Entrevista que dei recentemente a José Mata, publicada aqui (foto de Rui André Soares): Carlos Fiolhais nasceu em Lisboa em 1956, formou-se em Física pela
Universidade de Coimbra e doutorou-se pela Universidade Johann Wolfgang Goethe,
em Frankfurt, em 1982. É autor de dezenas de livros e centenas de artigos
científicos, pedagógicos e de divulgação. Trata-se de um dos maiores vultos da
ciência e da divulgação científica em Portugal. Deu a sua última aula em Junho
de 2021, após 44 anos de carreira docente, o que não o impede de continuar a
ser uma voz activa não só como cientista e divulgador de ciência, mas também
como cidadão. Recebeu-nos no passado dia 12 de Setembro, no Centro de Ciência
Viva Rómulo de Carvalho — um projecto de divulgação e disseminação da ciência
na Universidade de Coimbra que fundou no dia 24 de Novembro de 2008, Dia
Nacional da Cultura Científica.
P- Em pleno século XXI, quando menos se esperava, um vírus
desconhecido veio colocar-nos à prova, fazendo com que nos adaptássemos a uma
nova realidade. Em menos de um ano, foram vários os laboratórios que
desenvolveram diferentes vacinas e o seu efeito na redução drástica no número
de mortes foi notório. Hoje, sabemos mais sobre este vírus e voltámos a uma
situação semelhante à da pré-pandemia, apesar das reservas que ainda existem. A
pandemia de COVID-19 reforçou a relevância da ciência nas nossas
vidas?
R- Sim, quero crer que sim. Quero crer que a generalidade das pessoas
percebeu melhor o valor da ciência. Não sou ingénuo ao ponto de pensar que não
haja, ainda, pessoas com dúvidas e que não haja, ainda, para alguns, a questão
da credibilidade da ciência. Este evento que houve não foi previsto com uma
data, embora tivesse sido possível prevê-lo, porque nós somos criaturas frágeis
e vivemos num planeta com perigos. Não foram apenas uma ou duas pessoas com
conhecimento de causa que disseram que isto podia acontecer. No entanto,
ninguém poderia saber ao certo o que viria a acontecer, no final de 2019, em
Wuhan, na China, e que os contágios iniciais se propagassem tão rapidamente no
mundo, de modo a ser declarada uma pandemia no dia 11 de Março de 2020.
Este acontecimento inesperado desafiou a ciência. Desafiou-nos a todos, mas, em particular, à ciência, que tinha métodos para o poder enfrentar. A
sociedade pediu à ciência esse enfrentamento, pediu que se mobilizasse. E a
ciência fê-lo com uma rapidez e uma eficiência que eu diria que, no sector da
saúde, talvez nunca tenha sido vista. Acções nefastas de microrganismos como
este podem ser diminuídas ou mesmo impedidas através de vacinas, que é uma
invenção que data de finais do século XVIII — a primeira foi a da varíola. O
receio das vacinas por parte de algumas pessoas já data dessa altura, mas o
certo é que, apesar desses receios, a vacina da varíola revelou-se ser muito
eficaz ao ponto da varíola ser das doenças infeciosas que foram erradicadas (não
há muitas). O vírus da varíola humana está, praticamente, extinto. Se
olharmos do ponto de vista da biodiversidade, trata-se de uma diminuição
favorável a nós… [risos]. Isso mostra o grande êxito das vacinas, pois tinham morrido
milhões de pessoas com varíola. Na
América do Sul foi, provavelmente, muito maior a devastação criada por um
microrganismo do que, pelas armas, o que é curiosíssimo. Ora
esse perigo dissipou-se. E a história das vacinas continuou com tantos casos de
sucesso, como a vacina BCG contra a tuberculose que tomei em pequenino e que
agora já não se toma, porque a doença está
bastante mais contida, ou a poliomielite, que atacava muito nos anos 50 e que
praticamente acabou desde que passou a haver vacina. O nosso arsenal de vacinas foi dos
maiores contributos que a medicina e a ciência, em geral, deram à preservação
da humanidade. Hoje,
em dia estamos defendidos de muitas doenças graças a esse meio, que é muito engenhoso.
Educamos o nosso organismo para ele saber lidar com um novo agente de uma forma
controlada (usamos pequenas doses). O corpo desenvolve imunidade e, quando está
perante um agressor verdadeiro, já está treinado, já te defesas.
