segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Antioxidantes na passagem de ano

Agora que se aproxima a hora em que a maioria de nós saúda o novo ano com libações sortidas e a propósito do post anterior sobre os benefícios das antocianinas e dos polifenóis que muitas vezes as acompanham no mundo vegetal, não poderia deixar de lembrar uma fonte destes compostos muito importante na dieta mediterrânica.

Estou a falar do vulgar vinho tinto, cuja coloração é devida à presença de antocianinas (ausentes no vinho branco) e de uma série de polifenóis que com elas complexam. Os polifenóis do vinho são também os responsáveis pelas suas características organolépticas, nomeadamente os compostos designados por proantocianidinas, catequinas (como as presentes no chá) e epicatequinas monoméricas ou poliméricas, normalmente associadas ao ácido gálico, o precursor do ácido elágico tão elogiado nos últimos tempos.

Para além da cor, estes compostos assumem um papel importante nas características gustativas dos vinhos, por exemplo ao reagir com as proteínas da saliva, sendo esta reacção a responsável pela adstringência dos vinhos.

Há relativamente pouco tempo descobriu-se no vinho outro composto, o resveratrol, que estimula uma enzima que retarda o envelhecimento das células e que se pensa prevenir doenças como Alzheimer, para além de estar associado a uma diminuição do risco de doenças cardíacas. O resveratrol é uma fitoalexina, um composto que desempenha nas plantas o equivalente ao nosso sistema imunológico, sendo produzido pela videira em resposta a uma infecção de «podridão cinzenta» (botrytis).

O interesse que o resveratrol tem despertado na comunidade científica tem a ver com o facto de ser até hoje o composto mais eficaz na activação das sirtuínas, os genes SIRT que produzem as enzimas que desempenham um papel fundamental na manutenção da saúde e longevidade da célula.

Por isso, nesta passagem de ano, em vez do habitual champanhe, talvez não seja má ideia brindar o novo ano de uma forma mais saudável!

Antocianinas, polifenóis e cancro

Há uns tempos foi notícia nas televisões nacionais um gel «mágico» feito de bagas sortidas, nomeadamente framboesas e outros frutos vermelhos, que teria efeitos fantásticos na cura de certos tipos de cancro. Uma das nossas leitores pediu-me para falar sobre o assunto, o que farei de bom grado, não só porque trabalho com as antocianinas, que dão cor aos frutos envolvidos, e outros polifenóis que se associam às antocianinas, mas essencialmente porque as antocianinas, muitas vezes chamadas os canivetes suiços das plantas, são compostos fascinantes e não apenas do ponto de vista químico.

As antocianinas são os pigmentos presentes nos vacúolos de plantas responsáveis por fantásticas exibições de vermelho e azul na Natureza (incluindo as bagas de azevinho tão habituais nesta época) e por fabulosas alterações das cores das folhas de determinadas plantas no Outono. Variando o padrão de substituição, os grupos R1 a R4 no esquema ao lado, temos as diferentes antocianinas naturais, em que R3 e R4 são muitas vezes açúcares, que por sua vez podem ser acilados.

Em tempos considerados um desperdício extravagante de recursos das plantas, que serviriam apenas para atrair insectos polinizadores, hoje em dia há evidências crescentes de que estes flavonóides desempenham um papel muito importante na fisiologia das plantas, nomeadamente são os seus protectores solares, que as protegem dos danos induzidos por excesso de radiação, nomeadamente no ultravioleta. Assim, a luz determina a acumulação de antocianinas essencialmente pela activação dos factores de transcrição que regulam a sua biossíntese.

Por outro lado, estes compostos ubíquos no reino vegetal acompanham a dieta humana desde o despontar da espécie humana pelo que não é de espantar que tenhamos evoluído bons usos para eles.

Desde a descrição em 1663 por Robert Boyle dos efeitos ácido-base em pigmentos de origem vegetal, que se tem estudado extensivamente os equilíbrios ácido-base exibidos por estes compostos. Assim, o catião flavílio vermelho, AH+, participa em solução aquosa numa série de equilíbrios acoplados envolvendo uma hidratação inicial que produz o incolor hemiacetal, B, que tautomeriza em chalconas amarelo pálido. A desprotonação do catião produz a forma básica quinoidal, a forma A responsável pela cor azul.

Porquê maçar os nossos leitores com estes detalhes químicos? Bem, por várias razões, como iremos ver em posts próximos, mas para já porque a forma vermelha das antocianinas só é estável em meio ácido - o que impede que as antocianinas sejam utilizados como corantes alimentares excepto em alguns casos, como o Dr. Pepper, um refrigerante análogo à Coca-Cola. De igual forma, também em meio básico são as formas incolores que predominam. Mas a Natureza desenvolveu estratégias químicas para estabilizar as cores vermelha ou azul nos vacúolos das plantas.

Já em 1913, Richard Willstätter observara que o mesmo pigmento pode dar origem a diferentes cores, como é o caso das hortênsias da figura inicial (em que a cor azul é induzida por Al3+ adicionado ao canteiro respectivo). Num exemplo mais drástico em termos de cores, a cianina é a responsável pela coloração quer das centáureas azuis quer das rosas vermelhas.


Um pequeno aparte para falar das centáureas (Centaurea cyanus), as singelas flores chamadas «cyan» (azul) na Roma antiga, que preenchem o nosso imaginário deste tempos imemoriais. A sua origem está envolta em lendas sortidas, como indicado pelo nome que tem origem no mítico centauro Quiron, que Ovídeo nos conta ter curado com seiva da centáurea uma ferida no pé feita com as flechas de Hércules. Estão também associadas a Tutankhamon, o menino-faraó do Egipto fascina o mundo desde que a sua tumba foi descoberta em 1922. Depois de meses a examinar todo o espólio funerário encontrado, Carter voltou-se para o sarcófago, constituído por três ataúdes. Dentro do terceiro ataúde (de ouro) estava a múmia de Tutankhamon. Sobre o ataúde jazia uma coroa de flores que entre folhas de salgueiro e oliveira exibia flores de lótus e centáureas.

Voltando às antocianinas, Willstätter atribuiu a enorme variedade de cores possível com estes corantes a valores diferentes de pH na seiva das plantas mas posteriormente foi determinado que o pH dos vacúolos é normalmente fracamente ácido e nunca é básico. De um modo geral, o pH citosólico varia entre 6.5 e 7 e no caso das centáureas é de 4.6, o que tornava a sua cor impossível de explicar apenas com estes equilíbrios.

Pouco depois, Shibata propôs a teoria de que as antocianinas complexam com metais e assim a cor azul das centáureas seria devida à complexação com iões metálicos, hipótese confirmada pelo elegante trabalho na Nature de Kosaku Takeda, em 2005, que mostrou a estrutura do complexo supermolecular responsável pela coloração destas flores, composto de 4 iões metálicas (um ião Fe3+, um ião Mg2+ e dois iões Ca2+) seis antocianinas e uma flavona (outro flavonóide).

Para além dos metais, hoje em dia sabe-se que as antocianinas complexam com ADN, alcalóides, aminoácidos e outros ácidos orgânicos e com uma grande variedade de moléculas genericamente designadas por copigmentos, que incluem outros flavonóides e polifenóis. Não se sabe muito bem as implicações fisiológicas de tal complexação, sabendo-se que nalguns casos protege os copigmentos de danos oxidativos, por exemplo, a complexação impede a oxidação induzida por metais do ácido ascórbico (AsA, a vitamina C cuja falta provoca escorbuto nos humanos) por formação de um complexo estável AsA-metal-antocianina.

Mas sabe-se bem que a copigmentação estabiliza a cor das antocianinas e que a cor exibida por muitas flores e frutos está associada a este fenómeno, ou seja, as antocianinas guardadas nos seus vacúolos a pH próximo da neutralidade estão complexadas com moléculas sortidas, inter ou intramolecularmente - a complexação intramolecular pode ocorrer via acilação do açúcar pelas enzimas aciltransferases de antocianinas.

Há muito que se sabe que as antocianinas são poderosos antioxidantes in vivo, em que este antioxidantes se refere à sua actividade em relação a radicais livres, por exemplo radicais livres de oxigénio (ROS), responsáveis por uma série de efeitos nocivos e implicados em várias doenças humanas. Quimicamente, as antocianinas, ou antes, os catiões flavílio, são oxidantes, ou seja, a sua afinidade electrónica é muito elevada e como tal oxidam, isto é, removem electrões, outras espécies. Muitos copigmentos, nomeadamente alguns dos melhores copigmentos (que formam complexos mais estáveis) apresentam igualmente uma actividade antioxidante muito importante.

A formação de radicais livres in vivo acontece naturalmente na célula via uma série de mecanismos e pode ser induzida por exposição a factores exógenos como o tabaco, alguns medicamentos, radiação ultravioleta, ozono, etc.. Mesmo sem esta exposição exógena, a produção contínua de radicais livres durante os processos metabólicos levou ao desenvolvimento de muitos mecanismos de defesa antioxidante para limitar os níveis intracelulares destes compostos com electrões desemparelhados e impedir a indução de danos. Os antioxidantes são assim os agentes responsáveis pela inibição e redução das lesões causadas pelos radicais livres nas células e alguns destes antioxidantes são fornecidos na dieta, não só as antocianinas e os seus copigmentos, mas também carotenos, α-tocoferol (vitamina E) ou a curcumina - outro pigmento natural e que confere a cor amarela ao açafrão-da-Índia (e ao caril).

No caso das framboesas, para além de muito ricas em antocianinas como indicado pela sua cor vibrante, estas apresentam elevados teores de ácido elágico, um polifenol também presente nos morangos, toranjas e em algumas nozes. Desde 1985 que se sabe que o ácido elágico, um derivado do ácido gálico, exibe funções anti-mutagénicas e anticancerígenas em culturas de células e em animais - para além de ser um potente inibidor da indução química do cancro - e alguns estudos sugerem ainda que o ácido elágico e alguns elagitaninos têm propriedades inibidoras da replicação do vírus HIV.

