sábado, 29 de abril de 2023

EÇA NO PANTEÃO?

(Em modo de pilhéria)
O Eça no Panteão?
Na companhia de quem?
No Panteão, um gozão?
Ali, que pilhéria tem?
Há risota no Panteão?
Pode xingar-se um ministro?
Ali, come-se faisão?
Que local tão sinistro,
pra escritor tão luminoso!
Quem inventou panteão
era um cara caveiroso,
à procura de prisão.
No Panteão há Paris?
No Panteão diz-se mal
e come-se perdiz?
Existe ali carnaval?
Mandar-se pró Panteão
um Eça pilherioso
é obra de manganão,
de espírito tortuoso!
Ponha-se lá a Agustina
e os livros que escreveu;
junte-se-lhe naftalina
e faça-se um museu!
Mas fique em paz o Eça,
na Tormes que tanto amava,
e com vigor se impeça
que saia de onde estava!

                                                    Eugénio Lisboa

sexta-feira, 28 de abril de 2023

O GATO E OS NICHOS

                                Aos meus inúmeros gatos
O gato é um grande inventor de nichos:
não cessa nunca de os descobrir,
dando total vazão aos seus caprichos,
em busca de lugar onde dormir.

Para fazer de nicho, tudo serve:
um livro, um papel, uma panela, 
uma caixa de cartão que conserve 
o gato bem aquecidinho, nela!

Quanto mais inverosímil, melhor
é o nicho: o gato gosta do bizarro
e até serve o colo de Monsenhor!

O gato, até dentro de um jarro,
se acomoda, sem dificuldade:
tudo se verga à sua vontade! 

Eugénio Lisboa

APELO AO PR CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO:

 Eu assinei. Para mais informações ver:

https://olugardalinguaportuguesa.blogs.sapo.pt/



Dirigimo-nos a Vossa Excelência apelando à Sua intervenção no sentido da defesa da Língua Portuguesa, tal como esta nos surge definida no n.º 3, do artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa.

Permita-nos, Vossa Excelência, o exercício do nosso dever cívico e obrigação de invocarmos a Lei Fundamental, designadamente no que tange aos deveres e obrigações que dela decorrem para todos os agentes do Estado, e, em especial, para o Presidente da República, enquanto primeiro e máximo representante do Estado. Estado a quem cabe, nos termos da alínea f) do artigo 9.º também da Constituição da República Portuguesa “[a]ssegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da Língua Portuguesa”.

Bem sabemos, Excelência, que, nos últimos anos, em concreto desde que o Estado impôs aos portugueses a aplicação de uma grafia que consideramos inconstitucional, tais deveres não têm sido cumpridos.

Esta não é uma questão de somenos importância. É um imperativo de cidadania. É um dever que nos é imposto pela Constituição da República Portuguesa. Trata-se, na verdade, da defesa do nosso Património Linguístico –  a Língua Portuguesa –  da nossa Cultura e da nossa História, os quais estão a ser vilmente desprezados.

Apelamos a Vossa Excelência que, nos termos consagrados na Constituição da República Portuguesa e no uso dos poderes conferidos ao Presidente da República, diligencie uma efectiva promoção, defesa, valorização e difusão da Língua Portuguesa.

Apelamos a Vossa Excelência que defenda activa e intransigentemente uma Língua que conta 800 anos de História.

Apelamos a Vossa Excelência que contrarie a imposição aos Portugueses da Variante Brasileira do Português, composta por um léxico que traduz acentuadas diferenças fonológicas, morfológicas, sintácticas, semânticas e ortográficas, e essencialmente baseado no Formulário Ortográfico Brasileiro de 1943.

Apelamos-lhe, Senhor Presidente da República, que proporcione às nossas crianças a possibilidade de escreverem na sua Língua Materna - naquela em que escreveram Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, José Saramago e tantos, tantos outros -, ao invés de numa grafia desestruturada, incoerente e desenraizada das restantes Línguas europeias, que também estão a aprender (Inglês, Castelhano, Francês).

Apelamos a Vossa Excelência, ao Presidente da República Portuguesa, mas, também, ao académico e cidadão Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, que recuse deixar às gerações futuras, como legado para a posteridade, a renúncia da nossa Língua, da nossa Cultura, da nossa História, de quase nove séculos.

Apelamos, em suma, a Vossa Excelência, que seja reconhecido e revertido o gravíssimo erro cometido e por via do qual o Estado Português adoptou o Acordo Ortográfico, anulando-o, e restituindo a Portugal e aos Portugueses a sua Língua.

Com os nossos melhores cumprimentos

quinta-feira, 27 de abril de 2023

EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO

Por Eugénio Lisboa

Somos um país de modas mais ou menos efémeras. De vez em quando, descobrimos uma moda nova e pomo-la de serviço, sem rei nem roque. Durante décadas e décadas, nunca ninguém se preocupou com o Panteão, nem sequer se lembrou de que ele existia. Mas quando alguém se lembrou dele, já nem sei a propósito de quê ou de quem, o Panteão passou a ser o prato de arroz doce de todos os banquetes culturais. Estar ou não estar no Panteão, eis a questão.

Quando uma personalidade de algum destaque cultural, científico, desportivo, militar ou político morria, aqui d’El-Rei que deve ir para o Panteão. À falta de melhor manjar, a comunicação social pegava neste e os opinantes ganhavam o dia. Tema qualquer serve, como diria a grande Irene Lisboa. 

Propunha-se levianamente despachar para aquele sítio feioso e pouco acolhedor os restos mortais de alguém, sem realmente se ter em conta se esse teria de facto sido um desejo do falecido ou dos seus próximos, em representação dele. 

Ora não é difícil supor que um Pascoais preferiria, de longe, ficar no Marão, um Régio, em Vila do Conde, um Ferreira de Castro, em Ossela ou Sintra, um Camilo, em S. Miguel de Seide ou Porto, um Torga, em São Martinho da Anta e um Eça, em Tormes. Isto, para dar só alguns exemplos. 

Se a autorização final deve caber ao Parlamento, a iniciativa da trasladação deve competir aos familiares, em consulta com os conhecedores profundos da obra e das idiossincrasias do falecido. Pensar que o Panteão é o desejo ardente dos notáveis é ignorar o enorme poder de atracção que outros locais, carregados de magnetismo emocional, possam ter tido para o ilustre falecido. Por exemplo, ser enterrado na terra natal, ou na terra em que se foi feliz ou junto do companheiro ou companheira de toda uma vida. 

Tais sítios são polos de atracção muito mais poderosos do que um Panteão álgido, hostil e escassamente visitado. Um Panteão, perdoem-me a franqueza rude, é mais um depósito pouco atraente do que um lugar aprazível, para final de percurso. A grande maioria dos grandes de França não se encontram sepultados no Panteão, estão no Père Lachaise ou noutros cemitérios onde preferiram ficar sepultados. 

Esta gritaria recente, para se enviar Eusébio, Amália, Sophia, para o Panteão, faz parte do nosso irredimível provincianismo, que não é capaz de ver para além de falsos cenários. Em Portugal, quando verificamos TODAS as personalidades de alto relevo, que nunca tiveram lugar no Panteão Nacional, apetece mesmo lá não estar.

A anunciada e próxima futura trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional é uma perfeita aberração e, ao que sei, não obteve a devida aprovação de quem de direito. Foi uma ideia oportunista e provinciana de alguém que é hoje ministro e que provavelmente conhece mal a obra e a personalidade do autor de O CRIME DO PADRE AMARO, mas conhece bem a arte de se tornar visível, à boleia de uma péssima ideia.

No Panteão de Paris, estão apenas os restos mortais de 75 personalidades, e a esmagadora maioria dos grandes escritores franceses não está lá. Dos escritores do século XX está lá só UM, André Malraux, e não estão lá Anatole France, André Gide, Marcel Proust, Henry de Montherlant, Romain Rolland, Paul Valéry, Paul Claudel, Colette, Georges Duhamel, Roger Martin du Gard, François Mauriac, Julien Green, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Aragon, Jean Giraudoux, Marcel Aymé, Maurice Barrès, Antoine de Saint.Exupéry, Jean Anouilh, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Jules Supervielle, Saint-John Perse, Jean Giono, Georges Simenon, etc.

NÃO ESTAR no Panteão está portanto longe de ser uma humilhação ou apenas razão de melancolia. Digamos que a melhor companhia até está cá fora e é cá fora, em Tormes, que Eça deve ficar. E ficará muito bem: estou certo de que assim o diria, se pudesse falar.