A última vacina que tinha sido feita, mais rapidamente, demorou quatro
anos (parotide epidémica ou papeira). Tendo a pandemia sido declarada em Março,
no início de Dezembro já estavam a ser administradas as primeiras vacinas no
Reino Unido. Em Portugal, isso aconteceu no final desse mês Nove meses para
fazer uma vacina é, de facto, um tempo assombroso e, apesar de ter havido vagas
posteriores, foi tudo muito mais contido do que teria sido sem vacina. Eu
próprio tive COVID e já estava vacinado
com três doses, o que significa que foi uma coisa que passou por mim durante
dois, três dias sem grandes problemas. Sabemos o número de vítimas que houve no
mundo e em Portugal — podemos comparar com o número estimado se não dispuséssemos
de vacinas. Calcula-se que só no ano de 2021 foram evitadas vinte milhões de
mortes. Uma comparação fácil de fazer é com a pneumónica, gripe espanhola, de
1918 — mais de 50 milhões de pessoas morreram no mundo todo pois não só não havia
vacina como nem ninguém sabia o que era. Não se fazia bem ideia do que era um
vírus, havia o conceito, mas só nos anos 30 do século XX é que se usaram meios microscópicos para identificar vírus. O
vírus da pneumónica ainda está aí, fazendo parte dos vírus da gripe:
habituámo-nos a ele e deixou de ter aquele impacto brutal.
Prefiro muito mais viver hoje do que viver há cem anos porque, se
eu vivesse há cem anos, o risco de contrair uma doença infeciosa era muito
maior do que hoje. Este risco é um dos grandes indicadores do enorme poder da
ciência. Mais uma vez, a ciência demonstrou a sua capacidade. Acima de tudo, a
pandemia mostrou que, quando a humanidade pede aos cientistas que se mobilizem por
uma causa (e lhes fornece meios para isso), eles mobilizam-se de forma maciça.
Uma pessoa vê pelos numerosos artigos que surgiram que os cientistas não
dormiam, não faziam fins-de-semana, não faziam férias. O vírus da COVID ainda está
espalhado, sob uma forma menos maligna, porque temos já as defesas
necessárias. A vida
normal basicamente já voltou: voltaram os espetáculos, voltaram os restaurantes,
voltaram as danças,
voltaram os beijos e abraços... É preciso, ainda, manter alguns
cuidados, naturalmente. Quero ser optimista: um grande desafio foi superado,
embora algo semelhante possa voltar a acontecer. Temos de aprender com o que
aconteceu. Eu não tenho a certeza que tenhamos aprendido bem o que se passou,
até porque persistem grandes desigualdades. As vacinas chegaram de forma muito
diferente aos diversos países e chegaram primeiro aos países ricos. Alguns
cidadãos destes países não as usaram. Difundiu-se
um discurso contra as vacinas. Tal como Einstein dizia, “só há duas coisas
infinitas no mundo, o universo e a estupidez humana”. E acrescentava logo:
“quanto à primeira, não tenho a certeza” [risos].
P- Muitas pessoas não acreditaram, desdenharam até, quando o vírus
apareceu, algumas delas achando que se trataria de uma simples constipação. Outros
falaram de uma invenção biotecnológica. Geraram-se fake news e teorias da
conspiração que originaram uma avalanche desinformação: a chamada
"infodemia". Numa altura em que temos acesso a tanta informação, será
que temos dificuldades em selecioná-la e em interpretá-la, ou é algo mais do
que isso?
R-Devemos tentar perceber porque é que isso acontece. De facto, temos
dificuldade em movermo-nos na quantidade enorme de informação disponível. Concordo
que houve uma "infodemia", que
foi até mais rápida do que a pandemia. Ainda a pandemia não tinha chegado a
muitos sítios e já aí chegavam notícias falsas a respeito da COVID. Em Portugal, uma conhecida
apresentadora de TV perguntou, no seu programa, a um médico, quando se discutia
o que se estava a passar na China, porque é que a doença só se dava nos chineses — foi uma
pergunta muito ingénua. Não demorou muito a ver que também se dava cá. Havia
uma certa ansiedade: muitos países tinham casos e nós não tínhamos [risos]. O certo
é que depois não só começámos a tê-los como começaram a morrer pessoas, algo que era previsível. Espalharam-se, desde o
início, uma série interminável de notícias falsas, incluindo tratar-se de uma arma criada num laboratório biotecnológico
de alta segurança, o que é algo difícil de acreditar.
