tudo o indica, é eterno para a frente, isto é, existiu o Big Bang, há 14 mil milhões de anos, mas não existirá um Big Crunch. As distâncias entre as galáxias serão cada vez maiores.

O astrónomo e matemático inglês Edmond Halley (1656–1742), contemporâneo de Newton (de quem, aliás, foi amigo), previu, com base nas leis de Newton, o regresso do cometa que hoje tem o seu nome para o ano de 1758 (tinha passado em 1682 e passaria em 1759: um erro de somenos). A passagem de cometas sempre foi associada à ocorrência de catástrofes, ainda que menores do que o total fim do mundo. Eu já vi passar o Halley, em 1986, e nada houve de especial (bem, nesse ano houve — coincidência — o desastre de Chernobyl e o acidente do vaivém Challenger) a não ser, claro, a passagem do cometa, que só acontece com um ciclo de 75/76 anos. Ele voltará, pontualmente, em 2061 e eu, para ser franco, já não conto voltar a vê-lo. Em 1986 foi o fim do Halley para mim…

Em Portugal ocorreu o grande terramoto de Lisboa, em 1 de Novembro de 1755, que foi associado ao fim do mundo. Passados seis anos, o jesuíta italiano Gabriel Malagrida foi queimado pela Inquisição depois de garrotado, na praça do Rossio, por dizer que se tratava de um castigo divino, sendo imperiosa uma reforma dos costumes. Contrariava assim as visões naturalistas da catástrofe, propaladas pelas autoridades laicas. Foi o último condenado à morte da Inquisição entre nós, uma instituição que só acabaria em 1821. O desastre de Lisboa proporcionou visões dignas do Apocalipse: um imponente tsunami, fortes abalos, pavorosos incêndios, enormíssima aflição. Calcula-se que tenham morrido cerca de 30.000 pessoas no que foi até agora o terramoto mais mortífero na Europa. Vários escritores famosos escreveram sobre a tragédia que destruiu quase por completo uma cidade então próspera: Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e, mais tarde, Johann Wolfgang von Goethe. Nunca Portugal tinha andado tanto nas bocas do mundo e também nunca mais voltou a andar. Além de terem começado, entre nós, estudos de sismologia, começou também uma acesa discussão teológica sobre a origem do Mal. Seria Deus ou seriam os homens os responsáveis pela catástrofe?

No quadro da teologia, o teólogo, místico, filósofo, cientista e inventor sueco (um polímato como já não há hoje) Emanuel Swedenborg (1688–1772) defendeu que o Juízo Final tinha ocorrido em 1757, portanto durante a sua vida. Era graças a esse evento que ele podia visitar os céus e conversar com anjos e demónios. Como sobreviveu ele ao fim do mundo? Tinha sido um «fim do mundo» meramente espiritual, ocorrido no «Mundo dos Espíritos», a meio caminho entre o Céu e o Inferno. O sueco criou um rito maçónico baseado no Génesis e, depois dele, apareceu a «Igreja Nova» ou «Swedenborgianismo». De certo modo é uma seita, aparentada às muitas que pululam no mundo de hoje, algumas delas com ideias apocalípticas.

Depois da previsão certeira de Halley, os cometas ficaram na moda. Os receios sobre a passagem de cometas manifestaram-se de modo tão exacerbado que, em 1773, o astrónomo francês Jérôme Lalande (1732–1807) não conseguiu apresentar na Academia de Ciências de Paris as suas Reflexions sur les cometes que peuvent se approcher de la Terre, porque correu o boato que aí se previa a queda de um cometa em 20 de Maio de 1773. Foi um oficial de polícia que, para evitar a agitação social, pediu para ver o documento. Claro que era fake news: o polícia não encontrou nada de alarmante e mandou que o escrito fosse imediatamente publicado para apaziguar os ânimos.

Os escritos apocalípticos começaram no Romantismo — uma reacção artística ao triunfo da ciência iluminista. O criador foi o escritor francês Jean-Baptiste de Grainville (1746–1805), autor de Le Dernier Homme, saído em 1805, pouco depois da sua morte, devida a suicídio (pode-se dizer que previu o seu fim). Esse poema em prosa é a primeira obra de fantasia científica. Pouco depois, a escritora inglesa Mary Shelley (1797–1851) publicava o aterrador Frankenstein or The Modern Prometheus (1818), anonimamente, pois nesse tempo as mulheres não tinham voz. A mesma Shelley escreveu em 1826 The Last Man, um romance de ficção distópica na mesma linha escatológica de Grainville. A história acaba com um homem e um cão como últimos exemplares das respectivas espécies no ano 2100. Lembrando-nos de que se trata de uma obra ficcional, teremos de esperar mais umas décadas para ver se ela tem alguma semelhança com a realidade.