Nunca estudei o efeito da adição de ácido elágico a antocianinas (talvez experimente agora) mas pela estrutura diria que é um bom co-pigmento. Talvez a formação de um complexo explique porque não adianta encomendar ácido elágico à Sigma uma vez que os efeitos atribuídos a este polifenol só são possíveis com o fruto ou seus transformados - este composto degrada-se facilmente em condições fisiológicas e não pode ser ministrado sózinho. E, quem sabe, os milagres do gel que motivou o post sejam devidos não apenas ao ácido elágico mas a uma acção sinérgica com as antocianinas presentes nas bagas com que é confeccionado. Entretanto não é má ideia adicionar toranjas, compotas de frutos vermelhos, nozes e pecans à dieta!

domingo, 30 de dezembro de 2007

Paradoxo de EPR, Variáveis Escondidas e Desigualdade de Bell


Mais um post convidado de Luís Alcácer.

Não é fácil, para mim, explicar estas questões em poucas palavras, e, muito menos, sem recorrer a fórmulas. Esta é uma tentativa, simplificada, consciente de que corro o risco de cair em algumas incorrecções, que espero, sejam apenas de natureza formal. Futuramente poderei voltar a estes temas que aliás, me fascinam. Descrições detalhadas e mais ou menos formais podem ser encontradas na literatura [i].

Não conformado com algumas das implicações da mecânica quântica (MQ), Einstein, que dera importantes contribuições para a teoria, publicou, juntamente com Podolsky e Rosen, em Maio de 1935, um artigo [ii] com o título "Pode a Descrição Quântica da Realidade Física Ser Considerada Completa?"

Pelas implicações paradoxais que os argumentos de EPR (de Einstein, Podolsky e Rosen), suscitaram, o tema do artigo é conhecido como "paradoxo de EPR". EPR argumentavam que a descrição quântica da realidade física, não poderia ser completa, no sentido de que, nas suas palavras, "numa teoria completa, deve existir um elemento correspondente a cada elemento da realidade", o que não acontece na MQ. Na MQ existem pares de grandezas físicas, como a posição e a velocidade (mais correctamente, velocidade vezes massa) de uma partícula, para as quais o conhecimento de uma, torna impossível o conhecimento da outra (incerteza de Heisenberg). Segundo EPR, isso implicaria que quando a velocidade da partícula fosse conhecida, a sua posição não teria realidade física, deduzindo que o formalismo da MQ seria incompleto.

EPR consideraram ainda o exemplo de duas partículas que tenham interactuado durante algum tempo. Em princípio, se forem conhecidas as propriedades (grandezas físicas) de cada uma das partículas antes da interacção, a MQ pode prever as propriedades do conjunto das duas partículas em qualquer instante após o período de interacção, mas não pode prever as propriedades individuais de cada uma delas. Isso só pode fazer-se, realizando novas medições sobre uma das partículas. Mas, segundo a MQ, o acto de medir pode provocar a alteração das suas propriedades e também das propriedades da outra partícula. Essa previsão da MQ parece implicar que a medição numa das partículas pode influenciar o valor das propriedades na outra, embora já esteja separada dela. Foi a isto que Einstein chamou "acção fantasma a distância".

O artigo de EPR levou Schrödinger a publicar um extenso artigo [iii], onde explica algumas implicações da MQ, nomeadamente, o carácter probabilístico das suas previsões. Foi nesse artigo que Schrödinger expôs a ridícula situação do famoso gato, que estaria meio morto, meio vivo.

Niels Bohr também reagiu ao artigo de EPR publicando, em Outubro desse mesmo ano, um artigo [iv] em que reafirma, de forma dogmática, que segundo o formalismo da MQ nunca é possível atribuir valores definitivos a ambas as grandezas físicas de um par complementar (p.ex., posição e velocidade de uma partícula).

Einstein, nunca aceitou o ponto de vista de Bohr e a sua desconfiança levou-o a questionar o carácter aleatório dos fenómenos quânticos. Louis de Broglie, David Bohm e John Bell tentaram desenvolver novas versões da MQ e procuraram meios de pôr à prova o princípio da complementaridade. Bohr continuou impassível.

Uma vez que todas as experiências confirmavam o carácter aleatório dos sistemas microscópicos (p.ex., átomos), muitos físicos acreditavam que a aleatoriedade resultava da nossa ignorância sobre as suas causas, que embora inacessíveis, são reais. Bastaria recorrer à versão clássica do cálculo de probabilidades, para o qual as propriedades intrínsecas dos sistemas físicos são assumidas como existentes e bem definidas, embora desconhecidas ou mesmo impossíveis de conhecer. Esta é a base da ideia das variáveis escondidas. Nessa representação da realidade, assume-se que uma partícula é, de facto, uma partícula, que em qualquer instante, tem uma posição bem definida e uma velocidade única, mesmo que, na prática, não possam ser determinadas. Só podemos determinar as suas distribuições estatísticas que aceitaríamos serem correctamente descritas pela MQ. Poderíamos assim assumir que a MQ é uma teoria essencialmente correcta, pelo menos quando considerada como um instrumento de cálculo, mas não seria um modelo da realidade escondida, e, nesse sentido, seria incompleta.

As variáveis escondidas representariam as causas eficientes necessárias para levar a um dado resultado experimental e ofereceriam um substrato clássico a partir do qual a MQ poderia ser erigida como uma teoria fenomenológica. Restaurariam também à teoria, a causalidade e a localidade (a MQ sugeria, de certo modo, a possibilidade de acção a distância, ou não localidade). A tentativa de David Bohm não foi bem sucedida, uma vez que tinha o defeito de também ter estrutura não local.

Esta discussão leva-nos à questão do determinismo em MQ (ou falta dele), que tentarei abordar mais tarde, noutro texto. De momento, apenas direi, citando Roland Omnès, que seria difícil tentar estabelecer os fundamentos da física num substrato determinístico exacto, quando se tem verificado que o determinismo, que "vemos" à nossa volta, e do qual as nossas mentes estão prenhes, é apenas algo aproximado.

Bell [v] mostrou matematicamente que a ideia das variáveis escondidas era incompatível com as previsões probabilísticas da MQ. Baseou-se na experiência imaginária sugerida por Bohm e Aharonov, na qual dois electrões, inicialmente emparelhados, com spin [vi] nulo, eram separados e enviados para locais diferentes, A e B. Se, no local A, for medido o valor do spin com um campo magnético apontando numa qualquer direcção e encontrarmos o valor +1/2, a MQ prevê que se encontrará, de certeza, o valor -1/2, para o electrão enviado para B, desde que o campo magnético seja paralelo ao usado em A.

O mesmo acontecerá, se forem mudadas as condições da experiência (orientação do campo magnético) depois da separação dos dois electrões. Isso implica que as medições feitas em A influenciam instantaneamente os resultados de medições feitas em B, por maior que seja a distância entre A e B. Bell calculou que, se existissem variáveis escondidas e fosse válido o cálculo de probabilidades clássico, os resultados de experiências como a sugerida deveriam cair dentro de certos limites, satisfazendo algumas bem definidas desigualdades. Foram realizadas várias experiências deste tipo, especialmente com fotões (partículas de luz), sendo a experiência de Aspect [vii], uma das mais citadas. Os resultados experimentais confirmaram inequivocamente a validade da MQ, violando claramente as desigualdades de Bell e deitando por terra a hipótese das variáveis escondidas. Esse tema foi alvo de um texto no DRN em Outubro último.

Tal como no caso dos paradoxos de Zenão de Eleia, uma análise aprofundada da teoria formal (apoiada em resultados experimentais) pode em certos casos levantar, ou pelo menos esclarecer, os paradoxos.

No fundo, todas as situações aparentemente paradoxais da MQ, resultam do facto de querermos usar para descrever a mesma coisa, o conceito de partícula, em determinadas circunstâncias e o de onda, noutras. Einstein tinha razão, ao questionar: se a realidade física é só uma, porque é que usamos dois conceitos diferentes para descrever a mesma coisa? Einstein sugeriu que tudo seriam ondas, e que o comportamento que consideramos típico de partículas pode ser descrito em termos de interacções envolvendo ondas (ou campos), como as de natureza electromagnética. É aliás o que se faz em algumas versões sofisticadas da teoria quântica.

[i] Para uma análise de questões filosóficas levantadas pela mecânica quântica recomendo vivamente o livro (sem fórmulas) "Quantum Phylosophy. Understanding and Interpreting Contemporary Science", de Roland Omnès, Princeton University Press, 1999. Consta do catálogo da FNAC, Preço: 24,89€. Uma análise mais técnica, com matemática é feita no livro "The Interpretation of Quantum Mechanics", de Roland Omnès, Princeton University Press, 1994. Em português e com a matemática necessária sugiro o 3º capítulo do meu livro que está acessível aqui.

[ii] A. Einstein, B. Podolsky, and N. Rosen, «Can quantum-mechanical description of physical reality be considered complete?», Phys. Rev. 47 777 (1935).
[iii] E. Schrödinger, "Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik", Naturwissenschaften 23: pp.807-812; 823-828; 844-849 (1935). Versão em inglês.

[iv] N. Bohr, Phys. Rev. 48 696 (1935)

[v] J. S. Bell, Physics (N.Y.) 1, 195 (1964)

[vi] O spin é uma propriedade do electrão. Não tem analogia clássica. É uma espécie de movimento de rotação em torno de si próprio, o que não faz muito sentido pois o electrão é considerado na MQ convencional uma partícula sem dimensões. O spin pode ter um dos dois valores: +1/2 e -1/2, o que metaforicamente poderia significar rodar no sentido dos ponteiros do relógio, ou em sentido oposto.

[vii] Aspect, A., Grangier, P. & Roger, G., Phys. Rev. Lett. 49, 91 (1982).

Luís Alcácer

sábado, 29 de dezembro de 2007

SOBRE A MORTE NAS ESTRADAS PORTUGUESAS


O “Expresso” de hoje noticia que há manipulação nas estatísticas do número de mortos nas estradas portuguesas. Nós que pensávamos que havia muitos, ficamos a saber que afinal ainda há mais. Indignado, recupero um texto meu publicado no “Primeiro de Janeiro” em 24/1/2001 porque infelizmente me parece ainda actual.

Os estrangeiros que nos visitam não deixam de reparar numa das maiores senão mesmo a maior das idiosincrasias nacionais: a velocidade e o descuido com que se circula nas nossas estradas. Somos um dos países da Europa com maior taxa de sinistralidade rodoviária. Pode dizer-se que a morte espreita não só em cada curva mas também em cada recta.