A infodemia espalhou-se rapidamente graças a um resultado da
ciência: a internet, ou melhor, a World
Wide Web, que é um protocolo de ligar os computadores de todo o mundo; hoje dispomos de uma rede mundial de
computadores onde a informação circula à velocidade da luz. Isso, não o esqueçamos,
foi obra da ciência: a World
Wide Web foi criada no CERN e para o CERN, simplesmente porque
os cientistas queriam partilhar as informações nos seus computadores e hoje é
usada para tudo e mais alguma coisa. Toda a gente começou a pôr lá informação,
está lá o verdadeiro, mas também está o falso. De facto, por vezes, é muito
difícil distinguir o primeiro do segundo. Pelo facto de ser cientista,
desenvolvi uma habilidade, que tento transmitir aos meus estudantes, que consiste
em distinguir o verdadeiro do falso. Se alguém diz alguma coisa, porque é que o
diz? Com que base é que o diz? Com que intenção o diz? Que interesses pode ter
ao dizê-lo? Chama-se a isto pensamento crítico.
Uma parte muito importante do método científico é acreditar só
quando existirem provas, e as provas suficientes. Devemos duvidar enquanto não houver provas
suficientes. E até estar pronto para aceitar que as provas reunidas não são suficientes
e que temos de procurar mais provas. Mesmo quando uma conclusão parece certa,
deve manter-se sempre um grãozinho de dúvida. Não quer isto dizer que nos devemos fazer de parvos e pensar que o Sol anda à
volta da Terra ou que não somos feitos
de células, mas simplesmente estar consciente de que amanhã saberemos mais do
que hoje. Há coisas muito bem consolidadas no nosso corpo de ciência, mas há
outras sobre as quais não temos a certeza. As pessoas em geral tiveram contacto com a ciência na escola e nos media,
mas infelizmente não têm esta capacidade de discernir o certo do errado em
afirmações que são feitas sobre o mundo. A escola, nesta questão, tem falhado, não transmite o
essencial da ciência, passa conclusões da ciência sem passar o que é mais
importante que é o modo como obtermos novo conhecimento. Transmitem-se
conteúdos de ciência sem ser capaz de transmitir a atitude científica.
Por outro lado, os media, na voragem da informação diária, muito dificilmente transmitirem essa atitude
científica, embora esta possa e deva ser em certa medida ser partilhada pelos
jornalistas. Os
cientistas e os jornalistas têm muito mais em comum do que se julga. Ambos
estão interessados na veracidade daquilo que se apresenta e ambos estão
interessados em comunicar, em levar a mais gente aquilo que sabem. Os
cientistas não querem as coisas só para eles, pois eles não são mais do que representantes
da Humanidade.
Em resumo, estamos numa situação muito difícil, não sei bem como
resolveremos este problema. É um mundo que, como Carl Sagan sumariou sabiamente. onde o a ciência e a tecnologia conferem um poder
imenso, mas, ao mesmo tempo, um mundo cheio de ignorância, chegando a
ignorância aos mais altos níveis do poder. Na base do poder está o conhecimento,
mas muitos detentores do poder político não têm espírito crítico. Sagan avisou-nos do
perigo da mistura entre saber e ignorância: podia-nos explodir na cara. É isso que temos assistido
neste século, como nos casos dos Estados
Unidos e do Brasil, que são países democráticas onde a ignorância subiu ao mais
alto patamar.
P- É cada vez mais necessário que haja bons comunicadores de ciência,
pessoas que consigam passar para a sociedade a mensagem da ciência? Parece que
existe uma falta de literacia científica nas populações apesar dos seus níveis
de educação…
R- Sim, apesar de haver mais gente escolarizada, e isso é bom, o
certo é que a ciência e a sociedade avançam mais rapidamente do que a
escola. A escola tem dificuldade em resolver este problema da
desinformação. A escola
tem de ser, de algum modo, conservadora, não pode estar sempre a mudar. Tem de transmitir
o essencial do património passado de modo a preparar para a vida e esse
património é muito estável. Os resultados e os produtos da ciência e da tecnologia
chegam, através do mercado, muito rapidamente às pessoas. E estas usam muitos
objectos sem saber a ciência que está lá dentro. O segredo hoje para
vender um produto é concentrar muita ciência num espaço pequeno e, depois,
permitir que a interação com os humanos seja fácil. O design é essencial num produto
para que ele seja de uso fácil. Vivemos inundados de ciência: ela está
nos nossos bolsos, nos nossos telemóveis, etc.; mas, ao mesmo tempo, ignoramos
a ciência ou. Quando a consideramos, não lhe damos a relevância necessária. O público,
em geral, está divorciado da ciência, esta é algo que lhes passa ao lado, que não
sabem o que é ou sobre a qual têm uma ideia vaga. Sabem um nome ou outro, mas
não conhecem os processos. Costumam até tomar os objectos tecnológicos pela ciência. Claro que eles são produtos da ciência, mas a
ciência está neles muito bem escondida.