No século xix, a ênfase das previsões do fim do mundo passou a ser colocada mais na Natureza e não tanto em Deus. O apocalipse deixou de ser religioso para passar a ser profano. Transitou para o foro da ciência. O século xix foi o século da termodinâmica, a ciência do calor. De acordo com a Segunda Lei da Termodinâmica, formulada a meio desse século por três físicos, o irlandês William Thomson (1775–1833), o britânico Lord Kelvin (1824–1907) e o alemão Rudolf Clausius (1822–1888), a entropia ou desordem de um sistema isolado aumenta espontaneamente. Essa é a única lei da física que permite distinguir o passado do futuro. Maior desordem significa espalhamento de calor e impossibilidade de o aproveitar para o trabalho de máquinas térmicas. Na segunda metade do século xix falava-se da morte térmica do Universo, que significava o fim de todos os fenómenos físicos. O erro maior neste raciocínio é supor que o Universo é um sistema isolado: está isolado de quê?

Foi também no século xix que se começou a perceber a antiga história da Terra (a estimativa actual é que tenha 4,5 mil milhões de anos) e também a quase tão antiga história da vida (3,5 mil milhões de anos), com os trabalhos dos naturalistas ingleses Charles Lyell (1797–1875) e Charles Darwin (1809–1882), respectivamente autores de The Principles of Geology (1830–1833) e The Origin of Species (1859), obras seminais da geologia e da biologia modernas. A história natural tinha-se desenvolvido extraordinariamente no século xviii e passou a haver princípios organizadores: a vida tinha estado em mudança permanente numa Terra também ela em devir constante. Em particular tinham-se encontrado fósseis, que eram vestígios de espécies desaparecidas. Tudo levava a crer que a extinção de algumas espécies estava associada a inundações, explosões vulcânicas, sismos ou outros cataclismos naturais. Sabemos hoje que os dinossauros extinguiram-se há cerca de 65 milhões de anos, no final do Cretáceo: terá sido um grande meteorito caído na península do Iucatão, no golfo do México, acompanhado provavelmente por um aumento da actividade vulcânica, que alterou o clima global (a erupção do monte Tambora, na Indonésia, em 1815, é exemplo de um evento local que causou alterações climáticas globais), impedindo não só os grandes sáurios, como muitas outras espécies, de sobreviver. Para eles foi o fim do mundo. O médico e naturalista francês Georges Cuvier (1769–1832) tinha estudado as extinções documentadas pelos fósseis, tendo proposto a ocorrência de catástrofes localizadas no espaço e no tempo. Essas ideias  catastrofistas foram contrariadas por teses uniformistas, estando a verdade algures no meio. A Terra e a vida sofreram uma evolução lenta com episódios dramáticos. E no futuro poderão voltar a ocorrer situações difíceis…

Dado o maior interesse pela ciência, começou, no século xix, a florescer a ficção científica. O francês Camille Flammarion (1842–1925), astrónomo e grande divulgador da ciência (apesar de ser dado ao espiritismo), publicou em 1894 o romance La Fin du Monde, que ainda hoje está em circulação, no qual descreve uma sociedade do século xxv. No livro presta homenagem a Grainville, reconhecendo-o como predecessor. Noutros escritos de divulgação, Flammarion previu que a reaparição do cometa Halley em 1910 impregnaria quimicamente a atmosfera, «extinguindo eventualmente a vida no planeta». Nessa época vendiam-se «pílulas do cometa» para proteger contra gases tóxicos. O facto de a ciência ter passado a compreender melhor as catástrofes naturais não impediu os temores apocalípticos por parte do público. Também em Portugal se temeu o Halley, que apareceu meses antes da instauração da república.