O escritor norte-americano Richard Hewitt que, no seu livro “Uma Casa em Portugal” (Gradiva), já tinha apontado a tendência suicidária dos automobilistas portugueses (dizia ele, com humor negro, que os portugueses ao volante tentam denodadamente subir para cima das árvores e alguns conseguem), voltou em “Regresso à Casa em Portugal” ao mesmo tema. Com ironia, escreve ele que reparou como os portugueses conduziam os “carrinhos de choques” nas feiras populares. Verificou, ao fim de prolongada observação, que a regra era os condutores das feiras tentarem evitar os choques. “Precisamente ao contrário da vida real”, remata Hewitt.

É simplesmente inacreditável que nós próprios não consigamos ver-nos com o mesmo distanciamento crítico que os estrangeiros e extrair as inevitáveis conclusões. Que não haja uma mobilização geral sobre o assunto, a começar nos médicos, engenheiros e outros profissionais qualificados e a acabar nos cidadãos mais anónimos. Que não haja a actuação necessária dos políticos e das polícias. Que não se criem medidas de excepção para acabar com a excepção que somos na Europa.

Apesar de não ter estudado o assunto com a profundidade que ele merece, tenho uma teoria, admito que não científica, sobre o assunto. Estou em crer que os portugueses nutrem um desdém profundo pelas leis da física (nomeadamente as duas leis que presidem aos choques: a lei de conservação da energia e a lei de conservação da quantidade de movimento) e não acreditam que elas se apliquem aos seus próprios veículos. Acreditam, quando muito e vagamente, a acreditar nas notícias dos jornais, que essas leis sejam eventualmente aplicáveis aos veículos dos outros. Dizendo a mesma coisa de uma outra maneira: os portugueses acreditam em milagres.

Essa tendência para ignorar as leis naturais substituindo-as pela fé em milagres é tão ancestral como o país. Pois não começou Portugal por altura do famoso milagre de Ourique, gralas ao qual os mouros, em número muito superior a nós, acabaram juncando o chão rés-vés-campo-de-Ourique? Foi preciso o historiador Alexandre Herculano, vários séculos depois de Ourique, para ficarmos a saber que essa batalha nunca podia ter ocorrido em Ourique no Alentejo pois nessa altura o país terminava pouco abaixo de Coimbra (há um Chã de Ourique perto de Coimbra, mas também aí não ocorreu nenhum milagre).

Mais tarde, ficou famoso o milagre de D. Fuas Roupinho no Sítio da Nazaré, um milagre parecido com um moderno acidente de viação. Recorde-se a história, para quem já não se lembre dela. A alimária de D. Fuas circulava a grande velocidade por um caminho que desembocava num precipício sobre o mar. Pois o veículo não esteve com contemplações: meteu os travões a fundo nas patas de trás e ergueu as da frente num número digno de figurar no melhor circo. O condutor agarrou-se ao veículo como pôde, mesmo na ausência den cinto de segurança. Pouco importou que a energia e a quantidade de movimento se tivessem de conservar, pois a física ainda não tinha nascido e essas palavras do seu jargão técnico ainda nem sequer tinham sido criadas. Importou sim que D. Fuas sobreviveu, como prova a capela edificada no Sítio.

Pois hoje circulamos em veículos que têm bastantes mais cavalos do que o único que tinha D. Fuas. Mas continuamos a acreditar que o milagre vai acontecer quando, velozes, deparamos com uma curpa muito apertada, ou quando fazemos uma ultrapassagem nos limites.

Se, nas circunstâncias, me é permitido como a Hewitt algum humor negro, sempre direi que há males que vêm por bem: felizmente que esta crença nacional no milagre se tem vindo a desvanecer com o número assustador de mortos. Os mortos já não acreditam em milagres. Muitos vivos a quem o caso toca mais de perto por lhe terem morrido familiares e amigos (haverá alguma família portuguesa sem vítimas de trânsito?) também já não acreditam. As leis da física, que se aprendem ou se deviam aprender na escola, estão a ser cada vez mais interiorizadas, embora de uma maneira trágica.

Portáteis apenas transportáveis, lasers e discos rígidos

Gravação magnética totalmente óptica fazendo incidir luz sobre o suporte magnético e simultaneamente modulando a polarização circular da luz - se a polarização do pulso de laser roda na direcção dextrógira ou levógira em relação ao eixo longitudinal do pulso .

No artigo sobre a electrónica orgânica um dos nossos leitores referiu estar ansioso pelos leves e pouco exigentes em energia computadores portáteis do futuro próximo - tal como eu, que nesta altura tenho um transportável mas pouco portátil. No entanto, gostaria de ressalvar que computadores com as características desejadas estão dependentes de outros factores, como sejam as baterias e os monitores, e que mesmo a miniaturização da sua electrónica está dependente de mais do que apenas o(s) processador(es).

Outra área em que se está a atingir os limites de miniaturização com a tecnologia actualmente disponível tem a ver com os discos rigídos. Acredita-se que os sistemas magnéticos de armazenamento actuais permitirão a construção de discos rígidos com uma capacidade de armazenamento de no máximo 1 terabit por polegada quadrada (ou 0.155 terabit/cm2). Estão a ser estudadas várias soluções alternativas de armazenamento de dados e uma delas assenta na utilização de um (nano)laser para gravação magnética totalmente óptica. Mas quais as vantagens de utilizar luz em vez de um dispositivo magnético na gravação?

As vantagens podem ser apreciadas num artigo publicado na Physical Review Letters em Julho deste ano, em que uma equipa da Universidade Radboud em Nijmegen, na Holanda, demonstrou ser possível a gravação totalmente óptica.

Os cientistas utilizaram um laser de femtosegundos em que os pulsos de laser (cuja largura, 40 femtosegundos, determina a velocidade de gravação) incidem perpendicularmente no meio de armazenagem e a helicidade do pulso de luz (isto é, a sua direcção de polarização) estabelece qual a orientação da região iluminada (ou seja, a gravação de um bit), ou, em termos digitais, se se «escreve» um 1 ou um 0. O bit pode ser revertido com luz de polarização oposta. Se se conseguir luz suficientemente focada conseguiremos gravar informação numa área (ou domínio) pequena. Neste caso, as dimensões do domínio conseguidas são relativamente grandes, cerca de 5 microns. Um dos cientistas, Daniel Stanciu, disse na altura que esperava conseguir diminuir a região de gravação até cerca de 100 nm, acreditando que a abordagem totalmente óptica se iria tornar, eventualmente, a forma de conseguir a gravação mais rápida num meio magnético.

Na mesma altura, cientistas japoneses construiram o primeiro nanolaser estável e capaz de operar a temperatura ambiente, que emite luz contínua e não pulsada. Este nanolaser assenta numa tecnologia proposta em 1999 por investigadores do CalTech, os lasers de cristal fotónico, e desenvolvida em 2005 por duas cientistas da Universidade de Stanford que construiram lasers mais potentes baseados num cristal fotónico de um semi-condutor quaternário, fosfeto-arsenieto de índio-gálio, GaInAsP.

Mais recentemente, físicos da Universidade da Califórnia descreveram, no artigo «Nanolasers to enable data storage beyond 10 Tbit/in2» do número de 11 de Outubro da revista Applied Physics Letters, um sistema de nanolasers que permite discos rígidos com capacidade de armazenamento de 10 terabits/in2, cerca de 50 vezes mais que os discos actuais! O foco do laser é menos de um terço da meta estabelecida em Julho por Daniel Stanciu, cerca de 30 nm de diâmetro. Os autores acreditam agora que podem diminuir o foco a dimensões moleculares, cerca de 10 nm, num período de dois anos!

A miniaturização tem a vantagem de permitir dispositivos que consomem menos energia e portanto são menos exigentes em relação às baterias, um dos pesos pesados em termos de portáteis-apenas-transportáveis. O desenvolvimento de baterias com uma melhor razão energia/peso tem igualmente conhecido progressos fantásticos nos últimos tempos.

Um grande consumidor de energia (e um dos componentes de peso) destes computadores é o écran. Outra área que tem conhecido desenvolvimentos muito rápidos, a chamada electrónica de plástico, tornará disponíveis em breve displays flexíveis assentes em polímeros semi-condutores, área sobre a qual espero o Luís Álcacer (ou alguém do seu grupo) nos elucide em breve.

Entre a descoberta da magnetorresistência gigante e a comercialização dos discos rígidos nela baseados decorreram dez anos. Todos os factores somados em relação a computadores pessoais, diria que é muito acertada a previsão do nosso leitor de uma década para a comercialização dos almejados portáteis mesmo portáteis que simultaneamente consumam pouca energia...

A educação em balanço de final de ano


Rui Baptista faz o balanço da educação:

“Num país onde a inteligência é um capital inútil e onde o único capital deveras produtivo é a falta de vergonha e de escrúpulos, o diagnóstico impõe-se per se” (Manuel Laranjeira, 1908).

Mesmo o comum dos mortais sabe que perante qualquer estado mórbido existem, pelo menos, duas etapas indissociáveis e de cumprimento obrigatório para o debelar: diagnóstico e terapêutica.

No que respeita às entidades directamente responsáveis pela educação, as respectivas maleitas têm permanecido na penumbra oficial com a excepção da actual responsável pela pasta da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, ao assumir publicamente que o relatório da OCDE [sigla da “Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económicos”, com o objectivo de “fomentar o desenvolvimento da investigação e formação nos domínios científico e tecnológico”] sobre o sector "não traz novidades” para Portugal e que os dados são “preocupantes” (“Público”, 15.Set 2005). Daqui saúdo a assunção pública de uma preocupação, mas reprovo o facto de os dados continuarem a ser tanto ou mais inquietantes volvidos mais de dois anos por não se ter passado de um simples diagnóstico a uma adequada terapêutica.