É, por isso, preciso construir uma ponte entre o mundo da ciência e o mundo que
chamarei humano apesar de os cientistas também serem pessoas… Os cientistas são
os enviados especiais da comunidade humana às fronteiras do conhecimento. No
jornalismo, os enviados especiais reportam. Os cientistas também reportam, começam
por reportar à sua comunidade, para ver se tudo bate certo. Tem de haver um acordo
na comunidade científica, tornando-se então mais fácil reportar para
todos. Um dos problemas da
pandemia era que tudo estava a acontecer em directo, a ciência estava a
acontecer em directo e não se percebia muito bem que muitas das conclusões dos
cientistas eram provisórias. Pensava-se que eles já tinham chegado a uma
conclusão, mas eles ainda estavam a discutir, o que é normal pois faz parte do
processo científico.
Sim, são precisos bons comunicadores. O problema da comunicação de ciência é um contínuo, não se
vai resolver de repente e, porventura, nunca se resolverá, mas, utilizando o
gerúndio, tem que se ir resolvendo. Temos que fazer com que a ciência
contacte mais com as pessoas. Os cientistas têm de falar mais com as pessoas,
não é preciso que todos o façam, mas é preciso é que a comunidade científica no
seu todo o saiba fazer. Dispomos
agora de meios fantásticos, que os
próprios cientistas criaram. Estamos num processo de transição, em que muitos
media estão a mudar de forma acelerada.
Por exemplo, agora não há só a televisão, há também a Netflix. Não há só a
rádio, há também os podcasts…
Não podem ser só os cientistas a comunicar ciência. Tem de haver
intermediários entre os cientistas e os cidadãos, pessoas com outras formações.
As pessoas com formação em comunicação social são muito importantes, porque
sabem muito bem como funcionam os media. Seria bom que essas pessoas estivessem
mais próximas dos cientistas, de forma a haver menor distância e mais harmonia entre a ciência e o público. Não
se trata apenas de anunciar as novidades,
por exemplo dizer que foi lançado o novo
telescópio espacial, mas dizer o que é o telescópio espacial, o que é que está
a fazer ou que é que se pretende que ele faça e que resultados vai ter para a ciência e para a sociedade.
Vamos saber mais sobre as nossas origens, saber melhor como tudo começou, saber
se há outros planetas porventura com vida tal como há na Terra. Essas coisas tocam
no imaginário das pessoas, tocam algo muito profundo em nós. Seremos os únicos seres
inteligentes no Universo? As pessoas estão
interessadas em saber.
Não é verdade que as pessoas não tenham interesse pela ciência, elas
interessam-se, têm curiosidade, uma atitude natural que está bastante
disseminada, embora nuns mais do que noutros… É preciso aproveitar isso e fazer
o esforço de alimentar esse interesse. Esse esforço está a ser feito, mas é
preciso arranjar formas imaginativas deo continuar. Nos
países mais desenvolvidos, nos quais o papel da ciência é mais perceptível, existe
de modo mais nítido o a que se chama cultura científica. A ciência existe lá há mais
tempo, adquiriu uma certa dimensão. Portugal é, nesse aspecto, um país relativamente frágil, uma vez que a
atitude científica que de certo modo estava presente no tempo dos
Descobrimentos depois nunca prevaleceu. Quando acabei o doutoramento na
Alemanha, em 1982, e vim para Portugal, ninguém sabia o que era um físico. Hoje
em dia, quando se fala de um físico, as pessoas podem não saber exactamente o
que é, mas pelo menos já não estranham a palavra. Lembro-me de uma entrevista
que dei a um jornal nos anos 80 em que o título era “Cientista também vê
telenovelas”. Disse muitas coisas, mas o que trouxeram para o título foi o
facto banal de eu ver televisão. Na
altura, estavam as novelas brasileiras muito na moda, e o que interessou mais
ao jornalista foi o facto de um físico também ver novelas. Podia ter dito que “cientista também toma pequeno-almoço” ou que “cientista
também vai à casa de banho” [risos]. Hoje em dia, estamos em melhor situação:
os cientistas já não são tomados por extraterrestres.