Eugénio Lisboa

terça-feira, 25 de abril de 2023

O LIVRE ARBÍTRIO COMO FIM DA EDUCAÇÃO EM DEMOCRACIA

Espero que num aniversário futuro da Revolução de Abril, além dos discursos políticos, das comemorações sociais e das análises jornalísticas, sem dúvida importantes, possa haver lugar para um debate sereno, honesto e construtivo acerca da responsabilidade que a escola pública tem na preservação e melhoramento do valor que é a democracia, bem como dos valores que lhes associam, com destaque para a liberdade. 

É preciso esse debate pois os desvios da escola pública em relação a tal responsabilidade são notórios e, por razões diversas, acentuam-se. Como educadores, ter-nos-emos esquecido que a nossa tarefa é levar, com base em conhecimento substancial, os mais jovens a desenvolverem uma estrutura de pensamento e de relacionamento que lhes permitirá fazer escolhas que serão as de adultos educados. Não quaisquer escolhas, portanto, mas aquelas que traduzem o bem, o bom, o verdadeiro, o certo, o justo...

O educador, sem impor escolhas axiológicas àqueles a quem caberá, no futuro, fazê-las, deverá formá-los para que possam fazê-lo em liberdade, ou seja, por si, de modo deliberado, sem coação. Formar para que possam exercer o livre arbítrio é tudo fazer, como diz Rómulo/Gedeão, para que cada um possa "escolher fatalmente o bem".

O leitor perceberá melhor o que pretendo dizer lendo o belíssimo poema do professor/poeta.

POEMA DO LIVRE ARBÍTRIO

Há uma fatalidade intrínseca, insofismável
inerente a todas as coisas e nelas incrustada.
Uma fatalidade que não se pode ludibriar,
nem peitar, nem desvirtuar,
nem entreter, nem comover,
nem iludir, nem impedir,
uma fatalidade fatalmente fatal,
uma fatalidade que só poderia deixar de o ser
para ser fatalidade de outra maneira qualquer,
igualmente fatal. 

Eu sei que posso escolher entre o bem e o mal.
Eu sei que posso fatalmente escolher entre o bem e o mal.

E já sei que escolho o bem entre o mal e o bem.
Já sei que escolho fatalmente o bem.
Porque escolher o bem é escolher fatalmente o bem,
como escolher o mal é escolher fatalmente o mal.
O meu livre arbítrio
conduz-me fatalmente a uma escolha fatal. 

 António Gedeão, Obra poética, 2001, 211,

NO 25 DE ABRIL, PELO QUE ELE SIGNIFICA, PENSEMOS EM PROFUNDIDADE O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR PÚBLICA

Martha Nussbaum, filósofa norte-americana, professora de Direito e Ética da Universidade de Chicago tem sido, nos últimos anos, sobejamente citada em discursos e trabalhos sobre Educação, tanto na América, do Norte e do Sul, como na Europa. Um livro que publicou em 2015 - Sem fins lucrativos - conseguiu particular destaque nesses discursos e trabalhos, o que é de louvar pois trata-se de uma obra centrada na formação humana em democracia e para a democracia. 

Contudo, ela não conseguiu sequer beliscar ao de leve a marcha imparável que os sistemas de ensino seguem, delineada, como sabemos, pelas grandes organizações globais, sobretudo pelas que são afectas aos mercados financeiros. Invocando sempre a democracia, esses sistemas rumam em sentido que lhe é contrário. E fazem-no de diversas formas: uma delas é retirar protagonismo às humanidades, sobretudo às de matriz clássica, e às artes, mas também à dimensão humanística das ciências. No currículo escolar - que insistem em declarar "humanista" - fica uma certa técnica e as indispensáveis soft skills.  

O que acima disse tem tudo a ver com as comemorações de hoje em Portugal: a democracia como sistema de governo político e de vida social. A minha proposta a quem tem responsabilidades educativas é que aprofunde o sentido do "direito à educação", que corre o risco de se tornar um slogan vazio ou, pior, uma justificação para manter as crianças e os jovens escolarizados à revelia dos fins que devem conduzir a educação escolar. Na verdade, não é por este direito ser repetido em manifestações, como tem acontecido nas últimas semanas no nosso país, que ele encontra o significado que lhe é devido. 

Deixo, então, o leitor com as claríssimas palavras de abertura da dita obra, no pressuposto de que elas alinham a Educação com a Democraciasociedades democráticas proporcionam uma educação favorável à democracia. Essa educação tem de ser robusta em termos de conhecimento e orientada para a formação humana. Sem garantia dos resultados, não conhecemos melhor caminho...
"Estamos no meio de uma crise de enormes proporções e de grave significado global (…) refiro-me a uma crise que, como um cancro, passa em grande parte despercebida: (...) uma crise mundial da educação. Estão a ocorrer mudanças radicais no que as sociedades democráticas ensinam aos seus jovens, e essas mudanças não têm sido bem pensadas (...) estão a descartar, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia. Se essa tendência prosseguir, todos os países estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros. É disso que depende o futuro da democracia. 
Que mudanças radicais são essas? Tanto no ensino básico e secundário como no ensino superior, as humanidades e as artes estão sendo eliminadas em quase todos os países do mundo. Consideradas pelos administradores públicos com enfeites inúteis para se manterem competitivas no mercado de global, estão perdendo rapidamente o lugar nos currículos e, além disso, nas mentes e nos corações dos pais e dos filhos. 

De facto, o que poderíamos chamar de aspectos humanistas das ciências e das ciências humanas – o aspecto construtivo e criativo, e a perspectiva de um raciocínio rigoroso – está também a perder terreno, já que os países preferem correr atrás do lucro de curto prazo por meio do aperfeiçoamento das competências lucrativas e extremamente práticas adequadas à geração do lucro. 
Embora esta crise esteja diante de nós, ainda não a enfrentamos. Seguimos em frente como se nada tivesse mudado (...) ainda não fizemos uma verdadeira reflexão sobre essas mudanças – na verdade, nós não as escolhemos – e, no entanto, elas limitam cada vez mais o nosso futuro (…) parece que nos estamos esquecendo da alma, do que significa para a mente abrir a alma e ligar a pessoa com o mundo de um modo rico, subtil e complexo; do que significa aproximar-se de outra pessoa como uma alma, em vez de fazê-lo como um simples instrumento útil ou um obstáculo aos seus próprios projetos; do que significa conversar, como alguém que possui alma, com outra pessoa que consideramos igualmente profunda e complexa. 
A palavra “alma” (…) significa a capacidade de pensar e de imaginar que nos torna humanos e torna as nossas relações humanas mais ricas, em vez de relações meramente utilitárias e manipuladoras (…) se não aprendermos a enxergar tanto o eu como o outro dessa forma, imaginando em ambos capacidades de pensar e de sentir, a democracia está fadada ao fracasso porque ela se baseia no respeito e na consideração, e estes, por sua vez, se baseiam na capacidade de perceber os outros como seres humanos, não como simples objectos (...).
Com a corrida pela lucratividade no mercado global, arriscamo-nos a perder valores preciosos para o futuro da democracia (…). Não devemos ser contra a ciência de qualidade e a educação técnica (...). A minha preocupação é que outras competências, igualmente decisivas correm o risco de se perder no alvoroço competitivo; competências decisivas para o interior de qualquer democracia e para a criação de uma cultura mundial generosa, capaz de tratar, de maneira construtiva, dos problemas mais prementes do mundo. 
Estas competências estão ligadas às humanidades e às artes: a capacidade de pensar criticamente, a capacidade de transcender os compromissos locais e abordar as questões mundiais, como um 'cidadão do mundo'; é, por fim, a capacidade de imaginar, com simpatia, a situação difícil em que o outro se encontra (...).
A educação não acontece somente na escola (…) no entanto, justifica-se o foco nas escolas (...) porque é nestas instituições que as transformações mais perniciosas têm ocorrido, à medida que a pressão pelo crescimento económico leva a mudanças no currículo, no ensino e no financiamento (…). 
A educação não é útil apenas para a cidadania. Ela prepara as pessoas para o trabalho e, o que é fundamental, para uma vida que tenha sentido (…). Toda s democracia moderna é também uma sociedade na qual as pessoas diferenciam bastante em função de um grande número de parâmetros, entre eles religião, etnia, riqueza e classe, incapacidade física, género e sexualidade (...). Um modo de avaliar qualquer sistema educativo é perguntar quão bem ele prepara os jovens para viver uma forma de organização social e política [em função d]essas características. 
Sem o apoio de cidadãos adequadamente educados, nenhuma democracia consegue permanecer estável (...) a capacidade refinada de raciocinar e reflectir criticamente é crucial para manter as democracias vivas e bem vigilantes (…). E a capacidade de imaginar a experiência do outro – uma capacidade que quase todos os seres humanos possuem de alguma forma – precisa de ser bastante aumentada e aperfeiçoada, se quisermos ter alguma esperança de sustentar instituições decentes que fiquem acima das inúmeras divisões que qualquer sociedade moderna contém. 
O interesse nacional de qualquer democracia moderna exige uma economia sólida e uma cultura empresarial próspera (…) esse interesse económico também exige que recorramos às humanidades e às artes a fim de promover um ambiente administrativo responsável e cauteloso e uma cultura de inovação. 
Portanto não somos obrigados a escolher entre um modelo de educação que promova o lucro e outro que promova a cidadania. Como uma economia próspera exige as mesmas competências que servem de suporte à cidadania, os defensores do que chamei de «educação para o lucro» ou «educação para o crescimento económico» adoptaram uma concepção pobre do que é necessário para alcançar os seus próprios objectivos. 
No entanto, uma vez que a economia sólida é um instrumento para alcançar objectivos humanos, e não um objectivo em si, esse argumento deve estar subordinado ao argumento que diz respeito à estabilidade das instituições democráticas. A maioria de nós não gostaria de viver numa nação próspera que tivesse deixado de ser democrática. 
(...) Os educadores que defendem o crescimento económico não se limitam a ignorar as artes: eles têm medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para executar programas de desenvolvimento económico que ignoram a desigualdade (…) 
Todos os indivíduos possuem uma dignidade humana inalienável que precisa ser respeitada pelas leis e instituições, capacidade de reconhecer os seus concidadãos como pessoas com direitos iguais não obstante as suas diferenças.