De há anos a esta parte, numa meritória acção de cidadania, personalidades do mundo científico, cultural e político não se têm eximido de denunciar o estado caótico da educação. Denúncia que, pelos vistos, cai sempre em saco roto! Neste final de ano de 2007 recordo, sem qualquer preocupação cronológica, alguns desses diagnósticos em banho-maria na procura de soluções:

- “De repente, perante a obstinação dos que teimaram em não acreditar na realidade, o Portugal novo-rico tornou-se no Portugal novo-pobre. Pobre, porque pobre na qualificação das pessoas. Aí estão a comprová-lo os números terríveis do Estudo Nacional de Literacia, recentemente publicados” - António Guterres.

- “Estamos a formar não um país de analfabetos, como até aqui, mas um país de burros diplomados” – Francisco Sousa Tavares.

- “As políticas educativas seguidas nos últimos 15 anos foram um desastre. Os resultados estão à vista. Lemos nos jornais e constatamos que a educação está na rua, na lama da voz pública.” – Manuel Ferreira Patrício.

- [A educação] “é um desastre completo. Nem daqui a 30 ou 40 anos nos livramos dos erros que andamos a fazer hoje” – Silva Lopes.

- “A escola que temos não exige a muitos jovens qualquer aproveitamento útil ou qualquer respeito ou disciplina. Passa o tempo a pôr-lhes pó de talco e a mudar-lhes as fraldas até aos 17 anos. (…) Vão para a universidade mal sabendo ler e escrever e muitas vezes sem sequer conhecerem as quatro operações” – Vasco Graça Moura.

- “Por força de um atraso ancestral, a necessidade de uma escola qualificada que dê lugar a uma sociedade desenvolvida não está suficientemente clara na mente das pessoas. A escola, a boa escola, não ocupa ainda o lugar a que tem direito” – Carlos Fiolhais.

- “É indesculpável que um professor - qualquer professor! - não saiba escrever, cometa erros de ortografia graves, tenha limitações sérias no vocabulário, não faça ideia do que é a lei da queda dos graves, não saiba somar fracções ou confesse ‘horror à matemática’” – Nuno Crato.

- “Estão-se a formar ignorantes às pazadas” – Medina Carreira.

- “Devido à irresponsabilidade dos governos, ao populismo dos parlamentares e à cobardia dos docentes, a universidade degradou-se para além do razoável” – Maria Filomena Mónica.

- “A ideia de democratizar o ensino superior pela via da banalização do acesso e pela crescente degradação da sua qualidade não é somente um crime contra a própria ideia de ensino superior, é também politicamente pouco honesta” – Vital Moreira.

É esta a educação que temos com semelhanças à dos tempos de Platão que, quando confrontado com a incapacidade das crianças em contarem e distinguirem os números pares dos ímpares, afirmou com desalento: “Quanto a mim, parecemo-nos mais com porcos do que com homens, e sinto-me envergonhado não só de mim mas de todos os gregos!” É esta a educação que devemos continuar a tolerar?

Neste final de ano, mais do que tolerá-la se deseja que delas se orgulhem todos os portugueses por, segundo o primeiro responsável pela governação de Portugal, “termos mais de 17% de alunos no ensino superior e 360 mil portugueses que, estando a trabalhar ou à procura de emprego, decidiram inscrever-se no programa Novas Oportunidades para melhorarem as suas classificações” (“Lusa”, 25.Dez.2007). Um autêntico país das maravilhas não se desse o caso de nessa percentagem estarem incluídos os que tiveram acesso a ensino superior por serem maiores de 23 anos, ou seja em situações em que a simples data de nascimento se fez substituta do exigente 12.º ano do ensino secundário, e de nas Novas Oportunidades “os frequentadores da escola terem uma vontade incrível de não aprender e não deixar aprende” (“Expresso”, 8.Dez.2007).

E se, para Woody Allen, “o político de carreira é aquele que faz de cada solução um problema”, a solução para as declaradas deficiências do sistema educativo nacional têm tido guarida em acrescentar-lhes novos problemas dando-lhe o nome de soluções. Foi esta uma parte da mensagem natalícia de esperança no futuro da educação; “ resto da mensagem foi José Sócrates a dizer bem dele mesmo e das suas políticas” (“Público”, 26.Dez.2007).

HELIOSFERA - VOYAGER 2 MERGULHA NA HELIOSFERA


Minha crónica publicada hoje no semanário "Sol":

Embora esta coluna tenha o título genérico de heliosfera, literalmente esfera do Sol, que designa o casulo envolvente do sistema solar onde os ventos solares (chuveiro de partículas carregadas, ou plasma, emitidas pelo Sol) chegam ao espaço interestelar, pouco tenho falado dela. Mas agora há um bom motivo. A sonda Voyager 2, que foi lançada pela NASA de Cabo Canaveral há trinta anos (mais exactamente a 20 de Agosto de 1977), acaba de chegar à heliosfera. No longo caminho até lá passou sucessivamente por Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno, aproveitando uma rara conjugação destes planetas, tendo enviado espectaculares reportagens desse grande “tour” planetário.

A sonda sua irmã Voyager 1 já tinha chegado à heliosfera no ano passado, apesar de ter sido lançada pouco depois. Acontece que as órbitas das duas naves são bastante diferentes, dirigindo-se a Voyager 1 para cima do plano do equador e a Voyager 2 para baixo desse plano. A heliosfera não é bem uma esfera, devido à influência de campos magnéticos interestelares. Ao contrário da Voyager 1, a Voyager 2 tem os seus detectores de plasma em pleno funcionamento, pelo que nos está a enviar informações preciosas sobre uma zona remota do nosso sistema planetário neste final do Ano Heliofísico Internacional. Não haveria decerto melhor maneira de fechar esse ano.

Enquanto fecha um ano e abre outro as duas naves continuam a sua prodigiosa viagem, à velocidade de 50 000 quilómetros por hora. Ambas mergulhadas na heliosfera, lá irão continuar durante vários anos dada a vastidão dessa zona. O limite exterior da heliosfera, que se chama heliopausa, está a pelo menos dez anos de viagem. Com alguma sorte, a Voyager 2 enviar-nos-á registos da travessia dessa última fronteira solar. É preciso sorte, pois em 2020 acabar-se-á a energia da sonda, pelo que os seus instrumentos deixarão de funcionar.

Por sugestão do astrofísico Carl Sagan, cada uma das naves transporta uma placa com saudações em várias línguas, incluindo o português...

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Electrónica de carbono



Uma observação do fundador da Intel, Gordon Moore, que constatou que a cada 2 anos a capacidade de processamento dos computadores duplicava, foi transformada na lei de Moore - segundo a qual o número de transistores num chip duplica ao fim desse tempo aproximadamente. Mas esta lei empírica está a atingir o seu limite no que respeita aos chips de silício. Na realidade, o silício perde estabilidade na escala nano e estamos quase nos limites da miniaturização possível com este semi-condutor.

Nos últimos anos uma nova electrónica baseada em carbono e não em silício tem-se revelado muito promissora, nomeadamente no campo da nanoelectrónica. A nova electrónica orgânica começou essencialmente por ser electrónica de plástico, por exemplo, a subjacente aos PLEDS (díodos emissores de luz de polímeros). A grande revolução deu-se em Outubro de 2004 quando a equipa de André Geim, do Centro de Nanotecnologia da Universidade de Manchester, apresentou ao mundo o grafeno nas páginas da revista Science.

O grafeno, uma «folha» de grafite com apenas um átomo de espessura, foi utilizado para construir um transistor de efeito de campo (FET) ambipolar totalmente funcional à temperatura ambiente (embora com alguns problemas) demonstrando as aplicações potenciais deste novo material. Esta forma de carbono bidimensional tem gerado um interesse enorme na comunidade científica devido às suas propriedades eléctricas únicas - que partilha com as apresentadas por carbono unidimensional (ou seja, folhas de grafeno enroladas na forma de nanotubos). A utilização de nanotubos em electrónica é complicada por dificuldades tecnológicas que os grafenos não apresentam já que é possível produzir componentes electrónicos de grafeno por litografia, a tecnologia utilizada na fabricação de chips de silício.

O problema é que a substituição do silício pelas folhas de grafeno não é assim tão simples já que os chips de silício são feitos a partir de monocristais de silício - as wafers - com vários centímetros de diâmetro. E os maiores cristais únicos de grafeno que os cientistas conseguem produzir mal passam dos dois milímetros.

O problema foi recentemente ultrapassado em Princeton pela equipa de Stephen Chou. No número de Dezembro da revista Nano Letters os cientistas mostram no artigo «Graphene Transistors Fabricated via Transfer-Printing In Device Active-Areas on Large Wafer» que não é necessário um monocristal de grafeno do mesmo tamanho que os wafers de silício actuais. Basta depositar, ou antes, carimbar, pequenos cristais de grafeno nas áreas activas do chip. Para fabricar o seu protótipo de um circuito integrado de grafeno, usaram uma espécie de carimbo recoberto com um material que pressionado contra grafite (basicamente folhas de grafeno ligadas por forças intermoleculares) permite arrancar cristais de grafeno com as dimensões adequadas que depois são transferidas para o circuito. Construindo diferentes carimbos é possível depositar cristais com as dimensões e formas pretendidas.

A nova tecnologia poderá ter aplicações quase imediatas em circuitos electrónicos de radiofrequência - como telemóveis e equipamentos de rede sem fios - onde se exige alta potência de saída. Diria que dentro de poucos anos teremos telemóveis com chips orgânicos que permitirão mais funcionalidades mas especialmente serão mais económicos no consumo de energia.

O que é a realidade?

Em resposta a uma resposta de uma resposta do que eu já perdi o fio à meada, diz o Ludwig: “Infelizmente, parece que eu e o Desidério discordamos cada vez menos.” E depois escreve tantas coisas com as quais discordo, que sou obrigado a dizer que parece que eu e o Ludwig discordamos cada vez mais.

Eu já desconfiava que concordar com a afirmação do Ludwig de que a ciência, em sentido amplo, é o estudo epistemicamente virtuoso da realidade poderia esconder um disparate. E esconde. Ele pensa que a realidade se esgota no que pode ser observado. E eu penso que isto é treta, para usar a terminologia a que Ludwig nos habituou. Vejamos porquê.

O Ludwig declara neste seu último post que fazemos ciência às fatias só porque somos psicologicamente limitados. E que por isso tais distinções podem ser mais enganadoras do que reveladoras; ciência há só uma. E depois fala de possibilidades interessantes: se ele fosse mais esperto do que é, seria apenas cientista e haveria uma só ciência. É um belo sonho e vale a pena usar a imaginação para imaginar coisas e testar ideias.