Muita coisa mudou em Portugal, mas nem tudo mudou ainda o suficiente. A ciência está
presente nas nossas vidas mas, muitas vezes, não temos consciência disso. Há coisas que a ciência nos ensina
como a distinguir afirmações certas do
erradas. A ciência tem bons detectores de mentiras, tem bons kits de descoberta
de erros [risos]. Esses detectores podem ser úteis na vida
comum: há características do método científico, como não nos deixarmos enganar,
não acreditar em tudo, perguntar porquê e como. Tudo isso são coisas que a ciência nos
comunica e que nos podem ajudar a viver melhor.
Há maneiras interessantes de relacionar a ciência com a vida. Muitas
pessoas pensam que os mundos das ciências e das artes são mundos desavindos. É o problema que se chama das “duas culturas”, que persiste
nos dias de hoje. Pensa-se que as pessoas de artes e de literatura não querem
saber de ciência e que as pessoas da ciência e da tecnologia não querem saber das
artes e literatura. Uma boa
maneira de fazer cultura científica é fazer com que os artistas estejam perto de
cientistas e que obras de arte possam
ser inspiradas pela ciência. Estamos hoje confrontados
com questões de saúde, ambientais - uma
grande questão é a do aquecimento global. Ora a necessidade de acção pode ser
transmitida por outros meios que não apenas os da ciência. Pode haver uma
palestra sobre aquecimento global, mas pode haver também um teatro, um filme, uma
música ou um quadro. Ciências e artes são dimensões do humano, não têm que ser
antagónicos: podem e devem ser conjugados.
P- A ciência faz parte na nossa cultura. Temos o Dia Nacional da
Cultura Científica, dia 24 de Novembro, que é o dia do nascimento de Rómulo de
Carvalho e também o dia da fundação do Rómulo — Centro Ciência Viva da
Universidade de Coimbra. Esta data é celebrada no ambiente académico, mas passa
um pouco despercebida nos meios de comunicação. Qual é a dificuldade da ciência
se difundir na nossa cultura?
R- O dia 24 de Novembro é, de facto, o dia do nascimento de Rómulo de
Carvalho. O Dia da Cultura Científica foi uma ideia do ministro José Mariano Gago. Um
dos seus intuitos era prestar homenagem a Rómulo de Carvalho, que era um homem
das “duas culturas”. Vamos chamar assim, é um chavão, eu sei [risos]. Cultura
há só uma, há depois várias dimensões dentro dela. Rómulo de Carvalho era
professor de Físico-Química, um professor muito capaz. Escreveu manuais
escolares, livros de divulgação científica para jovens e para adultos. Para
jovens, tem a série “Ciência para Gente
Nova”, para adultos, tem, por exemplo, o “Física para o Povo”. Houve uma versão
mais recente em que o título mudou para «Física no Dia-a-Dia», porque ele dizia
que já não havia povo… Mas ainda há, o povo somos nós todos [risos]. Rómulo de Carvalho simboliza bem a união das «duas
culturas», porque ele tem um outro lado, com o nome de António Gedeão, que é de
poeta. Pouca gente sabe, mas esse lado também é de artista visual, ele fazia
desenhos e de certo modo também esculturas, tinha boas mãos. Só começou a sua
carreira poética aos 50 anos, ou pelo
menos a publicar com o nome António Gedeão, e procurou manter as duas facetas
separadas. Aliás, até na escola, quando lhe pediam para assinar os livros, ele
tentava separar as águas, dizendo que não conhecia o poeta. Na altura, não seria
fácil para um professor de Física ser também poeta. Mas Rómulo era capaz de
conjugar as duas atitudes, a atitude científica e a atitude artística. Ele disse
um dia numa entrevista que, no fundo, não havia separação entre as duas, pois o
acto criativo era essencialmente o mesmo.
A ciência é criativa ao relacionar coisas distintas, como Newton
fez com maçã e a Lua ao perceber que ambas estão sujeitas à força da gravidade
da Terra. A relação pode não ser óbvia, mas a maçã cai e a Lua cai também de
certo modo, enquanto anda em órbita da Terra. Uma pessoa vê a maçã cair, mas
não vê a Lua a cair do mesmo modo. Newton foi pioneiro ao dizer que a Lua anda
à volta da Terra pela mesma razão que a maçã cai. Foi um grande salto do
pensamento, porque ele imaginou imediatamente que a maçã podia entrar em
órbita. O acto criativo consiste em juntar aquilo que parece estar separado. A poesia e as artes, em geral fazem exactamente isso mesmo. Na
literatura, veja-se o que é uma metáfora:
pega-se numa coisa que à partida não tem nada a ver com a outra e, a partir do
momento em que se conjugam dois termos, percebe-se
um novo significado. Por exemplo, em «um dia cristalino», junta.se um período
de tempo e uma propriedade que associamos, na Física, a uma disposição ordenada
dos átomos. Para as pessoas comuns, cristalino significa perfeito, brilhante,
precioso. «Um dia cristalino» será, por isso, um bom dia [risos]… Arranjamos associações
porque precisamos delas. Fazem-nos bem à nossa vida, que não tem que ser um desatino mas sim uma
procura de significados.