Nussbaum, M. (2015). Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes.1. A crise silenciosa

VENHA ABRIL

Abril desgosta ainda tanta gente!
A liberdade faz tanto mau sangue!
Por que será que um viver deprimente,
que deixa o espírito exangue,

atrai ainda tanto militante
de causas brutais e assassinas?
O passado não serviu de purgante?
Para que servem as vossa oficinas,

ó poetas que acham que a linguagem
não passa de estéril masturbação
e é só subserviente pajem

dos que preferem castrar a canção? 
Venha Abril para nos incomodar
e fazer, mais uma vez, acordar! 

Eugénio Lisboa

A FÍSICA DE PARTÍCULAS ENTRE NÓS

Meu artigo no último «As Artes entre as Letras»:

Os físicos teóricos Gustavo Castelo-Branco e Margarida Nesbitt Rebelo, do IST - Instituto Superior Técnico, e o físico experimental João Varela, do CERN – Organização Europeia para a Investigação Nuclear resolveram escrever uma história da física de partículas no nosso país. É uma história recente cujo início os autores datam de 1985, quando Portugal, sob o impulso do físico José Mariano Gago, aderiu ao CERN. A capa do livro – intitulado A Física de Partículas em Portugal. Origem e desenvolvimento e publicado na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva – mostra uma fotografia do dia chuvoso em Genebra, na Suíça, onde se situa o CERN, com a bandeira portuguesa hasteada pela primeira vez. Lá estão os três autores e José Mariano Gago, para além de Eduardo de Arantes e Oliveira, à data Secretário de Estado da Investigação Científica, e do alemão Herwig Schopper, então director-geral do CERN. A capa mostra também o grande detector CMS, onde se descobriu a bosão de Higgs há pouco mais de dez anos (João Varela foi director-adjunto da colaboração CMS, na qual têm participado vários portugueses, tal como na colaboração paralela realizada com o detector ATLAS).

O livro fornece, depois de uma introdução, um resumo da história da física de partículas no mundo, que resultou de avanços na física nuclear (o núcleo foi descoberto por Ernest Rutherford em 1911), e da situação actual desse ramo da física, tanto na perspectiva teórica como na perspectiva experimental, uma vez que as duas têm puxado uma pela outra (por exemplo, o bosão do Higgs foi previsto no início dos anos de 1960, pelo que demorou mais de quatro décadas a ser encontrado!). Os dois autores teóricos apresentam o quadro actual das partículas fundamentais e das suas interacções: existem quatro partículas - os quarks up e down, o electrão e o neutrino (embora haja mais duas gerações de partículas semelhantes, a energias mais elevadas e instáveis). E existem quatro forças: a força nuclear forte (que une os quarks nos protões e neutrões e estes entre si no nucleio atómico), a força nuclear fraca (responsável pela transformação de um neutrão num protão), a força electromagnética (responsável pela ligação dos electrões no núcleo atómico e, em geral, de toda a química) e a força gravitacional (responsável pela atracção entre os astros). Chegámos a esta visão usando aceleradores de partículas, nos quais há detetores como o CMS e o ATLAS, mas também usando raios cósmicos, vindos de explosão de estrelas, com detetores colocados acima da atmosfera. Partículas e forças estão organizados num quadro, conhecido por «modelo-padrão»: foram unificadas todas as forças, usando considerações matemáticas de simetria, excepto a gravitacional.  A descoberta do bosão de Higgs foi a coroa de glória desse modelo, que, no entanto, é insatisfatório: para além da exclusão da gravidade, há outras questões em aberto. Por isso o grande acelerador do CERN continua a funcionar: aí protões colidem uns com os outros à velocidade da luz.

No capítulo 3, «Origem da Física de Partículas em Portugal», os autores retratam a evolução da física de partículas nacional depois da adesão ao CERN. Enfatizam, como seria de esperar porque conhecem melhor, o trabalho realizado no IST à volta do LIP - Laboratório de Física de partículas, e do GTAE - Grupo Teórico de Altas Energias. Decerto que há uma pré-história da Física de Partículas em Portugal (Castelo-Branco foi aluno no liceu de Lourenço Marques de José Luís Rodrigues Martins, que tinha feito uma tese doutoral sobre física de partículas na Universidade de Coimbra em 1945, sob a orientação do austríaco Guido Beck, refugiado de guerra) e que há outras instituições, como a Universidade de Coimbra, que também contribuíram para o esforço nacional na compreensão do mundo muito pequeno. Mas o depoimento agora dado pelos físicos de Lisboa é utilíssimo sobre o trabalho na área nas últimas décadas.  Os protagonistas directos são vozes indispensáveis para mostrar como foi e é a construção da ciência.  Segue-se um capítulo sobre o futuro da física de partículas, onde surgem as questões do modelo-padrão e os planos para novos aceleradores. O assunto é de grande actualidade: desde que foi descoberto o Higgs, o CERN ainda não conseguiu revelar partículas novas ou quaisquer outros fenómenos que nos indiquem como poderemos ir além do modelo actual.

A parte que me prendeu mais do livro foi o capítulo final, intitulado «Vidas de físicos: notas autobiográficas», no qual os autores apresentam breves autobiografias.  Sugiro ao leitor que comece por aí… São documentos com o seu lado objectivo, contendo relatos factuais, mas também com o seu lado subjectivo, contendo as impressões sobre a sua vida em vários países ao longo dos seus bem-sucedidos percursos de aprendizagem. Castelo-Branco esteve nos Estados Unidos e na Alemanha antes de ficar professor no IST, Nesbitt Rebelo esteve também nos Estados Unidos e ainda na Espanha e na Áustria. E Varela teve formação em França e na Suíça antes de se fixar no CERN, mantendo sempre a ligação com o seu país natal. Na comunicação de ciência tem faltado a transmissão do modo como se aprende e faz ciência ao mais alto nível, o que é tão interessante como os resultados da ciência. O livro é completado por notas, índice onomástico, apêndice, referências e figuras.