Eis outra coisa que podemos imaginar. Somos todos cegos. Temos outros sentidos, como a audição, o tacto, o cheiro, mas somos cegos. Poderemos fazer ciência? Claro. Poderá basear-se na observação? Não. A ideia de que observar é algo essencial para que algo seja ciência é uma ideia paroquial. Tão paroquial como pensar que há algo de fundamental nas fatias que fazemos nas ciências.

Mas é claro que o Ludwig não queria dizer, especificamente e com toda a precisão, “observação”. Não no sentido visual. Queria apenas falar de usar os sentidos, a experiência: usar seja o que for que nos permita captar a realidade.

Mas é agora que temos um problema. O que quer dizer “realidade”? Claro, qualquer bom cientificista dirá que a realidade se esgota no que é observável, nesse sentido amplo, pela ciência. Hum... Parece haver aqui um círculo nada virtuoso. Vamos lá a ver. Começamos por dizer que a ciência esgota o estudo da realidade, e que essa realidade só pode ser estudada pela observação, mas depois quando perguntamos o que é a realidade dizemos que é apenas o que for susceptível de ser observado? Algo está mal aqui.

É a própria noção de realidade que está em causa. Ludwig usa o termo escondendo uma tese filosófica: a de que nada há na realidade que não tenha localização espaciotemporal. Muitos filósofos, como Russell ou Quine, discordam disto. Defendem que há, por exemplo, universais (Russell), como a brancura, ou conjuntos (Quine) e que os universais ou os conjuntos não têm localização espaciotemporal. Ou defendem que há particulares abstractos, como proposições ou o número três (não confundir com o numeral 3, o símbolo que usamos para referir o três).

O importante não é exactamente saber quem tem razão nesta disputa — o Ludwig ou Russell e Quine. Seria preciso estudar cuidadosamente os argumentos dos dois lados, o que seria muitíssimo instrutivo (é o tipo de coisa que fazemos em filosofia). Só quero chamar a atenção para uma dificuldade de base: mesmo que a tese filosófica de Ludwig sobre a realidade seja verdadeira, não foi estabelecida por meio da observação. Foi estabelecida pelo pensamento apenas, como acontece com a generalidade das teses filosóficas. E isso exibe uma dificuldade fundamental nessa tese: é que parece precisar de admitir o que quer negar. Parece precisar de admitir que afinal é possível fazer ciência, no sentido amplo, sem recorrer à observação.

Assim se percebe que o argumento do Ludwig baseado no quarto chinês de Searle é treta. É treta porque tudo o que o argumento de Searle diz (e muitos filósofos têm muitas objecções a levantar ao argumento) é que a mera compreensão da sintaxe não é verdadeira compreensão linguística. Precisamos da semântica para compreender realmente uma linguagem. Mas no argumento nada diz que a semântica de um termo como “brancura”, por exemplo, tem de ser algo com localização espaciotemporal.

Na verdade, o argumento de Searle é contrário ao espírito nominalista do Ludwig, pois mais cedo ou mais tarde o Ludwig vai desenvolver uma ideia a que já aludiu: que a matemática não é realmente ciência porque é uma “mera linguagem”. Nesse sentido, não nos dá conhecimento do mundo. Ora, a verdade é que a ideia de que a matemática é uma mera linguagem só tem pernas para andar se conseguirmos prescindir da semântica da linguagem matemática, coisa que o próprio Ludwig não quer fazer porque aceita a ideia central de Searle de que sem semântica estamos no domínio do faz-de-conta.

Bom, eu prevejo o que o Ludwig vai dizer a tudo isto. Vai distinguir conhecimento de levantar hipóteses. Mas é melhor dar-lhe a palavra, para ser ele a cortar as coisas às fatias e não eu.

CIÊNCIA E RELIGIÃO


A propósito da discussão que prossegue aqui sobre ciência e religião, lembrei-me de um texto meu sobre o assunto que foi publicado no “Primeiro de Janeiro” em 2002(suplemento “Das Artes e das Letras”, de 29/4/2002). Depois de revolver muitas pastas, encontrei-o agora e transcrevo-o depois de o editar ligeiramente:

O convite de uma escola secundária perto de Coimbra era para participar numa mesa redonda sobre “O que é a vida?”. Na mesa, para além de um biólogo e de um físico (este cronista) estavam dois padres católicos e um pastor evangélico (vim depois a saber que estava prevista a presença de um rabi, que faltou). De modo que a discussão derivou da que se poderia prever sobre o tema enunciado para uma outra, embora relacionada, sobre as relações entre ciência e religião. Se a vida para um biólogo e para um físico é uma forma extremamente organizada de matéria (a vida baseia-se em moléculas complexas, como as do DNA e RNA), que exibe propriedades como a auto-reprodução, o metabolismo, a mutação e a adaptação, para um ministro de Deus é um “dom de Deus”, o “expoente da criação divina”.

A ciência e a religião partem de necessidades diferentes do homem. A primeira trata do conhecimento do mundo (incluindo o próprio homem, pois o homem faz evidentemente parte do mundo), a segunda trata da relação do homem com o chamado “transcendente”. Como é óbvio, a actividade científica é apenas uma de entre as várias actividades humanas. A religião e a arte são outras. Não se pode dizer que seja melhor ou pior do que as outras, é simplesmente diferente, porque usa uma metodologia própria. Ela não tem que excluir as outras actividades que o ser humano empreende, mas antes respeitar as especificidades de cada uma. E só se pode compreender o homem se se olhar para tudo aquilo que ele faz.

Contudo, é bem conhecido o historial de conflito entre ciência e religião, nomeadamente quando se começou a compreender a posição que o homem ocupa no mundo, quer o posicionamento espacial do planeta que ele habita, quer o posicionamento temporal no curso da história. A tensão entre ciência e religião começou quando o nascimento da astronomia, fundada na observação, pôs em causa cosmogonias antigas, nomeadamente o modelo cosmológico de Aristóteles e Ptolomeu, que a Igreja Católica conciliou com o texto bíblico ao longo da Idade Média. O episódio de Galileu (um homem profundamente crente e até bem relacionado com a hierarquia da Igreja Católica) no século XVI, quando ele defendeu as ideias de Copérnico, é bem conhecido. Menos conhecido é o facto de o Papa João Paulo II ter revogado a sentença contra Galileu, tendo admitido que se tratou de um erro.

Mas o ponto mais alto dessa tensão entre ciência e religião, que de resto ainda perdura, é a questão da evolução das espécies, incluindo a evolução da espécie humana, que foi compreendida por Charles Darwin no século XIX. Actualmente não persistem quaisquer dúvidas no seio da comunidade científica sobre a validade, no essencial, da teoria da evolução de Darwin. Quer dizer, é um facto mais do que uma mera teoria, tal como a translação da Terra em volta do Sol é um facto e não apenas uma teoria. Hoje em dia não faz muito sentido falar de biólogos evolucionistas pois todos os biólogos são evolucionistas, tal como todos os astrónomos são copernicanos (portanto, só por tradição histórica se usa o nome de “teoria da evolução”).

Acontece que, em certos sítios, nomeadamente nalguns estados dos Estados Unidos, a visão científica da vida em geral e do homem em particular, que vê todos os seres vivos como resultado de um conjunto de transformações lentas ao longo de milhões e milhões de anos, é repudiada por contrariar o conteúdo do “Génesis”, segundo o qual Deus criou o mundo em apenas seis dias e, no final, fez o homem a partir do “pó da Terra”. Algumas pessoas pretendem que essa “teoria criacionista” seja ensinada nas aulas de ciências excluindo a teoria da evolução ou, quando muito, em pé de paridade com ela. Para essas pessoas há um dilema sério entre ciência e religião que querem resolver em prejuízo da ciência. Têm dificuldades reais em conciliar o que se aprende nas aulas de ciências, resultado da observação e da experiência, com o que se aprende na catequese, que em geral não passa da transmissão da palavra da Bíblia. Terá mesmo de haver essa oposição?

Penso que não. Julgo que não há uma incompatibilidade de fundo entre ciência e religião mas, para isso, tem de se abandonar a ideia de que a Bíblia é ou possa ser um livro de ciência. O seu conteúdo não foi fornecido pelo método científico, tendo antes a ver com a crença em Deus. O “Génesis” é, se se quiser usar uma classificação usual nas livrarias, um livro de ficção, escrito e reescrito por vários autores (ao contrário do que dá a entender a sua posição na Bíblia, foi um dos últimos livros do Antigo Testamento a ser escrito), que deve ser lido no respectivo contexto e não levado à letra. O criacionismo não faz, por isso, qualquer sentido.

Como ficou claro no encontro sobre a vida realizada na escola secundária, com os alunos a lançar perguntas a cientistas e sacerdotes, não tem de haver uma incompatibilidade entre ciência e religião. Em abono dessa posição, refiram-se os casos de sacerdotes que são também cientistas. Por exemplo, o pastor inglês John Polkhingorne é físico de altas energias (e também um conhecido divulgador de ciência). A Igreja Católica possui um Observatório Astronómico, que é dirigido por um padre jesuíta, e no qual se faz trabalho científico. Houve e há muitos cientistas que são crentes em Deus. Por exemplo, logo a seguir a Galileu, o grande Isaac Newton. De entre os actuais, vale a pena referir o físico inglês Russel Stannard por ser o autor de um livro sobre “Ciência e Religião” que está traduzido em português . Há também muitos cientistas que não são crentes, como o químico inglês Peter Atkins, autor de “A Criação”, e o biólogo também inglês Richard Dawkins, autor de “O Relojoeiro Cego” (um livro notável que realça o papel do acaso no decurso da evolução). A história da ciência mostra que a fé e a falta dela se encontram distribuídas tanto por cientistas como por não-cientistas. A crença em Deus não pode ser encontrada no fundo de um telescópio ou de um microscópio, mas tem a ver com intrincados factores sociológicos e psicológicos.