Há outras dimensões humanas, para além das ciências e das artes. Há
a questão do religioso, há a questão afectiva, etc. Não quero dizer que nenhuma
delas deva prevalecer sobre as outras,
mas devemos procurar alguma integridade, alguma coerência, no humano. A
humanidade é uma coisa que transportamos connosco, é uma condição de espécie, e
a cultura faz parte da humanidade. Na cultura, estão todas
estas coisas, que às vezes se ignoram [risos]. O Dia da Cultura Científica
celebra a capacidade de união. O jornalismo vive de eventos singulares. Tem que haver novas coisas para chamar a atenção. Num dia lembramos a cultura científica
e, no outro dia, o teatro ou a menopausa, que parece que é agora em Outubro
[risos]. Não estou a brincar, há dias para tudo e este é um deles. O que era preciso é que todos os dias fossem
dias da cultura científica e para isso a
escola tem que dar o seu contributo e tem que haver outras contribuições. Cada um de nós tem que fazer um esforço nesse
sentido, já que, sendo a curiosidade humana, temos que mostrar que somos
humanos.
Dou um exemplo pouco conhecido. Literatura e ciência não têm que
estar separadas e um poeta muito mais
antigo do que Rómulo de Carvalho é Luís de Camões. Ora ele inclui
ciência n’ Os Lusíadas. Mais: os primeiros versos que ele publicou
saíram em 1563 num livro de ciência, Colóquio
dos Simples, da autoria do
médico português Garcia de Orta, que estava em Goa, na Índia, tal como Camões.
Ele pediu-lhe um prefácio em verso, e fez um prefácio laudatório ao dizer “há
uma nova horta”, jogando com o nome de Orta,
“onde florescem plantas que os doutos não conhecem”. Por outras palavras, Orta estava
a cultivar novas drogas, porque os «simples» eram as matérias usadas para fazer
medicamentos. A literatura aqui simbolizada — Fernando Pessoa que me perdoe — pelo nosso
maior poeta aparece impressa num livro de ciência. Poderia acontecer mais
vezes. E há outros exemplos. Tenho visto
livros de poesia, de poetas contemporâneos, cheios de ciência porque o mundo
está cheio de ciência. Usam temas e termos científicos. É consolador ver isso,
é um sinal de esperança....
Julgo que os portugueses não sabem muito de ciência por uma razão
muito simples. A nossa escolaridade, apesar de ter aumentado muito nos últimos
tempos, chegou muito tarde em comparação com outros países. E ainda há um défice de escola em Portugal. Basta
olhar para a minha geração, a geração dos meus pais, e dos meus avós para vermos que houve progresso, mas é um
progresso muito recente. As
pessoas têm interesse pela ciência à
partida, mas, depois, à chegada, esse interesse é muito limitado. A ciência tem
bom nome em Portugal, mas depois não chega a ter aplicação prática nas nossa
vidas. O governo também enche o seu discurso de ciência,
mas depois o financiamento de ciência continua a ser muito reduzido.
P- Já que estamos a falar da nossa ciência, Portugal foi o nono país
da União Europeia que menos verbas atribui para investigação em 2021. De acordo
com os dados mais recentes, o investimento médio dos países da União Europeia
na área da Investigação e Desenvolvimento é de 2,3% do seu PIB (Produto Interno
Bruto). Países como Alemanha, Áustria, Bélgica, Suécia ou Dinamarca possuem
investimentos superiores a 3% do seu PIB, sendo casos de referência da
investigação científica, não só a nível europeu, mas também mundial. Em
Portugal o investimento é apenas de 1,6% do PIB. O que se passa para haver tão
pouco investimento na ciência no nosso país?
R- Em Portugal, os políticos trazem a ciência na boca, mas não sei se
a têm no coração. Pelo menos no Orçamento de Estado aparece de uma forma débil. Esse
número, 1,6%, era mesmo em 2009. Andámos mais de dez anos sem fazer progressos!
O que é que andámos a fazer durante a última década? Pode-se dizer que houve a troika.