 É uma obra essencial para quem queira saber como foi a construção da ciência em Portugal no último quartel do século XX e no primeiro deste século. A investigação científica «explodiu» em Portugal nesse período, sendo a física de partículas um dos domínios em que Portugal se internacionalizou fortemente, entrando em laboratórios mundiais. Outros cientistas portugueses, praticantes de outros ramos, podiam pensar em fazer exercícios semelhantes ao que agora fizeram, de forma pioneira, estes três físicos portugueses…

EINSTEIN EM VIAGEM

Meu artigo no último JL:

Fez no dia 21 de Março precisamente cem anos que terminou, com o regresso de comboio de Zurique para Berlim, a mais longa das viagens de Albert Einstein. Ele tinha partido de Zurique a 6 de Outubro de 1922 para embarcar em Marselha no navio japonês S.S. Kitano Maru. Percorreu o Mediterrâneo, até Porto Said, no Egipto, à entrada do Canal de Suez, que atravessou. Navegou depois pelo Índico parando em Colombo (Sri Lanka), Singapura e Hong Kong, para depois aportar a Xangai, na China, e, finalmente, a Kobe, no Japão. Foi na escala em Xangai que soube, por telegrama, da atribuição do Prémio Nobel da Física de 1921 pela sua explicação do efeito fotoeléctrico, que contribuiu para o desabrochar da teoria quântica, e não pela teoria da relatividade, à qual o filósofo francês Henry Bergson se opunha.  Passou mês e meio no País do Sol Nascente a dar palestras científicas e a fazer turismo. No regresso visitou a Palestina durante doze dias (foi a Jerusalém e a Telavive) e  Espanhadurante três semanas (foi a Barcelona, Madrid e Saragoça). Einstein estava então no auge da sua carreira:  a teoria da relatividade geral de 1915 tinha sido confirmada com as observações de equipas inglesas de um eclipse solar na ilha do Príncipe e no Ceará (Brasil) em 1919. No Japão, o público encheu anfiteatros para ouvir as suas prelecções, feitas em alemão, sem que a maioria percebesse o mínimo que fosse. Na estação de comboio de Tóquio uma multidão reuniu-se para o saudar, tal e qual faria a uma estrela pop nos dias de hoje. Por vezes admira-se mais o que não se compreende, haveria de notar Charlie Chaplin quando se encontrou com Einstein aos Estados Unidos em 1931 («o mundo admira-o sem entender uma palavra do que diz»).

Acabam de sair do prelo da Gradiva os Diários de Viagem de Albert Einstein. Extremo Oriente, Palestina e Espanha 1922-1923, com edição de Ze’ev Rosenkranz, judeu tal como Einstein.  O sábio, nascido em 1879 em Ulm, na Alemanha, era um judeu laico, pois nunca entrou numa sinagoga para rezar (de facto, nunca se sentiu alemão, tendo adquirido a nacionalidade suíça). A obra contém a reprodução em fac-símile do manuscrito escrito pelo físico e a tradução portuguesa, feita por mim, a partir da versão inglesa, cotejando com o original alemão. Aos Diários, que Einstein nunca pensou publicar, acresce uma extensa introdução do editor, alguns documentos da época complementares, uma cronologia e um pormenorizado corpo de notas.  No seu conjunto, é um livro notável, pois revela um cientista muito humano, sempre atento ao mundo à sua volta, quer este fosse natural quer humano. Einstein sentiu-se muito bem no Japão, tendo gostado da paisagem e dos seus habitantes: diz palavras muito amáveis sobre os japoneses, em contraste com o que diz dos chineses. Foi recebido como um cientista alemão, pois ele era afinal professor da Universidade de Berlim. Os seus colegas japoneses estavam ávidos de aprender a nova física, então em franco desenvolvimento no Ocidente, e o convite chegou através de uma editora japonesa. Já nessa altura o Japão era uma espécie de Alemanha do Oriente, pois tinha uma grande cultura organizacional, que decerto ajuda a explicar o «milagre japonês» após a guerra. Em contrapartida, Einstein revela-se muito interessado pela cultura japonesa: aprecia as artes, embora experimente alguma dificuldade com a música.  

O físico, que viajou com a sua segunda esposa, Elsa (à primeira, Mileva, ele tinha prometido, como compensação do divórcio, o dinheiro do na altura hipotético Nobel). A bordo do navio trabalha numa teoria de unificação da gravidade do electromagnetismo, que nunca concluiu. Numa carta escrita em Singapura a 19 de Janeiro de 1923 dirige-se assim ao dinamarquês Niels Bohr, com quem haveria de ter uma discussão amigável sobre a natureza da teoria quântica em 1927: «Querido, ou melhor, amado Bohr! (…) o meu amor pela sua mente cresceu ainda mais. (…) A viagem é esplêndida. Estou encantado com o Japão e com os japoneses e tenho a certeza de que também ficaria. Além do mais, uma viagem marítima como esta é uma magnífica experiência como um pensador - tal como um mosteiro. Acresce o calor acariciante perto do equador»

Na Palestina, Einstein visitou várias colónias judaicas, que estavam a transformar o deserto em solo arável.  Einstein queria ajudar no esforço sionista, em particular na criação da Universidade Hebraica de Jerusalém, à qual haveria de deixar o seu espólio.

Em Espanha, foi recebido com pompa e circunstância pela Real Academia das Ciências e pelo rei.  Achou os discursos gongóricos. Foi três vezes visitar o Museu do Prado. Num passeio a Toledo ficou deslumbrado pela pintura «Enterro do Conde de Orgaz», de El Greco: «está entre as imagens mais profundas que já vi em toda a minha vida.»  

Nestes Diários Einstein revela o seu carácter humanista quando vê os miseráveis puxadores de riquexós nas ruas de Colombo e os pobres chineses que trabalhavam duramente em Hong Kong, mas diz cobras e lagartos dos mercadores árabes que o assediam à chegada a Porto Said e, pior que tudo, afirma não descortinar a razão da atracção dos chineses pelas chinesas. Alguns trechos são polémicos, designadamente certas afirmações de Einstein, que, nos dias de hoje, podem ser consideradas racistas.

Dá a entender que há povos com menos aptidões do que outros em certos domínios (professores portugueses que encontra em Colombo disseram-lhe que os chineses são incapazes de raciocínios lógicos). Fora da Europa, Einstein descobriu a sua identidade europeia, tal como Natália Correia, que, quando foi pela primeira vez à América, descobriu que era europeia. Com a fascinante escrita de Einstein viajamos com ele ao mundo dos anos de 1920, mas convém fazer um esforço para ver o autor com os olhos da época.

A viagens seguinte de Einstein seria, em 1925, desde a Alemanha até ao Uruguai, à Argentina e ao Brasil, passando incógnito por Lisboa. Foi na capital portuguesa que ele ficou impressionado pelas varinas que fotografou: «Vendedora de peixe fotografada com um cesto de peixe na cabeça, gesto orgulhoso, maroto.»  Os diários de viagem de Einstein à América do Sul já foram publicados em inglês. Oxalá um dia os possamos ler em português.

NOVIDADES DA GRADIVA ABRIL 2013

 Já disponível: "A Arte de Argumentar", de Anthony Weston. De €15,00 por €13,50. 

A necessidade de bons argumentos talvez seja hoje maior do que nunca. Mas não bastam bons argumentos para se argumentar bem. Por isso, com o sentido de oportunidade que caracteriza as suas escolhas, na quinta edição de A Arte de Argumentar Anthony Weston não podia ser mais certeiro: apresenta um novo capítulo sobre o debate público e torna claro que argumentar bem requer igualmente uma ética. Trata-se, diríamos, de uma ética da cortesia, a qual se exprime numa prática decente e amável de argumentar. Observadas as regras dessa ética e, claro, as regras para a construção de bons argumentos, a inteligência de todos os que participam nos mais variados debates, sejam eles públicos ou não, será estimulada de modo firme e elegante. 

«Este é um livro fundamental de ‘como fazer’ para quem quer usar razões e provas em apoio de conclusões, para quem quer ser claro em vez de confuso, persuasivo em vez de dogmático, e melhor na avaliação dos argumentos dos outros.» Debra Nails, Michigan State University

Já disponível: "Os Três Primeiros Minutos", de Steven Weinberg. De €16,00 por €14,40. 

Hoje sabemos que o Universo teve um início (o Big bang) há cerca de 14 mil milhões de anos. Os Três Primeiros Minutos, saído em 1.ª edição na Gradiva em 1987 é «o» grande clássico sobre o Big Bang, e os clássicos são eternos. Fornece uma introdução breve e muito acessível à moderna cosmologia, dizendo quais são as provas que hoje temos da origem do mundo: o afastamento das galáxias, a radiação cósmica de fundo e as proporções de núcleos leves no cosmos. 