Este tema dá pano para muitas mangas. Deparamos na sua discussão com cientistas a usar argumentos não-científicos assim como não-cientistas a ensaiarem argumentos científicos. Claro que a autoridade de um cientista na sua ciência não lhe confere autoridade num assunto não-científico. O físico austríaco Erwin Schroedinger, um dos criadores da mecânica quântica, que teve de fugir dos nazis refugiando-se em Dublin, na Irlanda, é um exemplo da diletância de alguns cientistas célebres. Na sua lição para o público em geral sobre “O Que é a Vida?” (que deu origem a um livro com o mesmo título) colocou de forma clara, e vários anos antes da descoberta da estrutura do DNA, a possibilidade de a genética assentar em mecanismos físico-químicos. Foi não só autor como precursor de boa ciência. Essa lição foi, porém, seguida de uma outra, intitulada “Espírito e Matéria”, onde tratou de assuntos como a “base física da consciência”, o “carácter do espírito” e “ciência e religião”. Nenhum desses assuntos se pode basear na famosa equação de Schroedinger, que é a pedra angular da mecânica quântica e, uma vez que esta mecânica descreve todos os fenómenos ao nível atómico-molecular, dos fenómenos da vida a esse nível. A autoridade de Schroedinger na mecânica quântica – a sua equação resolve um sem número de questões na física, na química e na biologia - não lhe conferia direitos maiores para enfrentar as questões da consciência, do espírito e da religião.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

“Ciência” na acepção ampla

O interessante debate que mantive com o professor Ludwig sobre a natureza da ciência produziu frutos. Permitiu esclarecer as coisas. Penso agora que percebo o que tem o Ludwig em mente. Há duas ideias importantes que o Ludwig defende no último post do debate, "Demarcações", com as quais concordo.

A primeira é que há uma acepção de “ciência”, que é até prévia à revolução científica e que corresponde ao sentido de “episteme” usado pelos gregos, segundo a qual a filosofia, a história e outras disciplinas deste género são tão científicas quanto a física ou a matemática.

A segunda ideia, mais importante, todavia, surge no final do post "Demarcações", de Ludwig: segundo ele, nesta acepção lata de ciência, não há métodos pré-definidos que caracterizem a ciência, nem realidade alguma que escape à ciência. A ciência é o estudo epistemicamente virtuoso de tudo. Bom, ele não usa esta expressão, “epistemicamente virtuoso”. Esta expressão quer dizer apenas que se procura realmente a verdade, e não a vindicação das nossas ideias preferidas ou esperanças ou anseios profundos; que se procura evitar o erro; que se estimula a discussão crítica das ideias; que se procura refutá-las. Para realidades diferentes usamos metodologias diferentes. Basicamente, deitamos mão de tudo o que nos puder ajudar a compreender melhor a realidade. Concordo com esta ideia — já a tinha defendido no post “Ciência e Banha da Cobra”.

Não concordo com a ideia de que isto invalide distinções iluminantes entre diferentes ciências (e talvez Ludwig não queira dizer exactamente isto, apesar de o parecer). A matemática ou a lógica, assim como a filosofia, ocupam-se daquela parte (talvez irritante) da realidade que não parece poder ser estudada pela observação, pela medição, pelos métodos empíricos, enfim, que muitas pessoas identificam com a ciência. Isto porque, como no caso do post da Palmira, "Ciência, Pseudociência e Religião", se usa algo enganadoramente o termo “ciência” como abreviatura de “ciência empírica” — o que inclui a física e a biologia, mas também a história e a arqueologia, mas exclui a lógica e a matemática. Um dos traços do cientismo é desconsiderar sistematicamente toda e qualquer estudo da realidade que não seja um estudo empírico, baseado mais ou menos nos mesmos métodos da física, que é tomada como a rainha das ciências. Isto é um disparate; é tomar um aspecto particular dos métodos da física, que funcionam apenas porque se está a estudar determinados aspectos da realidade, como se tal aspecto fosse definidor da ciência, na sua acepção mais ampla.

O aspecto em que ambos concordamos, Ludwig e eu, é muito importante para o debate sobre o obscurantismo, as pseudociências e as formas supersticiosas e mágicas de viver e entender a religião, como é o caso do criacionismo (saber se há formas sofisticadas e intelectualmente defensáveis de viver e entender a religião é em si outro debate — eu penso que não, mas isso é disputável). Isto porque é muito comum os vendedores de banha da cobra defenderem dois tipos de ideias.

Primeiro, que há “outras realidades” que estão para lá dos métodos da ciência. Tomando o termo “ciência” na acepção ampla, não há tal coisa.

Segundo, que há outras metodologias menos “redutoras” do que as da ciência. Uma vez mais, tomando o termo “ciência” na sua acepção ampla não há tal coisa. Porque nessa acepção ampla, “ciência” é apenas a investigação cuidadosa da realidade, nada mais, deitando mão a tudo o que puder ajudar-nos a compreender melhor a realidade. A única razão pela qual não aceitamos videntes, por exemplo, na previsão meteorológica, ou livros sagrados em filosofia, é porque tais coisas não nos permitem compreender melhor a realidade, dado não terem um índice maior de acerto do que dizer a primeira tolice que nos vier à tola.

Daqui segue-se uma regra simples para detectar a banha da cobra intelectual. Se alguém defende uma ideia e começa logo a arranjar conversas complicadas sobre os limites da "racionalidade lógica" ou da "racionalidade científica" ou qualquer outro comentário sobre os termos da discussão que ponha em causa o carácter limitativo de imaginadas "regras" que nós estamos a impor, é porque é uma fraude. Na ciência, na filosofia, na história, na matemática, ninguém impõe regras arbitrárias de argumentação ou prova. Apenas pedimos provas ou argumentos, sejam lá eles quais forem, e a possibilidade de os estudarmos e discutirmos livremente. Nada mais. E isso, na acepção ampla, é a ciência. Só que este é um uso grego do termo, e não moderno -- se falarmos desta maneira, as pessoas vão pensar que estamos a falar apenas de física, biologia e coisas afins, excluindo a história ou a filosofia.

EVENTO E PESSOA DO ANO


A rádio TSF solicitou-me há dias que indicasse o evento nacional do ano assim como a pessoa, português ou portuguesa, do ano.

Para acontecimento nacional escolhi um que é também internacional: a assinatura do Tratado de Lisboa. Porquê? A União Europeia, depois do impasse a que conduziram as recusas do Tratado Constitucional na França e na Holanda, era mais uma desunião do que união. Na presidência alemã e também na portuguesa conseguiu-se, no meio de dificuldades várias, aquela plataforma mínima de entendimento. Não se vislumbra outra alternativa à Europa que não seja a consolidação da união tal como foi recentemente assinada em Lisboa. Para Portugal, então, não há mesmo alternativa nenhuma à União Europeia (na hipótese improvável de o governo querer referendar o Tratado de Lisboa, a pergunta deveria ser: “Concorda com a integração de Portugal na União Europeia ou pretende que o país saia da União?”). Já há uma Europa da economia e já há uma Europa da ciência. Pode e deve, com o novo tratado, haver mais e melhor Europa, da qual somos parte. A presidência portuguesa esteve hipervalorizada entre nós por uma formidável máquina de propaganda: por exemplo, as duas conclusões principais da cimeira Europa-Rússia eram o envio de uma missão europeia às eleições russas e a criação de um instituto de defesa dos direitos humanos, mas a missão não se concretizou e o instituto – que afinal era russo e a criar em Bruxelas! – está por se concretizar. Mas teve um final feliz com a cerimónia no Claustro dos Jerónimos e, passados poucos dias, com o alargamento da área de Shengen. Eu que, como muita gente, conheci muitas fronteiras fechadas a sete chaves por essa Europa fora não podia estar mais contente...

Para pessoa do ano escolhi Mónica Bettencourt Dias (na foto), a jovem cientista que investiga no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, problemas de divisão celular e que, depois de ter regressado do estrangeiro, viu este ano não só mais trabalhos publicados nas melhores revistas (depois da “Nature” foi a “Science” e a “Current Biology”) como também a distinção pública do seu trabalho através de vários prémios. Ela representa uma geração de jovens cientistas que estão a provar que em Portugal se pode fazer ciência de elevada qualidade. Não contente com o êxito da sua investigação, a Mónica tem também tido êxito no trabalho que tem empreendido de comunicação da ciência mostrando que se pode hoje, entre nós, não só fazer ciência de topo como ao mesmo tempo comunicá-la a não especialistas. O facto de ser mulher não será por acaso: Portugal é dos países do mundo com maior taxa de participação feminina em tarefas de investigação científica (nalguma coisa tínhamos de ser invejados!). O tema dos trabalhos premiados – estudo do centrossoma, o controlador da divisão celular – poderá tem implicações práticas: ele integra-se no combate em larga escala que a ciência biomédica está hoje a travar com esse problema sério da humanidade que é a doença cancerígena. A aposta na ciência pode ser uma questão de vida ou de morte, no caso do cancro de triunfo da vida perante a ameaça da morte.

Ciência, pseudo-ciência e religião

Não resisti a meter uma colherada na «conversa» virtual entre o Desidério e o Ludi, que entretanto extravasou para outras paragens virtuais, mais concretamente para o Portal Philosofia do outro lado do Atlântico.

Um cientista, que normalmente não está muito preocupado com este tipo de definições, sabe implicitamente o que é ciência (e sabe ainda melhor o que não é ciência) mas tem alguma dificuldade em defini-la explicitamente. O coordenador do meu grupo de investigação dá uma definição implícita ostensiva de (boa) ciência a todos os nossos alunos de investigação com uma série de artigos de leitura imprescíndivel.

Aliás, deveria ser o papel da escola ensinar o que é ciência como se ensinam cores e tornar assim desnecessária uma definição explícita de ciência. O florescimento de pseudociências e irracionalidades sortidas indica que, infelizmente, esse não é o caso.

A ciência surgiu como resultado das tentativas humanas de responder aos muitos «porquês» que a observação dos fenómenos naturais nos colocam. As primeiras explicações adoptadas para os fenómenos físicos eram assentes no «sobrenatural», por exemplo, a tempestade era explicada como um capricho do(s) deus(es) dos ventos. Por ser um capricho, esta explicação era completamente inútil, uma vez que não permitia qualquer tipo de previsão metereológica - o desenvolvimento de métodos de previsão dos fenómenos estudados está associado à explicação científica dos mesmos. Claro que há alguns que ainda rezam ou dançam por chuva mas poucos acreditam em «teorias» alternativas de «intervenção» divina/mágica pelo facto de os cientistas ainda não preverem correctamente alguns fenómenos climatéricos.