Sim, houve a troika, que foi um grande rolo compressor da ciência. Não houve a
capacidade de perceber que há coisas essenciais para o nosso futuro que não
podem ser destruídas em períodos de crise. O modo como temos tratado, em
particular, os jovens cientistas é absolutamente lastimável. Temos um governo
que fala muito na ciência, na necessidade de ciência e desenvolvimento, que vivemos
numa sociedade dominada pelo conhecimento. Mas, depois, não é consequente com
esse discurso. Basta olhar para o passado mais recente: não vemos uma prática
compatível com o discurso, vemos um investimento bastante abaixo da média
europeia. Como é que um país que se quer desenvolvido pode estar abaixo da
média do grupo onde se integra? Não convergimos nos últimos tempos para a
Europa. Temos visto grandes programas europeus de investimento, como o PRR; e
quase não vemos a ciência lá presente.
Se não apostarmos na ciência, em particular, nos jovens mais
criativos e mais dinâmicos, nós não poderemos alcançar o grau de
desenvolvimento que pretendemos. Vai continuar a acontecer o que tem
acontecido. A quantidade de jovens que nós habilitámos, o número de doutoramentos que concedemos têm aumentado, o
que é bom. Mas as universidades, politécnicos, empresas, etc. não estão a
absorver esses doutorados como deveria ser. Não imitamos o que acontece nos países mais desenvolvidos, onde
os cientistas são mais considerados, mais contratados e também mais bem pagos.
Tive vários estudantes meus que tiveram de ir lá para fora e arranjaram em bons
lugares, em países da Europa e do mundo. Acabaram por ser úteis a outros países
não ao nosso. A nossa maior capacidade reside nos nossos “cérebros”. Temos
“cérebros” que são muito capazes e que devíamos tratar bem, oferecer-lhes
oportunidades e confiar neles sem hesitações. Quando dei a minha última aula,
lamentei a falta de investimento na ciência, apesar do discurso dos políticos. Dizem
umas coisas e depois isso não corresponde à realidade. Faz-se todo um discurso
para camuflar a realidade como se não estivesse a vista que não se está a investir
o suficiente na ciência. As pessoas têm 40, 50 anos e ainda não têm lugares
permanentes. Continuam em posições precárias, continuam a fazer o seu dia-a-dia sem qualquer perspetiva. São pessoas que não
estão em início de carreira, não estão em formação, mas que continuam à procura
de emprego científico estável.
Se nós não confiarmos nos jovens cientistas isso significa que não
estamos a confiar no futuro. E então não vamos ter grande futuro. Na minha
última aula disse “saio também para dar lugar aos jovens, porque eles precisam
de lugares". Receio não ter dado. Novas expectativas surgem quando há um novo
governo, já que a esperança é sempre a última a morrer, mas verificamos
actualmente que não há, digamos, um elã na área da ciência. Eu olho para os
cientistas que via desanimados e continuo a vê-los desanimados. É certo que
também não há grande capacidade de
iniciativa da comunidade científica. Esta cresceu muito, mas não está bem organizada. Não tem
capacidade de falar de forma solidária com o poder e dizer “Estamos aqui, olhem
para nós!”. Os governos têm tratado os investigadores com algumas palavras de
comiseração, mas sem lhes conferir a
dignidade que eles merecem. As instituições necessitam de renovação para serem
pujantes e nós temos, por exemplo, universidades e politécnicos com corpos
docentes extremamente envelhecidos. Não é só nos ensinos básico e secundário
que há professores envelhecidos, isso
também acontece no superior. Se a média
de idade dos professores for próxima dos 60 anos, não estamos a renovar
convenientemente o nosso sistema de ensino superior, que por isso passa a ser superior
só no nome… [risos] As alturas mais criativas da vida ocorrem na flor da idade.
Se, em jovem, uma pessoa não consegue entrar nos quadros, irá começar a
carreira numa altura em que ela devia estar
a terminar? Vai começar a trabalhar quando já devia estar reformado, como,
agora, o Príncipe Carlos? [risos]
É muito simples alcançarmos o almejado desenvolvimento: basta olhar para os
países mais desenvolvidos, os países mais adiantados no tempo, ver o que eles
já fizeram e estão a fazer. Não é preciso andar a reinventar a roda. É preciso
estimular o emprego científico, quer no sistema de ensino, quer nas empresas,
quer noutras instituições. As nossas empresas estão a empregar muito poucos
doutorados, estou a falar de grandes empresas, indústrias, bancos, etc. Há
listas das empresas que investem mais em investigação e desenvolvimento e, quando
olhamos para o número de doutorados que elas têm, verificamos que não têm quase
nenhuns. O que é que elas fazem? Publicam alguma coisa? Submetem patentes?