Em 1945, a Segunda Guerra Mundial terminou com um fim do mundo localizado nas cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui, cuja origem foi a libertação da energia nuclear do urânio e do plutónio. A Guerra Fria que se seguiu baseou-se no equilíbrio do terror: a paz foi mantida para evitar o Apocalipse. No final do século xx, o astrofísico e divulgador de ciência norte-americano Carl Sagan (1934–1996) preocupou-se com o apocalipse que podia advir de um conflito nuclear, que ele pensava ser possível no cenário das Star Wars desenhado por Ronald Reagan. Sagan estudou o «Inverno nuclear», isto é, as alterações climáticas globais após o uso maciço de armas nucleares.

Hoje em dia vivemos com o receio de um desastre ambiental, uma ideia de que, de certo modo, foi pioneira a bióloga e ambientalista norte-americana Rachel Carson (1907–1964), autora de Silent Spring (1962), ao alertar para os riscos que a actividade humana coloca ao ambiente. O principal risco vem do sobreaquecimento do planeta em resultado da emissão de gases com efeito de estufa, principalmente o dióxido de carbono. Vários relatórios do Painel Internacional das Alterações Climáticas (IPCC), organismo das Nações Unidas criado em 1988, documentam a situação e traçam cenários futuros. Este eventual fim do mundo tem tudo que ver com a ciência e a tecnologia, uma vez que resulta de uma civilização de base científico-tecnológica.

 (,,.)

ELOGIO DOS LIVROS E DAS BIBLIOTECAS


Minha intervenção ontem na Casa da Cultura de Coimbra, a convite dos Lions:

É meu privilégio, respondendo ao amável convite dos Lions, fazer o elogio dos livros e das bibliotecas. Não era preciso fazê-lo nesta cidade de Coimbra, onde a Universidade tem uma biblioteca mais do que cinco vezes centenária, a Biblioteca Geral (BGUC), e a cidade tem uma biblioteca centenária, a Biblioteca Municipal. Quando servi a universidade dirigindo a primeira propus, embora sem êxito, juntar as duas num grande empreendimento: a “Casa do Conhecimento”, a erguer sobre a Penitenciária de Coimbra tal como outrora a Joanina foi erguida sobre uma prisão medieval. É com gosto que vejo aqui a universidade e acidade reunidas. A universidade tem a cidade lá dentro se só trocarmos uma letra.

Não era preciso fazer o elogio do livro numa cidade que tem a biblioteca mais bela do mundo: a Joanina, que integra a BGUC, beneficiária de uma plêiade de directores como Luís de Albuquerque, Guilherme Braga da Cruz, e João da Providência e Costa. Posso até recuar até 1545 quando o cronista da Índia Fernão Lopes de Castanheda foi nomeado “guarda do cartório e da livraria” da Universidade. de Coimbra foi e é a cidade de grandes editores como João de Barreira, João Álvares, no séc. XVI, a Imprensa da Universidade, a partir do séc. XVIII, e a Atlântida, a Coimbra Editora e a hoje muito activa Almedina, no séc. XX. Foi e é a terra de grandes tipografias, como a Gráfica de Coimbra, livrarias, algumas delas afectas a editoras, e alfarrabistas, como o Miguel de Carvalho, hoje na Figueira da Foz. 

Foi e é também a terra da maior parte dos nossos escritores. Nos cem anos de Eduardo Lourenço e de Eugénio de Andrade, é mister lembrar que os dois passaram por aqui. Como passaram por aqui tantos outros: D. Dinis, Luís de Camões (embora não haja a certeza), Almeida Garrett, Eça de Queirós, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, José Régio, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Herberto Hélder, Virgílio Ferreira, Ruy Belo, Manuel António Pina,  Manuel Alegre, Luís Quintais, etc., uma lista tão numerosa que é muito mais fácil fazer uma lista dos que não passaram (talvez seja constituída apenas por Fernando Pessoa, que, no país, quase não saiu de Lisboa). 

Distingo, nesta Sala Sá de Miranda, os escritores que nasceram em Coimbra: Sá de Miranda, claro, mas também Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, João José Cochofel, Fernando Assis Pacheco, Inês Pedrosa, Teolinda Gersão, Nuno Camarneiro, etc. O poeta António Gedeão “nasceu” em Coimbra em 1956, quando Rómulo de Carvalho ensinava naquele que havia de ser o meu liceu, o D. João III. Uma lista muito pequena, mas significativa, é a dos escritores que, não tendo aqui nascido aqui, quiseram ficar para sempre, como Vitorino Nemésio.