A ciência é simplesmente o resultado «natural» da filosofia helénica, uma explicação natural dos fenómenos da natureza assente na experiência. Tal como em todas as formas de conhecimento, em ciência queremos responder às perguntas que a observação do mundo sensível nos coloca, mas o que distingue a ciência das outras formas de conhecimento é a forma como chegamos à resposta, o método científico.

De facto, com a revolução científica do século XVII, a ciência começou a afirmar-se como uma área autonóma, demarcação que tem a ver essencialmente com a construção do seu próprio método, desligado da reflexão filosófica. Isto é, desenvolveram-se «procedimentos epistemicamente virtuosos» para explicar naturalmente fenómenos observáveis, procedimentos esses que evoluiram para o que chamamos «método científico». E é o método científico, a forma sistemática, objectiva e rigorosa como a ciência investiga «aspectos da realidade», que a distingue de outras áreas do conhecimento humano, cada uma delas com a sua própria forma de investigar seriamente a natureza das coisas.

Assim, a ciência tenta explicar fenómenos observáveis propondo hipóteses, testando essas hipóteses de forma metódica e, se os testes comprovarem a hipótese, construindo modelos ou teorias que são apenas generalizações científicas baseadas em observações empíricas. Se alguma observação não for explicada pela teoria (ou modelo) ou se as previsões que permite falham, isso significa que esta tem uma aplicação limitada ( como as leis de Newton) ou que deve ser abandonada - se se arranjar uma explicação melhor, se tal não for possível, continuamos a aplicá-la mas conscientes das suas limitações.

É fácil distinguir pseudo-ciências, que vendem banha da cobra como algo «cientificamente» provado, porque falham os requisitos científicos, ou seja, são hipóteses (mirabolantes) não testadas, que contradizem resultados experimentais, são impossíveis de reproduzir e não têm qualquer utilidade de previsão -para além de normalmente serem fraseadas de forma que as torna inconfundíveis, no tal «arrozoado infeliz de termos científicos misturados pelo DJ Vibe».

Em relação a «verdades» religiosas, que não pretendem ser obtidas de forma científica, mas sim terem sido «reveladas» ou «inspiradas», seja pelo espírito santo seja pelo que for, o problema é que muitas pretendem ser «verdades» em relação ao mundo natural, logo acessíveis a exame experimental. Não é complicado confirmar que as «revelações» do deus Bhairavnath ao chefe de engenharia da Nepal Airlines Corporation sobre o problema de um Boeing 757 deixaram um pouquinho a desejar: o sacrifício exigido e consumado de duas cabras, uma preta e outra branca, não resolveu os problemas do avião.

Não interessa se estas «revelações» se referem a coisas supostamente «sobrenaturais», o natural e sobrenatural distinguem-se apenas se os conseguimos ou não explicar, por exemplo, durante muitos anos pensou-se que a esquizofrenia era uma possessão por seres «sobrenaturais» e hoje em dia são poucos os que consideram o exorcismo um bom tratamento para um esquizofrénico.

Também não interessa que as verdades religiosas se refiram a coisas imateriais se essas coisas imateriais tiverem efeitos observáveis, o fotão é imaterial, não tem massa, e ninguém pensa que emana de Mjolnir, o martelo mágico de Thor.

Assim, muitas verdades religiosas têm sido comprovadas falsas ao longo dos anos, empurrando as «revelações» para o perímetro da nossa ignorância. Claro que verdades referentes a seres que não sejam observáveis nem tenham efeitos no mundo sensível, o bule de chá de Bertrand Russell ou o que seja, estão completamente fora do domínio da ciência e lá permanecerão.

Para muitos, como Daniel Dennet, a religião é um fenómeno de origem humana, e portanto natural, que considera no livro «Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon» a ciência um dia poderá explicar, nomeadamente explicando o como e o porquê de os homens terem inventado os deuses. O filósofo usa essencialmente a biologia evolutiva e a economia como ferramentas para compreender a utilidade da religião na evolução social da humanidade.

A evolução social da humanidade e um perímetro da nossa ignorância cada vez mais longínquo explicam os conflitos que a religião tem com a ciência: para além da ambição comum de fornecerem uma leitura coerente do mundo sensível, a religião e a ciência ocupam o mesmo espaço, o do pensamento humano. Durante séculos, a religião manteve uma posição de preponderância, oferecendo aos homens uma verdade inquestionável e indispensável. Hoje verificamos exactamente o inverso e são poucos os que buscam nas religiões as respostas ao mundo sensível que estas durante milénios ofereceram ao Homem.

Acho excelente que o Alfredo afirme que «A teologia deve retirar das teorias científicas suficientemente fundamentadas as implicações que introduzam modificações no próprio discurso teológico» mas parece-me que de facto nenhuma teologia o está a fazer...

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

O que é a ciência?

Respondendo a uma resposta de uma resposta, o Ludwig define assim a ciência:

“Ciência é usar informação para obter descrições correctas e detalhadas.”

Esta definição não parece funcionar por ser demasiado restrita e demasiado lata. Ou seja, por parecer incluir na ciência o que claramente não é ciência e por excluir da ciência o que claramente é ciência. É como definir ser humano como animal racional: há seres humanos que não são racionais porque nascem sem cérebro e se houver seres racionais noutros planetas, eles não serão seres humanos.

É demasiado restrita porque coloca fora da ciência todas as teorias... ah... científicas erradas. A física de Newton não seria ciência, por exemplo, dado não ser uma descrição correcta, apesar de ser uma descrição detalhada. E é demasiado lata porque muitas descrições detalhadas e correctas não são claramente ciência: qualquer armazém de peúgas tem nos seus inventários uma descrição correcta e detalhada das peúgas que tem em armazém, mas não dizemos que o armazenista é um peugólogo.

Além disso, grande parte do que queremos que a ciência nos faça não são meras descrições correctas e detalhadas — são explicações. Na verdade, é com base nas explicações que depois podemos fazer previsões, que são descrições do porvir.

E, finalmente, podemos dizer que a matemática pura é uma descrição correcta e detalhada — mas a diferença crucial é que tais descrições correctas e detalhadas não são descrições correctas e detalhadas do universo espaciotemporal, apesar de podermos usar algumas para descrever o universo espaciotemporal; e não são descrições obtidas empiricamente, por observação, medição, etc.

A ciência não se pode confundir com os resultados da ciência. E seja como for que definamos a ciência, qualquer definição que exclua a matemática do domínio da ciência é o resultado de se estar a definir “ciência empírica” apenas.

Mas posso estar a ser injusto com o Ludwig. Há alguma maneira de fazer a ciência esgotar o domínio da racionalidade, como ele quer? Sim. Vejamos como. Se tivermos uma noção epistémica, e não metafísica de justificação, como sugeri no post “O que é a justificação?”, e se tivermos uma noção igualmente epistémica de ciência, como sugeri no post “Ciência e erro”, podemos conceber a ciência, entendida amplamente, como um conjunto de procedimentos epistemicamente virtuosos, sobre determinados aspectos da realidade. Dito assim, isto incluirá a física, mas também a matemática ou a história. Ou a filosofia, já agora. Neste sentido, o termo “ciência” seria sinónimo de “investigação séria das coisas”. Mas o Ludwig rejeita isto explicitamente.

Mas se aceitarmos isto, podemos depois podemos distinguir as diferentes maneiras de investigar seriamente a natureza das coisas. Há ciências empíricas fortemente matematizadas, como a física; outras que trabalham fortemente com modelos matemáticos, que é apenas uma forma particular de “matematizar o real”, para usar uma expressão estúpida dos historiadores da ciência. Há outras ciências que não são empíricas, como a matemática. E há coisas como a história ou a filosofia.

Pessoalmente, parece-me bizarro chamar “ciência” à história ou à filosofia. Por isso, defendo que a ciência não esgota os modos epistemicamente virtuosos de investigar a natureza das coisas, e restrinjo a palavra “ciência” ao que em qualquer caso é realmente reconhecido como ciência: física, biologia, matemática e outras ciências deste jaez, excluindo a filosofia e a história, por exemplo.

E pronto. Agora o Ludwig vai dizer que está tudo errado, e foi para isso mesmo que escrevi este post — pois como Fernando Pessoa, “Concordo e cedo sempre que me falam com argumentos. Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão, seja quem for o seu procurador.” Força, Ludi!

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Criacionismo=Desonestidade


Esta animação de oito minutos intitulada «Inner Life of a Cell» («A vida íntima de uma célula»), é uma maravilha em NewTek LightWave 3D, SOFTIMAGE XSI e Adobe After Effects criada pela XVIVO (uma companhia de animação científica) para a Universidade de Harvard. Esta animação foi igualmente alvo de um roubo puro e duro por um dos apóstolos do Desenho (pouco) Inteligente, William A. Dembski, em apenas mais um exemplo da desonestidade inerente a todos os criacionismos.

De facto, a animação foi o ponto alto de uma «conferência» de Dembski na Universidade de Oklahoma - pela qual este recebeu a módica quantia de 10 000 dólares. Não percebo como Dembski, que integra o Discovery Institute onde a maioria dos membros é formada em Direito, pensou ser pacífico (provavelmente pensou que ninguém na plateia reconheceria o documentário) roubar a propriedade de outrem, apresentá-la como se fosse sua e, pior ainda, distorcer a mensagem do documentário de forma a conformá-la com as patetices religiosas que vende como (pseudo)ciência.

Claro que distorcer ciência é a única saída dos criacionistas para aldrabar as audiências de crédulos para que discursam e explica porque razão não «pregam» para audiências com um pouco mais de conhecimentos científicos. A desonestidade intelectual e o hábito de deturparem ciência ou citarem completamente fora do contexto inúmeros cientistas (apresentando-os falsamente como «descrentes» da evolução) explica também porque razão a comunidade científica se irrita tanto com as contínuas mentiras dos criacionistas.