«Este livro é o primeiro que apresenta informações detalhadas sobre a origem do universo (...). Como tal, é um imenso serviço prestado a todos nós. Embora tivesse conhecimentos da história do universo primitivo, nunca percebera, até ter lido este livro, como ela era afinal consequência da observação específica e cálculos cuidadosos.» Isaac Asimov

Já disponível: "Nestor Burma, vol. 4 - Boulevard... Ossada", de Léo Malet e Emmanuel Moynot. De €18,00 por €16,20. 

 No final da Primavera, Nestor Burma e a sua secretária Hélène Chatelain recebem a visita de um negociante de diamantes que os põe no rasto de um enigmático chinês. Suspeitando não só de chantagem, mas também de um caso de tráfico de diamantes, Nestor Burma vê-se a braços com mortes e esqueletos... Ossos do ofício, diriam alguns! Uma investigação para um detetive de choque que não se agasta com minudências em causas de envergadura, no 9.º arrondissement de Paris…" Liberdade de Expressão", de Nigel Warburton.

Liberdade de Expressão Nigel Warburton €14,00 por €12,60 

Num contexto em que cada vez mais o cidadão comum tem à sua disposição veículos de transmissão de opinião e de acesso à informação, este é um tema desafiante. Até onde pode ir a liberdade de expressão? Como se define? Será independente do contexto? O livro analisa temas que vão do Holocausto à pornografia. Apresentando argumentos filosóficos e casos de estudo actuais, combina áreas tradicionais de debate com novas áreas ou novos desafios à liberdade de expressão, decorrentes, por exemplo, da tecnologia digital e da internet

Reedições:

. Três Diálogos sobre a Morte Pedro Galvão €15,00 €9,00 

Será a morte realmente um mal para quem morre? Na esteira de Epicuro e de Lucrécio, alguns filósofos negam que a morte seja má. Muitos outros, discordando dessa posição contrária ao senso comum, propõem explicações diversas do mal da morte. O desacordo filosófico estende-se à natureza da própria morte. Será que esta consiste no termo da existência de um organismo? Ou consistirá antes, por exemplo, na cessação da consciência? Num registo bem-humorado mas rigoroso, realçado com ilustrações oportunas e esclarecedoras, este livro tira partido das potencialidades do diálogo filosófico sem cair nas suas armadilhas, proporcionando uma introdução única à filosofia da morte. 

"Salazar e a sua época", volumes 1 e 2, de José António Saraiva. Salazar e a sua época José António Saraiva Volume 1 €17,00 por €15,30 Volume 2 €17,00 por €15,30 

A HISTÓRIA DO ESTADO NOVO COMO NUNCA FOI CONTADA Uma obra em três volumes que desmonta alguns mitos acerca do Estado Novo como a queda de Salazar da cadeira ou a morte de Humberto Delgado a tiro. E revela os passos dados por Caetano para a independência das colónias.

. Nestor Burma, vol. 1 - A Noite de Saint-Germain-des-Prés Léo Malet e Emmanuel Moynot €16,50 por €14,85 

Paris, Verão de 1957. Nunca a fauna das letras e das artes poderia atrair Nestor Burma a Saint-Germain-des-Prés. Mas dois «casos» a rebentar no bairro – um suicídio insuficientemente credível para ser verdade e um avultado roubo de jóias – ele é obrigado a arrastar os chanatos até lá…"

segunda-feira, 24 de abril de 2023

VIVER COM UM SÓ LIVRO

Por Eugénio Lisboa

Já algures contei que a escritora inglesa Nancy Mitford dizia ter lido em toda a sua vida um único livro: WHITE FANG, de Jack London (na tradução portuguesa, CANINOS BRANCOS). Achou o livro de tal modo bom, que não sentiu necessidade de ler mais nenhum. Quando sentia desejo de ler, ia buscar esse famoso romance, porque tinha a certeza de ir gostar, ao passo que não poderia ter tal certeza, se fosse buscar outro livro qualquer. 
Isto é, o livro de London “secava” , para ela, todo o território literário em volta. Obra que lhe não trouxesse aquele mundo e lhe não desse a mesma espécie de prazer não lhe interessava. Assim dito, pode parecer bizarro e é-o, dado o extremismo que implica. Mas, de certo modo, penso que todos vivemos algo análogo, embora não durando, para nós, tal exclusividade num livro só, a vida inteira. Porque eu próprio experimentei já algo de parecido com isto, embora por um período relativamente curto.

Vou dar alguns exemplos. Quando, por altura dos meus catorze ou quinze anos, me caiu nas mãos um exemplar esfrangalhado do admirável romance de Stendhal, LE ROUGE ET LE NOIR, numa bela tradução de José Marinho, o livro de tal modo se apossou de mim, que, durante algum tempo, livro que não tivesse as virtudes apaixonadas e acutilantes deste não me dizia nada e só me aborrecia. A candura da Senhora de Rênal ou o orgulho da Mathilde de La Mole, dados naquela prosa lavada, acutilante e voltaireana, tomaram completa conta de mim. Ou se era Stendhal ou se não era nada. A sedução foi de tal ordem, que, chamando-se o protagonista do romance Julien Sorel, pus-me logo a escrever um romance intitulado HISTÓRIA DE JULIÃO, para ombrear com aquele admirado rival.

Victor Hugo, na adolescência, desvelava assim a sua ambição: “Quero ser Chateaubriand ou nada.” Eu dizia com os meus botões: “Quero ser Stendhal ou nada!”. Quem não foi megalómano, na adolescência, é porque nunca foi realmente adolescente. Até porque os adolescentes megalómanos se convertem, anos depois, em adultos com os pés bem na terra. Assim aconteceu comigo que, em devido tempo, com a alma a sangrar, mandei para o cesto dos papéis a minha HISTÓRIA DE JULIÃO. Ninguém tem de ter acesso às nossas tropelias. 

Tempos depois, encontrei, no CANDIDE de Voltaire, na sua prosa ágil e na sua ironia atrevida de “gamin”, a mesma sedução envolvente, que encontrara em Stendhal. Era um dizer um enorme número de coisas, em poucas palavras e em velocidade de cruzeiro. Uma verdadeira sedução! 

Mas o grande terramoto de deslumbramento foi a descoberta do teatro de Oscar Wilde, de quem li tudo, peça por peça, numa agonia de nunca poder ser tão brilhante como ele. Como é que se podia escrever, sem se ser capaz daquela cintilação sem igual?

Wilde, para mim, como Jack London, para Nancy Mitford, secava todo o território da literatura à minha volta. Era como os eucaliptos que secam a terra em seu redor. O brilho demasiado intenso ofusca e agoniza: como se pode não tê-lo? E punha-me, desastradamente, a inventar fórmulas infalíveis para produzir paradoxos…

Pela vida fora e num número muito variado de países, mas sobretudo em Londres, nunca perdi uma encenação de uma peça de Wilde. A sedução foi para ficar. Nem na trágica queda final da sua vida, na sórdida exposição nos tribunais, acusado de pedofilia, Wilde resistiu a fazer faiscar o seu génio cintilante, mesmo ao preço de agravar o seu caso. Foi como ele previra, anos antes: “Na minha obra, pus só talento, génio pu-lo na minha vida.” Génio de brilho negro, mas ofuscante.

Outro livro que me marcou profundamente, por volta dos meus 16 anos, foi o volumoso romance americano, da autoria de um escritor hoje esquecido, Henry Bellamann, intitulado KING’S ROW, publicado em 1940. Situado numa pequena cidade ficticiamente conhecida como King’s Row, desenvolve uma história complexa, em volta das vidas de cinco crianças e da evolução das suas vidas. O romance abriu, para mim, muitas portas sobre temas “quentes” como a loucura, o sadismo, o sexo, o incesto, o homossexualismo e o suicídio, tudo urdido com inegável mestria. 