Estou a falar no edifício da Biblioteca Municipal. Foi nessa biblioteca que, quando era adolescente, expandi os meus horizontes de leitura, trazendo e levando três livros de cada vez das estantes que enchiam no Claustro de Santa Cruz. Somos o resultado genético e educativo dos nossos pais, da instrução dos nossos professores (no meu caso dos mestres do Liceu de D. João III e da Universidade) e, com certeza, da nossa própria viagem interior, o nosso grand tour, feita através dos livros que escolhemos. 

Tive a sorte de ter tido acesso a grandes bibliotecas no estrangeiro, como a da universidade e cidade de Frankfurt, a terra de Goethe, que tem mais de seis milhões de livros e por cujos depósitos eu, no início dos anos de 1980, me passeei à vontade, trazendo muita literatura portuguesa e brasileira para ler em casa. Está nessa cidade em curso um investimento de cem milhões de euros numa nova biblioteca, com verba conseguido com a venda da antiga sede da Polícia no centro da urbe. Mais tarde gozei de sabáticas nos Estados Unidos, onde percebi que, bem mais do que aqui, a biblioteca é o verdadeiro centro não só das universidades, mas também das cidades. O presidente da América, no final do mandato, recebe uma biblioteca com o seu nome como prenda. Talvez com a excepção de Donald Trump, que não lê livros.

A biblioteca, qualquer biblioteca, é um mundo, um cosmos. Permitam-me que invoque a minha condição de físico para citar o grande físico e divulgador científico Carl Sagan. No seu livro Cosmos, editado entre nós pela Gradiva, a minha editora, num capítulo intitulado “A persistência da memória”, descreveu como os seres vivos começaram por ter informação armazenada nos genes e, depois, passaram a ter também informação armazenada nos cérebros (porque não cabia nos genes) e, depois ainda (porque não cabia nos cérebros), uma das espécies, a nossa, passou a ter bibliotecas, isto é, informação fora dos cérebros, mas sempre acessível a eles. Escreveu:

“Os livros permitem-nos viajar através do tempo, de beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarmos e para nos inspirarem a dar a nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana. As bibliotecas públicas dependem de contribuições voluntárias. Considero que a saúde da nossa civilização, a profundidade da percepção que temos das bases de apoio à nossa cultura e o nosso cuidado relativamente ao futuro podem ser medidos pelo tipo de apoio que damos às nossas bibliotecas.”

Quem leu suficientes livros sabe que eles são por vezes responsáveis pelo que nos acontece. Os livros transformam o mundo, basta pensar nesse livro dos livros que é a Bíblia. E os livros transformam-nos a nós: por exemplo, eu aprendi a ler pela Cartilha Maternal de João de Deus, outros dos escritores oitocentistas que passou por Coimbra.

As palavras de Sagan fazem-nos evocar as de Descartes, que ele decerto leu: “A leitura de todos os livros bons é como uma conversa com as pessoas mais sérias dos séculos passados que deles foram autores.”  A mesma ideia surgiu numa conferência proferida em 1864 por John Ruskin, o grande artista, cientista, poeta, ambientalista e crítico de arte inglês da época vitoriana, num pequeno burgo perto de Manchester onde ele estava a criar uma biblioteca. Passo a citá-lo: 

“Partindo do princípio que temos quer a bondade quer a inteligência de escolher bem os nossos amigos, muitos poucos de nós têm esse poder, que limitada que é a esfera das nossas escolhas. Não podemos conhecer quem nos apetece... Podemos por acaso entrever um grande poeta e escutar o som da voz dele, ou fazer uma pergunta a um homem de ciência que nos responderá amavelmente. Podemos usurpar dez minutos no gabinete de um ministro, ter uma vez na vida o privilégio de atrair o olhar de uma rainha. E, no entanto, esses acasos fugidios nós desejamo-los, gastamos os anos, as paixões e as nossas faculdades a tentar alcançar um pouco menos do que isso, enquanto, durante esse tempo, há uma sociedade que nos é continuamente aberta, constituída por pessoas que falariam connosco tanto quanto o desejássemos, fosse qual fosse o nosso estatuto social. E esta sociedade, porque é tão numerosa e agradável e podemos fazê-la esperar ao pé de nós um dia inteiro – reis e homens de estado à espera pacientemente não para concederem uma audiência, mas para a obterem – nunca vamos procurá-la nessas antecâmaras mobiladas que constituem as prateleiras das nossas estantes.”