Como refere um dos muitos bloggers de ciência que comentou o caso, na referida conferência Dembski, para além de apresentar Michael Behe como o cientista que «olhou» para dentro da célula e descobriu as «máquinas moleculares» - o que é absolutamente falso, Behe olhou para a literatura sobre o tema e distorceu-a à medida das suas crenças religiosas - introduziu o vídeo como se fosse seu (e, claro, removeu todas as partes com os créditos da animação).

A Universidade de Harvard, avisada pela blogger que descobriu o roubo (plagiarismo não é o termo mais adequado para descrever o que Dembski fez), entrou em contacto com Dembski que, para variar, mentiu descaradamente sobre o acontecido. Para azar de Dembski estavam na audiência inúmeras pessoas que confirmaram a falsidade das suas desculpas esfarrapadas. Claro que à boa maneira criacionista o Discovery Institute aproveitou a ocasião para carpir vitimização mas as patéticas acusações de perseguição dos IDers por parte de «darwinistas» foram rapidamente desmascaradas na blogosfera científica norte-americana!

OLHOS NOS OLHOS COM A DIFERENÇA


Participei a convite dos organizadores (Associação Portuguesa dos Pais e Amigos das Crianças com Deficiência Mental de Coimbra) no 1º Encontro “Olhos nos Olhos com a Diferença”, realizado no dia 8 de Dezembro passado no Auditório do Museu de Conímbriga.

O Encontro assinalava o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (3 de Dezembro) e a recta final de 2007 Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos. Os objectivos eram, nas palavras dos organizadores: "Responsabilizar a sociedade civil na promoção de estratégias para uma integração efectiva; contribuir de forma positiva para a quebra de tabus associados à deficiência; e incentivar a reflexão sobre a realidade portuguesa contribuindo assim para a redução do estigma, da discriminação e da marginalização das pessoas com deficiências". Eu, que fui aluno de um professor com deficiência e que tenho alunos também com deficiência (um deles, paraplégico, tem dificuldades em chegar ao meu gabinete), não podia ficar indiferente.

O tema que me foi dado era “Ciência e Deficiência”. Desenvolvi o tema apresentando alguns nomes do extenso rol de cientistas que foram, de uma maneira ou de outra deficientes. Deficiência não é falta de ciência! Um dos nomes mais importantes é o de Galileu Galilei, que ficou cego, segundo alguns autores em virtude das suas observações directas do Sol com o telescópio (em 2009 celebrar-se-á o Ano Internacional da Astronomia para assinalar os 400 anos das primeiras observações com o telescópio efectuadas pelo sábio italiano). Também o astrónomo alemão Johannes Kepler ficou com a vista seriamente diminuída. Outro cego notável nas ciências exactas foi Leonard Euler, o matemático suíço de quem este ano estamos a festejar os 300 anos do nascimento. Foi ele quem declarou quando cegou completamente: “Agora tenho menos distracções”, querendo dizer que se podia dedicar quase inteiramente à matemática. Na química, um famoso deficiente visual foi o inglês John Dalton, que detectou nele mesmo o defeito que tem hoje o seu nome (daltonismo) de que padecem cerca de dez por cento dos homens, eu próprio incluído.

Embora haja alguns cientistas com deficiência de audição (refiram-se Charles Bonnet, o naturalista suíço do tempo do iluminismo, e Henrietta Levitt, astrónoma norte-americana oitocentista), é curioso referir a relação com a surdez de dois tecnólogos do século XIX. A mulher do escocês Alexander Graham Bell, a quem é geralmente atribuída a invenção do telefone, era surda. A mãe de Bell também era surda, pelo que Bell jamais pôde telefonar à sua mulher ou à sua mãe… O pai era professor de surdos, tendo criado até um método especial. O próprio Bell ensinou surdos usando o método do pai, tendo encontrado como aluna a sua futura mulher, que foi uma extraordinária defensora dos deficientes auditivos. Por outro lado, o grande inventor norte-americano Thomas Edison, inventor do fonógrafo, também tinha um grande grau de surdez.

Na actualidade, o cientista deficiente mais conhecido é o inglês Stephen Hawking a quem foi diagnosticada quando era estudante uma doença neurológica degenerativa. O facto de ter ficado reduzido a uma cadeira de rodas e sem fala não o impediu de chegar a Professor Lucasiano na Universidade de Cambridge, o lugar ocupado por Isaac Newton, de ter escritos muitos artigos com impacte na área da cosmologia e de ter feito chegar a ciência a todo o lado através de livros como “Uma Breve História do Tempo”. A notícia recente de ter voado a bordo de um avião num voo “sem gravidade” veio dizer-nos que se pode ser portador de deficiência grave e, apesar disso, concretizar actividades que pareciam impossíveis…

Pessoas com deficiências mentais dificilmente poderão seguir uma carreira científica, mas pessoas com doenças mentais podem e têm-no feito. Embora chamando a atenção para as diferenças entre deficiência mental e doença mental, valerá a pena referir aqui cientistas com problemas do foro mental (dos quais os mais conhecidos são esquizofrenia e a doença bipolar) que atingiram patamares elevados nas suas áreas. Um dos exemplos mais conhecidos é o do norte-americano John Nash, o matemático Prémio Nobel da Academia de 1994 que parece ter recuperado de esquizofrenia (a propósito, Einstein teve um filho com essa doença, que acabou por morrer numa instituição psiquiátrica). O filme “Mente Brilhante” (“Beautiful Mind” no original) celebrizou Nash. Há outros cientistas com problemas mentais que singraram na ciência: basta referir o físico austríaco Ludwig Boltzmann, que se suicidou, ou o matemático alemão Georg Cantor, que morreu num hospital psiquiátrico, os dois do século XIX e início do século XX, que sofreram de doença bipolar, antigamente chamada doença maníaco-depressiva, um mal que alguns autores têm associado à criatividade artística.

No encontro "Olhos nos Olhos com a Diferença" um professor de Psicologia chorou ao contar o caso da sua filha que ficou esquizofrénica. E nós chorámos com ele. Agora que o Ano Internacional das Oportunidades para Todos está a terminar não é demais chamar a atenção para os nossos co-cidadãos diferentes. Tudo o que fizermos por eles será pouco!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

A mediana da atracção

«It is certainly not true that there is in the mind of man any universal standard of beauty with respect to the human body. It is however, possible that certain tastes in the course of time become inherited, though I have no evidence in favor of this belief.» Charles Darwin, «The descent of man».

Há uns anos tive como prenda deste dia, ou antes, desta noite, o livro «Uma investigação filosófica sobre a origem das nossas ideias do sublime e do belo» de Edmund Burke. Para Burke, a beleza é «uma qualidade dos corpos que age necessariamente sobre o espírito humano, através dos sentidos», de certa forma conciliando o que propunha Platão - para quem o belo é o bem, a verdade, a perfeição, isto é, a beleza existe em si mesma, a concepção do belo é independente da avaliação humana - e Aristóteles, que considerava que o belo era inerente ao homem e não podia ser dissociado do mundo sensível.

Mas para além da contemplação estética dos filósofos e da presença da questão do belo nas inquietações humanas, o tema beleza não é alheio à ciência, nomeadamente, apesar de a ciência não nos explicar (nem o pretender) porquê o João casa com a Maria tem tentado investigar porque razão o João acha a Maria atractiva e vice-versa. Embora o conceito não seja uniforme, há faces que eu considero atraentes e a minha irmã nem por isso, e existam mais factores que não apenas a beleza física que determinam se uma determinada pessoa é ou não atraente para outra, existe certamente uma relação entre beleza e atracção (nem que seja aquela à primeira vista).

Há muito que se considera existirem alguns factores biológicos associados à atracção, nomeadamente por elementos do sexo oposto, como se verifica no restante mundo animal.

Por exemplo, nos macacos Uacari de cara vermelha (ou macaco-inglês, por associação com o rubor alcoólico) que vivem em florestas da Amazónia inundadas - nas margens dos rios de água barrenta chamados «rios de água branca» de origem andina onde vivem igualmente mosquitos transmissores de malária -, a cara vermelha é um atractivo sexual muito importante. A cara vermelha indica que o macho é imune à malária e um uacari não imune, facilmente identificado pela facies pálida, é um celibatário ignorado pelas fêmeas.

Na realidade, muitas características sexuais secundárias, como as majestosas plumas dos pavões macho, são uma espécie de «garantia» para a fêmea dos bons genes de quem as exibe e uma indicação de que é boa ideia escolher esse exemplar para progenitor da prole respectiva. Embora exista uma componente socio-cultural muito forte que determina os nossos padrões de beleza, algumas características que consideramos belas são provas da «excelência» dos genes, como seja o facto de em regra não considerarmos atractiva uma pessoa muito assimétrica - pensa-se que a simetria humana está associada a um bom sistema imunologógico.

Factores biológicos à parte, contrariamente ao que muitos pensariam, há beleza na mediania e muitas faces que consideramos belas são protótipos da nossa espécie, uma média das características faciais mais comuns. Fiquei surpreendida com o que obtive num site onde os nossos leitores podem repetir a minha experiência de fazer a média de caras que considerei pouco atraentes e descobrir que a média dessas caras resulta muito melhor que as componentes, ou seja, que a mediania pode ser muito atraente.

O «Mundo da Ciência» apresentou recentemente um artigosobre beleza muito interessante especialmente porque devolve à beleza parte do mistério que estudos anteriores tinham «roubado» e porque indica que há algo mais do que a mediania no que consideramos belo. Uma equipa de psicólogos publicou na edição de Dezembro da revista «Journal of Experimental Psychology: Human perception and performance» um artigo que, tal como no site indicado, refere que achamos a média bela, mas:

«Existem características fora da média que são particularmente atractivas. Os nossos resultados sugerem que enquanto a média é uma das componentes do que torna alguém atractivo existe pelo menos outra componente ... não explicável pela medianidade».

O estudo não mergulhou nas questões mais profundas que o conceito de beleza implica, nomeadamente não se debruçou muito sobre o que esta componente fora da média pode ser, mas sugere que um desvio muito grande da mediania, por exemplo, um nariz demasiado pequeno, resulta em caras bizarras que os voluntários que participaram no estudo consideraram pouco atraentes. O mistério da beleza permanece mas estou certa que se alguma vez for desvendado, o fascínio e atracção que o belo exerce sobre nós permanecerá inalterado...

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...