Também, por algum tempo, só queria encontrar outro livro como este, mas, infelizmente, Bellamann tentou escrever uma sequela para KING’S ROW, o mais famoso dos seus romances, tendo porém falecido, de um ataque cardíaco, em 1945. KING’S ROW teve um enorme êxito, embora rodeado de acesa controvérsia, por ter revelado a hipocrisia de uma pequena cidade, desvelando, com grande mestria, temas tabus, naquela época. Eu li este livro, poucos anos depois de ter visto uma inesquecível adaptação cinematográfica dele, dirigida pelo notável Sam Wood, com interpretações de Ann Sheridan (Randy), de Robert Cummings (Parris Mitchel), Ronald Reagan (Drake), Claude Rains, o inesquecível polícia de CASABLANCA (Dr. Alexander Tower), Betty Field (Cassandra Tower), Charles Coburn (Dr. Gordon) e Nancy Coleman (Louise Gordon)

O filme omite um ou outro tabu e emagrece bastante a história, mas deixa, ainda assim, uma forte impressão. Foi este romance que esteve na origem de posteriores romances de grande êxito comercial, como o PEYTON PLACE, de Grace Metalious e outros que se seguiram, inspirados por aquele guião dos anos quarenta.

Por fim, Hemingway, com o seu ADEUS ÀS ARMAS e uma colectânea de contos magistrais, que li, avidamente, no meu sexto ano do liceu. O seu estilo descascado, directo, declarativo, seco e assassino, fascinou-me. E custou-me caro: no exame de Português-Latim, na prova de Português, dei-me ao luxo de me pôr a imitar, com grande gozo, a prosa do autor americano. O que me salvou a nota de Português- Latim foi o dezoito que tive a Latim, porque o professor que me classificou a prova de Português, não informado da egrégia qualidade do futuro autor do OLD MAN AND THE SEA, puniu-me com um miserável catorze, não se apercebendo de que eu estava apenas a querer dar um novo ímpeto ao português narrativo… à boleia do grande inovador do conto moderno! Injustiças!

Eis alguns exemplos de livros e autores que, por um tempo, secaram tudo à minha volta. Quem não passou por isto?

Eugénio Lisboa

sábado, 22 de abril de 2023

VALE A PENA FAZER UM SONETO?

Vale a pena construir um soneto,
sílaba a sílaba, bem contadas,
sem que a medida tenha cianeto
que assassine as palavras aladas?

Um soneto é como uma casa,
se mal calculada, ela desmorona. 
Tal como na casa, nada transvasa,
o que a faria algo trapalhona.

Um rigor que acolhe a emoção 
e, com elegância, abraça a ideia,
sem se tornar maçadora lição,

não merecerá que o leitor o leia,
com amorosa e séria atenção?
Visto que o rigor é inspiração?

Eugénio Lisboa

DE QUE POESIA SE GOSTA? QUE POESIA SE ADMIRA?

Por Eugénio Lisboa

Haverá aferidores seguros para avaliar a qualidade da boa poesia? O que é um bom poema? Como se pode estar certo de que o nosso gostar é um bom indicativo de que o poema é bom? 

Fiz, um dia, parte de um júri de poesia e eu e outro membro do júri inclinávamo-nos claramente para um determinado livro. O terceiro membro pôs-se ao alto, de forma muito categórica, muito assertiva, de alguém que nunca tinha dúvidas e nunca se enganava e declarou alto e bom som: “Esse, de maneira nenhuma!” Confesso que, tendo alguma formação científica, tanta certeza me chocou. 

Um grande físico teórico do século XX (que alguns equiparam, em grandeza, a Einstein), costumava prevenir alunos e colegas que tudo quanto ele dizia, devia sempre ser tomado como pergunta e não como afirmação. Ora, sendo o território da ciência constituído por areias muito menos movediças do que o território da literatura, e tendo os cientistas tantas incertezas, que pensar dos literatos que têm tantas certezas?

As certezas bem marteladas, acerca da solidez de edifícios assentes em pilares de duvidosa resistência, inculcam sempre um défice de inteligência, nos portadores de tais certezas. Os poetas têm dito, ao longo dos séculos, as coisas mais diversas sobre o que faz a boa poesia, sobre o que é um bom poema, qual, para eles, é o poema favorito. Depois de uma viagem, sempre interessante, por esse território de definições e escolhas, fica-se no final, mais inseguro do que antes do começo da viagem.

O belo poeta brasileiro, Mário Quintana (que traduziu, para o Brasil, o grande romance de Proust), disse esta coisa intensa, sugestiva, mas que deixa de fora muita boa poesia que admiramos: que um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que é ele que nos está a ler e não nós a ele. Paul Celan diz uma coisa igualmente bela e sugestiva, mas que não cobre, nem de longe, muito boa poesia: “Um poema é uma espécie de regresso a casa.”

Cada vez mais, penso que ainda o mais adequado, nestas matérias, é a humildade. A alguém a quem perguntaram qual o seu poema favorito, respondeu: “Quando vier a primavera”, de Pessoa. Perguntaram-lhe porquê. Respondeu: “Não sei porquê.” A mim, muitas vezes, quando me perguntam o que é um bom poema, sou tentado a dizer: “É um poema que me deixa versos no ouvido”.

Pode ser um critério duvidoso, mas convivo bem com esta dúvida.

Eugénio Lisboa

quinta-feira, 20 de abril de 2023

O CÉU E O INFERNO EUROPEUS

Recebi este texto, cuja autoria desconheço. 
Partilho-o com os leitores do De Rerum Natura. 
Eugénio Lisboa
Todos os polícias são ingleses
Todos os vinhos são franceses 
Todos os carros são alemães 
Todos os amantes são italianos 
Todos os climas são gregos 
Tudo é organizado pelos suíços

O INFERNO EUROPEU É ONDE:
Todos os polícias são franceses
Todos os vinhos são alemães
Todos os carros são gregos
Todos os amantes são suíços
Todos os climas são ingleses
Tudo é organizado pelos italianos

ENSINAR COM SERIEDADE

Disponibilizo aqui o último texto que escrevi para o Ponto SJ - Portal dos Jesuítas Portugueses.


quarta-feira, 19 de abril de 2023

A INESQUECIDA COMPANHEIRA

À memória da Maria Antonieta

Foi há muito, em tarde de domingo,
num restaurante grego, afastado, 
que te vi, qual elegante flamingo,
para mim, discretamente pousado. 

Eras bonita, atenta, discreta,
falavas pouco, mas com muito acerto,
tinhas uma dignidade quieta,
deixaste, ali, meu coração desperto!

Eras morena, certa, sossegada,
amiga de ler, sem ostentação.
Pensei que, se me fosses tu doada,

não mais esqueceria a doação.
Foste minha invulgar companheira,
hás de sê-lo até eu ser poeira!

Eugénio Lisboa

terça-feira, 18 de abril de 2023

QUARENTA E DUAS PLATAFORMAS ou A VIDA ESCOLAR PLATAFORMIZADA

Quarenta e duas plataformas digitais para uso das escolas e dos professores! Eu sabia que eram muitas, mas quarenta e duas!!! António Carlos Cortez contou-as e deve tê-las contado bem. Nas suas palavras:
Sumários eletrónicos, portarias, horários, reuniões com colegas e com direções, com pais e com alunos, tudo passa pelo ecrã. Temos o GIAE, o SIGAE/ IGA; ele há o site da DGE, o Extranet e o IAVE; ele é o MEGA (manuais escolares) e o portal dos Recursos Humanos; temos o DGEST/Recorra e o DocGest; não faltam o SIIESTE (edifícios escolares) e o SISE (Segurança Social); e para assuntos relacionados com o acompanhamento psicológico dos alunos, vamos ao Psicólogos POCH e para matricular os estudantes vamos ao Portal das Matrículas; para compras públicas o VORTAL e, se ainda se lembram de bibliotecas, temos o SIRBE... 
 Conclui dizendo:
Enfim, a lista é longa, o tempo para ensinar, de facto, é pouco.
Concordo por inteiro. De resto, seria difícil não concordar. O tempo na escola, para professores e alunos, deveria ser, para ensinar e para aprender, no contexto da relação pedagógica ou fora dela, individual e/ou colegialmente. Mas não é assim que acontece, o tempo tem sido aprisionado pela burocratização e pela plataformização, que se associam para perturbar e controlar o trabalho escolar.

Além disso, faz-se crer aos professores que as plataformas são formidáveis e que eles têm de ser ágeis no seu uso. Qualquer dificuldade deriva de uma incompreensível falta de destreza, da falta de capacidade para entender e memorizar caminhos e veredas, possibilidades e truques.

A quem interesse esta questão, recomendo vivamente a leitura do texto indicado ao lado, bem como o relatório que incluo nas referências. Os professores, têm o dever de se informar para reivindicarem o tempo de que precisam para estudar, planificar,  ensinar, orientar os alunos e avaliá-los.