Pois as bibliotecas são esses sítios onde podemos falar com amigos que desconhecemos, mas que nos querem conhecer. Marcel Proust, em O Elogio da Leitura, um livrinho em que fala das suas longas horas de juventude que passou a ler, faz o seguinte comentário a Ruskin – o seu texto é, de resto, um prefácio a um livro de Ruskin (os livros comunicam uns com os outros!):

“O que difere essencialmente entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menos sensatez, mas a maneira como se comunica com ele; a leitura, ao arrepio da conversa, consistindo para cada um de nós em receber comunicação de um outro pensamento, mas permanecendo a sós.”

Ainda recentemente o escritor português Afonso Cruz, que não é de Coimbra, mas quase (é da Figueira da Foz) comentava numa sua crónica no JL, “Ler ou não ler, eis a questão,” como é extraordinário que uma pessoa sozinha possa ser sujeito de uma transformação tão grande: 

“É realmente difícil fazer passar a ideia inacreditável de que uma pessoa parada, debruçada sobre um livro, está a ter uma experiência emocionante, espectacular, capaz de lhe mudar a vida”.

Sim, os livros transfonam o mundo, porque começam por nos transformar a nós. Ainda recentemente num restaurante em Aveiro uma senhora veio ter comigo e me disse que um meu livro a tinha mudado, pois tinha deixado de tomar banhas da cobra cuja ineficácia eu apontei.

Sagan diz-nos que o saber dos livros é a custo extraído da Natureza: está decerto a pensar nos livros de ciência, que são apenas uma pequena parte do grande número dos livros da biblioteca. Encontra-se, com efeito, em Galileu – que, para Ítalo Calvino, o autor cujo centenário se comemora este ano, era o melhor prosador na língua italiana - a ideia de que a própria Natureza é um livro, um livro que, segundo ele, “está escrito em caracteres matemáticos,” como linhas e números. Assim, a maior biblioteca do mundo, a fonte de todas as outras, seria o próprio mundo, o Cosmos. Mas, como está tudo nos clássicos (Calvino disse que os clássicos são os livros que se releem como se se estivessem a ler pela primeira vez), já antes de Galileu a metáfora do do mundo como um livro aparece em Dante, no último canto da Divina Comédia (um grande clássico!): “No seu profundo vi que já se interna, /ligado com amor num só volume/ o que pelo Universo jaz esparso”.

Mais modernamente Jorge Luís Borges, um dos meus escritores preferidos, fala no conto “A Biblioteca de Babel”, inserta no seu livro Ficções, do “Universo, a que outros chamam Biblioteca”. É um Universo infinito, caleidoscópico, que nos deixa confundidos e nos sobressalta a imaginação: ele contém não só todos os livros como a tradução deles em todas as línguas, todos os catálogos e o catálogo dos catálogos.

O mundo é, portanto, uma biblioteca (se cito tantos autores é porque, como dizia Montaigne, é “deixo a outros a tarefa de exprimir o que eu não saberia dizer tão bem, quer pelas fraquezas da minha linguagem, quer pelas da minha inteligência”) e a biblioteca é, por sua vez, um mundo. Se acrescentarmos aos livros de não-ficção os de ficção, poderemos dizer que a biblioteca é um conjunto de mundos, do mundo que existe e dos mundos que não existem, mas poderiam existir, e, além disso, dos mundos que não existem nem poderiam existir. A biblioteca é afinal muito maior do que o mundo!

Hoje dispomos de uma moderna biblioteca de Babel, a Internet. E, se me pedirem, quando chegar às portas guardadas por São Pedro, para defender os meus méritos, direi: «guardei livros», alguns deles livros dos apóstolos, conforme o Senhor Reitor me encarregou. E, se for preciso argumentar mais, direi que «espalhei livros», ao mesmo tempo que os guardava: propus ao Senhor Reitor a criação do Alma Mater, o repositório de fundo antigo de livros da Universidade que projecta o nome de Coimbra em todo o globo, pois permite entrar em Coimbra através do telemóvel de qualquer sítio do mundo, em São Paulo, Macau ou Dili.