Referências
  • Cortez, A. C. (2023). O digital no ensino: uma fábrica de cretinos. Público, 16 Abril (ver aqui).
  • Fernandes, P. & Leite, C. (Coord.) (2022). A utilização das plataformas e tecnologias digitais em escolas/ agrupamentos de escolas: contributos para reflexão. Centro de Investigação e Intervenção Educativas, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. ISBN 978-989-8471-45-1
  • Lima, L. (2021). Máquinas de administrar a educação. Dominação digital e burocratização aumentada. Educação e Sociedade. Campinas, v. 42, e249276. 

Mesa Redonda - Astrobiologia

domingo, 16 de abril de 2023

HOJE, AMANHÃ

Hoje é o passado de amanhã.
O que hoje está aqui, tão vivo
recordar-se-á, depois, num divã,
suave tesouro, já mal cativo.

Hoje, é tudo cheio de luz bem clara,
iluminando todos os recantos.
O hoje está cheio de vida rara,
onde tudo são vibrantes espantos!

Amanhã, um suave apagar
irá colocar um mui fino véu,
no que hoje está a fulgurar.

Amanhã, já será um novo céu,
a cobrir uma outra realidade
e os sortilégios de nova cidade!

Eugénio Lisboa

quinta-feira, 13 de abril de 2023

O ESFINGE-GORDA OU A TRAGÉDIA DE FICARMOS AQUÉM

A grande dor de ficarmos 
Aquém foi descoberta pelo Sá-Carneiro.
Este, coitado, visou o Além,
mas, para isso, faltou-lhe o dinheiro.

Tudo, a ele, saiu muito mal:
quando, por fim, descobriu que o sexo
talvez estivesse a ficar normal,
ficou sem meios para o amplexo

e resolveu recorrer à estricnina.
Até nisto, não teve muita sorte:
aquela fez-lhe, do corpo, uma ruína,

que tirou dignidade à sua morte:
tanto inchou, que ficou Esfinge Gorda,
bem menos génio do que Papa-Açorda!

Eugénio Lisboa

O MUNDO NOS LIVROS DA ZIGURATE: CARLOS VAZ MARQUES E BáRBARA BULHOSA À CONVERSA COM CARLOS FIOLHAIS, 15/4, 16H, COIMBRA


 

quarta-feira, 12 de abril de 2023

terça-feira, 11 de abril de 2023

SONETO DE ESCÁRNIO E MALDIZER

Os portugueses não vão descansar,
enquanto o CHEGA não for governar.
Depois, vão esfalfar-se a lamentar
que já não autorizam a pensar!

Há uma espécie de querer abismo,
o desejo masoquista de cismo,
um gostinho de corporativismo
e um encosto de Bolsonarismo.

O português é bom a amochar,
dá-lhe jeito, pode lamuriar
e, até, no final, ele vai gostar!

Democracia é chata de aturar,
todos gostam bué de refilar,
o que faz saudades do Salazar!

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Só posso na lágrima encontrar

Só posso na lágrima encontrar

A luz distante do teu olhar.  

E o sol, o sol fulgurante,

Como se estivesse a chorar.

A DUVIDOSA MORTALIDADE DOS GATOS

A uma gatinha de nome Matilde.
O facto de os gatos serem mortais
é uma grande falha do universo.
Se os gatos são os mais belos animais,
serem mortais é muito controverso!

O que foi que criou o universo
é possível que fosse omnipotente,
mas, ou era totalmente perverso,
ou nada tinha de omnisciente.

Conceber um gato que é mortal
é como dizer ao sol que se apague!
A perfeição do gato é imortal,

não sendo, mesmo nada, uma blague.
Dizer que o gato não é imortal
é chamar ao Papa anticlerical!

Eugénio Lisboa

sábado, 8 de abril de 2023

A Faca

Descoberto por Peter Jacob Hjelm, em 1778, o molibdênio, metal prateado, tem um ponto de fusão altíssimo, de 2622 ºC, e baixa volatilidade; não reage com o oxigénio nem com ácidos fracos, sendo usado em ligas metálicas; para além disto, é estável a altas temperaturas e tem uma dureza de 5,5 na Escala de Mohs.

O aço inoxidável é uma liga metálica constituída por ferro e cromo (este último, à semelhança do molibdênio, não reage com o oxigénio, pertencendo, ambos os elementos químicos, aos metais de transição e ao sexto grupo da tabela periódica). A estrutura do aço inoxidável pode também conter níquel (até 30%) e estar dopada com molibdênio (0-2%) que lhe confere uma maior dureza e uma resistência à tração maior (é mais difícil quebrá-lo).

Usado no fabrico de facas, o aço inoxidável foi inventado em 1913 por Harry Brearley. Pouco tempo depois, o poeta húngaro, Attila József, escreveu, sobre o facto de, para os seus conterrâneos, a poesia e uma faca se assemelharem, o seguinte:

Quando nasci tinha uma faca na mão.

Dizem: é poesia.

Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.

Nasci para ser homem.

Quem também nasceu para ser homem e poeta foi João Luís Barreto Guimarães. No ano passado, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa. No último livro, que editou em 2020, Movimento, podemos ler este poema que contém instruções para o manuseio de facas de aço inoxidável:

 

A Faca 


Lave e seque

a faca

quando a usar pela primeira vez. A faca deve

ser lavada e enxaguada

à mão. A faca fica inutilizada se

for lavada

à máquina. Limpe muito bem a faca após

cada utilização. Esse cuidado previne

a propagação de bactérias. O aço de molibdeno

(de que é feita a faca) mantém-se

mais tempo afiado do que

o aço

normal. Não use amoladores de faca em

aço inoxidável. Evite cortar alimentos (se

duros ou congelados) porque isso pode fazer com

que a faca se parta. Ao dividir alimentos (num

plano horizontal) vá oscilando

a faca (em

movimentos contidos) sobre a

tábua de madeira. Guarde muito bem a faca longe

do uso indevido. Não saia de casa

com a faca. Não a leve para o trabalho.

Não mate o seu chefe

Com a faca.

Assim, devemos nós, homens, seguir à risca as instruções do poeta, e, nas nossas deambulações, no asco e angústias, não nos lembrarmos nunca de uma faca, nem sequer em pensamentos, como Mário Sá- Carneiro: Tenho impressão de ter em casa a faca...

 

P.S: Santa Páscoa


sexta-feira, 7 de abril de 2023

“Cenários” para a educação global

As mais recentes reformas dos sistemas de ensino públicos, levadas a cabo em vários países decorrem de uma política supranacional que conta já com várias décadas. Na elaborada e sedutora “narrativa” em que é veiculada, destaca-se a figura designada por “cenários para a educação do futuro”, difundida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a partir do seu programa Schooling for Tomorrow (SfT), orientado para a “educação do futuro”.

Essa figura está longe de ser clara e, portanto, de se deixar entender. Por isso, partindo do seu enquadramento mais geral - "cenários para o mundo do futuro" -, recuperámos duas versões: uma apresentada no início do século e outra mais atual, fomentada pela Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e pela crise que a pandemia Covid-19 provocou. 

Apresentamos o exercício num artigo, com vista a melhor compreender as ditas reformas, que se fazem crer globalmente desejáveis, inovadoras, consensuais e urgentes.

A referência é a seguinte: Damião, M. H. & Delgado, C. (2023). “Cenários” para a educação global: um projeto de futuro delineado no passado e afirmado no presente. Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, vol. 30. e14412. Acesso: http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/14412

Maria Helena Damião e Cátia Delgado

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Só o amor receia

I)

Só o amor receia

Um fio de água!

II)

Numa aplicação, para conhecer árvores e flores,

Talvez um salgueiro não seja bem um loendro

Ou pode estar por aí por detrás de um loendro.

Pelo menos um dente-de-leão é um dente-

-de-leão. ainda assim, nunca descures o tempo.


quarta-feira, 5 de abril de 2023

MANUAL DO CALCULISTA

Por Eugénio Lisboa

Texto antes publicado na Revista LER, Primavera de 2023

Dizia o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, que ninguém se diverte tanto como o indivíduo que diz sempre o que pensa. De facto, quando se espera dele uma resposta convencionalmente acomodatícia, a inesperada verdade nuaznha que lhe sai dos lábios espalha à sua volta um tumultuoso e divertido embaraço.