Livros significa memória, património, e gostaria de salientar isso numa cidade Património Mundial. Os autores dos livros não morrem porque, ao lê-los, estamos a falar com eles. E, se deixarmos livros para falar com os nossos descendentes, teremos garantida uma vida para além da morte.  Romano Guardini, um teólogo italiano do séc. XX que era um espírito eclético pois se interessou por ciências naturais, medicina, psicologia e direito (o papa Francisco começou a fazer uma tese de doutoramento sobre ele), escreveu que

o livro tem uma relação com a memória: com essa faculdade misteriosa que o homem possui de convocar do passado para o presente tudo o que antes aconteceu, sem, no entanto, esquecer (...) que se trata de coisas pretéritas. 

É porque temos muitos e bons livros que é grande o poder da memória em Coimbra. Há muito que repito que seria bom que essa memória se projectasse em futuro. Foi o Padre António Vieira, que esteve recluso no Colégio das Artes em Coimbra, que escreveu uma História do Futuro. Pois Coimbra tem memória suficiente para escrever a sua história do futuro, uma história que poderia passar pela ambição de construir uma “Casa do Conhecimento”, a maior biblioteca do país. 

Eu pertenço ao número das pessoas que, em Coimbra, estão mais preocupadas com os próximos sete anos do que com os últimos 700 anos. E por uma razão simples: graças à lei física que dá pelo nome de Segunda Lei da Termodinâmica distinguimos passado do futuro, o tempo em que nada mais podemos fazer do tempo em que ainda podemos fazer alguma coisa. Podemos fazer mais pelos próximos sete anos do que pelos últimos 700 anos. Que memória podemos, portanto, deixar, no domínio dos livros e das bibliotecas, no futuro próximo para ser admirado no futuro remoto? Penso que é essa uma das questões que nos devia preocupar. Os nossos tetravós deixaram-nos memórias. Nós temos de guardar a memória deles, acrescentando a nossa, para que os nossos tetranetos saibam deles e de nós.

Um dia gostaria de deixar os meus livros numa biblioteca para ficarem à disposição dos vindouros – refiro-me à minha biblioteca de mais de 30 000 volumes que acrescem aos cerca de 10 000 que ofereci ao Rómulo, a biblioteca de cultura científica em honra de Rómulo de Carvalho, que criei na Universidade de Coimbra. Cito - e perdoem-se a abundância de citações - o cardeal italiano Basílio Bessarion, que legou os seus ca. 800 códices à cidade de Veneza. Hoje estão na famosa Biblioteca Marciana. Numa carta ao doge em 1468 escreveu Bessarion:

“Os livros estão cheios das palavras dos sábios, dos exemplos dos antigos, dos costumes, das leis, da religião. Vivem, discorrem, falam connosco, ensinam-nos, instruem-nos, consolam-nos, tornam-nos presentes, pondo-as sob os nossos olhos, coisas muito remotas da nossa memória. Tão grande é a sua dignidade, a sua majestade e, enfim, a sua santidade, que se não existissem os livros nós seríamos todos grosseiros e ignorantes, sem qualquer lembrança do passado, se nenhum exemplo; não teríamos qualquer conhecimento das coisas humanas e divinas; a mesma urna que acolhe os corpos apagaria também a nossa memória.”

Encontrei estas palavras de há mais de 500 anos - porque, insisto, os livros comunicam uns com os outros -, num livro saído entre nós em 2016 da autoria do professor de Filosofia italiano Nuccio Ordine, que eu conheci pessoalmente quando o convidei a visitar Portugal em nome da Fundação Francisco Manuel dos Santos, mas que infelizmente nos deixou em 10 de Junho passado, com apenas 64 anos. Ele deixou-nos, mas os seus livros não nos deixaram. Tenho aqui a minha fonte: A Utilidade do Inútil

Num tempo em que impera o útil, trata-se de um eloquente manifesto em louvor do inútil. Os livros parecem ser coisas inúteis, pois não passam afinal de alinhamentos de letras do alfabeto em papel ou num ecrã, mas são as coisas mais úteis do mundo. Contêm ideias que mudam o mundo porque nos mudam a nós. O mundo não mudaria se não houvesse livros. O extraordinário é que o mundo muda, mas continua, na sua essência, a ser o mesmo, já que a memória das vidas passadas está nos livros que lemos para iluminar as nossas vidas futuras. 

Assim vai continuar a ser. Os livros são a nossa vida eterna.

TODA A GLÓRIA É EFÉMERA

Quando os generais romanos ganhavam uma guerra dura e bem combatida, davam-lhes um cortejo e rumavam ao centro de uma Roma agradecida. ...