O escritor francês Henry de Montherlant, um dos maiores prosadores do século XX, propunha a seguinte fórmula eminentemente saudável: “A verdade, só a verdade, mas não toda a verdade.” Isto é, nunca mentir, por calculismo oportunista, mas omitir uma verdade que possa tornar-se dolorosa ou mesmo catastrófica, para terceiros, muito mais do que para o próprio. 

O dramaturgo Ibsen já tinha feito um aviso dilacerante, sobre os perigos de se dizer sempre TODA a verdade, custe o que custar, na sua peça frequentemente encenada, O PATO SELVAGEM. Mas, repito: não dizer ocasionalmente o que se pensa é apenas calá-lo e não substituí-lo por uma mentira.

O calculista substitui o que pensa pelo que lhe CONVÉM pensar, para obter determinados proveitos. A sua vida torna-se uma perfeita canseira, tentando inventariar todos os nichos que lhe não convém incomodar, a bem de um futuro glorioso. Estar constantemente a fazer cálculos oportunistas e cobardes sobre as consequências de se pensar assim ou assado é, além de cobarde, bastante inestético. Como dizia alguém, “a vida não é uma estratégia de relações públicas. Pode muito bem dizer-se o que se pensa”. 

O nosso milieu literário está contudo recheado de calculistas, que desenvolvem, com grande determinação, toda uma estratégia da glória, que lhes traz muitos frutos, mas lhes provoca um desgaste de energias incomensurável: quem aliciar, quem não ferir, que temas não glosar, que companhias não frequentar, quem não elogiar, que nichos proteger, quem convidar para almoçar, que críticas fingir aceitar, metendo a bordo o crítico que passa a admirador… Como gostava de dizer a minha falecida amiga, Maria Lúcia Lepecki, uma canseira…

Se quiserem ler um delicioso manual do perfeito estrategista da glória, recomendo-vos o admirável romance de Somerset Maugham, CAKES AND ALE. É uma deliciosa e pérfida narrativa, que mostra, com finura, os ingredientes necessários a uma carreira triunfal, nas Letras, mesmo que se tenha pouco talento. Logo no começo, Maugham apresenta o escritor Alroy Kear, não especialmente talentoso, mas que domina perfeitamente toda a arte de ascender no traiçoeiro milieu literário.

Já agora, permito-me dar ao meu ocasional leitor um conselho desinteressado: aproveite a mina de informações que o autor se SERVIDÃO HUMANA lhe dá neste saboroso e malévolo romance, mas não diga onde obteve tais informações. Maugham não deve citar-se, se é que se quer beber do fino e ter a aprovação das universidades.

É um dos maiores contistas de todos os tempos, um dos mais perfeitos herdeiros de Maupassant e de todos os grandes contadores de histórias, mas não se deve dizê-lo. Não cai bem. Maugham não está “in”. Podemos devorar as suas absorventes histórias, como “Rain”, “The Letter”, “Mr. Know All” e tantas outras inesquecíveis narrativas curtas, mas devemos escondê-lo com muito cuidado, como se esconde um segredo um pouco vergonhoso. 

Seja desavergonhadamente calculista. Mate a sua mãe se for preciso. Mães há muitas, glória há só uma. Cultive o oportunismo, com gulodice. Mande bugiar a inteireza e a coragem.

Eugénio Lisboa

terça-feira, 4 de abril de 2023

ARTE POÉTICA

Ter engenho e arte será preciso?
Às vezes até parece que não.
Dizem que tem pouquíssimo siso
o poeta que se julga artesão.

Porque isso de se ter oficina,
dizem os poetas mais deslaçados,
é fazer ofício de concubina,
com uso de artifícios estafados.

A boa arte é mesmo não ter arte,
mandar bugiar a boa retórica,
que não passa de pífio bacamarte.

Só quem gosta de poesia eufórica
é que usa de engenho e arte,
que apenas servem pra causar enfarte!

Eugénio Lisboa

Agora não sejam ingratos: não me digam que não fiz uma eloquente apologia do verso livre ou mesmo libérrimo!

segunda-feira, 3 de abril de 2023

O que se seguirá? O que restará?

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião

O boneco que se segue apareceu na internet e por aí circula... É uma boa piada!Toca o percurso do (já antigo) movimento do "politicamente correcto", da sua circulação (sem se limitar aos países anglófonos) e agudização. E também como está a tomar conta da arte, da literatura, da história... O que se seguirá? O que restará?

domingo, 2 de abril de 2023

Ficaste na espuma, no meu peito

Ficaste na espuma, no meu peito,

Como uma ave que desaparece.

O VENENO DA PRIMAVERA

Quando vivi em Estocolmo, era lá voz corrente que a maior parte dos suicídios ocorria ali, no fulgor da primavera, e não no escuro inverno, como muitos pensam. Parece que tanto fulgor se torna impossível de “gerir” por certos organismos não equipados para o acolher.

Quando a primavera chega, pensamos
que o mundo se iluminou de novo!
Parece-nos, então, que nós chegamos
a algo belo e cheio como um ovo.

Teríamos sido nós a criá-lo?
Terá saído de dentro de nós?
Teremos inventado esse regalo?
Teremos sido nós a dar-lhe voz?

O fulgor da primavera é demais,
pra que seja possível acolhê-la!
Por mais que a sintamos, ela sobra,

arrasando com feitiços fatais.
A vida, chega-se, então, a perdê-la,
com este fino veneno de cobra!
Eugénio Lisboa

Envolvimento dos alunos na escola

Em resultado de mais um congresso sobre o "envolvimento dos alunos na escola", saiu há pouco, com edição da Universidade de Castilla-la-Mancha o livro Engagement de los alumnos en la escuela: perspectivas sociales y psicológicas, coordenado por uma professora espanhola - Isabel Martinez - e um professor português - Feliciano H. Viega.

Tal como o título esclarece, os muitos trabalhos, devidamente organizados em sub-temas, que são também áreas de investigação, constituem um importante contributo para se compreender o papel da escola num momento em que se lhe nega a relevância, bem como as funções dos professores e dos alunos. Partindo de análises sociais e psicológicas, os contributos têm em vista a educação e a pedagogia.

O acesso é aberto:
ISBN: 978-84-9044-581-5 (Edición electrónica). 
DOI: https://doi.org/10.18239/jornadas_2023.41.00

sábado, 1 de abril de 2023

QUESTIONAR O ÓBVIO

Tantos que viram cair a maçã,
mas só um decidiu saber porquê! 
Estranhar o óbvio é coisa vã?
O óbvio é mesmo óbvio ou quê?

Achar o óbvio muito pouco óbvio
ou o evidente pouco evidente
será mesmo coisa de pacóvio
ou suspeita de segredo ardente?

Estranhar o que nada tem de estranho
será um sinal de obtusidade 
ou não querer inserir-se no rebanho

dos para quem nada é novidade?
Ver no óbvio uma dificuldade
abrirá portas pra outra cidade?

Eugénio Lisboa

És um homem inteiro, sem medo

Diz aquilo que o fogo hesita a dizer,

Sol do ar, claridade que ousa,

E morre porque o disseste por todos.

                                      René Char

És um homem inteiro, sem medo,

Quando retornas ao chão da infância,

Ao caminho sinuoso, à ervosa brancura,

Às poças de gelo e de água,

Ao recreio emurchecido, à luz dura 

De um seixo e ao cheiro de uma frágua.

És um homem inteiro, sem medo

De arrastar as mãos nos limos,    

De pelejar, só com o coração,

Contra o ardil ou a ignorância.

Contra o vento que obra a lágrima.

Contra a metáfora do comboio em andamento.

Contra a inércia

De falar muito e não dizer nada.

Contra a verborreia que liquefaz o pensamento,

Rasga a frescura do silêncio

E agrava o astigmatismo. 

És um homem inteiro, sem medo

De riscar o fundo,

De deixar a cristalização

Explicar-se, evaporando-se o solvente no escuro.

De levar com a areia negra no rosto

E ser atraído para um canto da Terra noturno.

Quando retornas ao chão da infância,

És um homem inteiro, 

Sem medo

De se arrastar nos limos

E de quem quer quebrar-te a canção,

Assenhorar-se, com exagero,

Sem moral e amor, de um dia de abril.

Sem medo de quem te quer sem futuro,

Sem a força das mãos, fadadas a quebrar

O chão hexagonal até ao abismo.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...