Fazem alguma coisa inovadora? Não, limitam-se na maior parte dos casos a comprar
tecnologia já feita, pelo que, quando muito, lêem os manuais de instruções. Ora
nós somos capazes de pensar coisas novas e de as fazer tal como os outros. Precisamos
de um ambiente criativo, isto é, de um novo ambiente cultural, lá está. Quem se
queixa justamente de não ter boas condições de trabalho não são apenas os jovens cientistas, são também os jovens
artistas.
Agora na pandemia alguns artistas ficaram em condições muito
difíceis. Um país
que não confia nos seus cientistas, que não confia nos seus artistas e que não
lhes dá suficientes condições para que sejam cientistas e artistas, é um país
que se limita apenas a existir porque já existe. É um país fixado no passado, que
funciona por inércia, sem se projectar num sonho de realização e de transformação. Lamentavelmente,
não temos um projecto de futuro conjunto, limitamos muitas vezes a repetir as coisas que se dizem na União Europeia. A União
Europeia fala - e bem - em questões como o clima, a energia, etc. e
nós colocamos esses temas na nossa
agenda, usando as palavras muitas vezes como um mero cliché. As alterações climáticas
são um problema que afecta a todos. Mas Portugal é um país no sul da Europa,
que possui uma mancha florestal grande e pouco cuidada, sujeita por isso a fogos, e também com uma grande linha de costa, sujeita à
subida do nível das águas do mar. Mas não vemos que estes problemas sejam
mobilizadores na nossa política de ciência.
Há também questões de saúde que não apenas portuguesas. As pessoas
vivem mais, graças aos progressos da higiene e da medicina, sendo Portugal conhecido por ser o país que envelhece mais
rapidamente na Europa: a razão do número
de pessoas mais velhas para o o número de pessoas mais novas está a aumentar
muito mais depressa do que noutros países. Seremos o terceiro país mais
envelhecido do mundo em 2050. Ora isso tem uma parte que é boa, as pessoas vivem
mais, mas também coloca várias questões, em particular a sobrecarga do sistema de saúde (há um
conjunto de doenças associadas ao envelhecimento) e a falta de jovens que assegurem um sistema de
segurança social sustentável. Tal situação poderia, por exemplo, originar um
programa nacional de investigação científica
sobre envelhecimento. São problemas que,
sendo globais, têm entre nós uma grande incidência.
Não vejo que Portugal tenha uma agenda científica: os temas surgem, quando
surgem, de uma forma um pouco atabalhoada. Mesmo sobre a COVID, decidiu-se financiar uns projectozinhos sobre essa doença, num
programa que não parecia ter coerência. Tudo
foi feito à pressa e nem sempre bem. Não
existe qualidade à pressa. Ainda se lembram dos ventiladores portugueses que
nem sequer foram certificados? Era
bom que não só dedicássemos mais meios à ciência, mas também que esses meios
fossem dedicados não a coisas provisórias, como projectozinhos, mas a coisas que
consolidassem e expandissem o sistema científico. Para consolidar e expandir, são
precisos objectivos e metodologias, é
preciso ter uma agenda científica e instrumentos para verificar o seu cumprimento. Já
não temos uma visão da ciência desde o tempo de Mariano Gago, precisamos duma
adaptada aos novos tempos.
Uma coisa que me faz impressão é o facto de as universidades serem
financiadas pelo número de estudantes, quando boa parte das despesas das
universidades tem que ver com a investigação. Por que é que não são financiadas
pelos seus resultados na investigação que é o que acontece no mundo mais desenvolvido? Aqui o governo criou
uma fórmula que nem sequer cumpre, o dinheiro é sempre pouco, e os reitores
contentam-se com pouco dinheiro, o que é muito curioso. Os reitores fizeram,
até, acordos com governos anteriores, que não passavam de acordos de serviços
mínimos. O governo comprometia-se a não dar menos do pouco que já davam e os
reitores aceitavam. Como quem diz, aceitamos o que nos quiserem dar. Na prática, temos universidades de
subsistência, universidades subfinanciadas. Sem ovos não se fazem omeletes. Temos seis universidades no top 1000 no mundo,
mas todas muito abaixo do que deveria ser: nenhuma delas está nos 200 primeiros
lugares. Deveríamos ter no ensino superior a ambição que outros países têm. Por
exemplo, a melhor universidade brasileira está mais bem classificada do que
qualquer universidade portuguesa.
P- Falando
agora das boas notícias. Tem-as havido nos
últimos tempos na descoberta do espaço. Primeiro com as imagens do telescópio
espacial James Webb e, agora, com o retorno do homem à Lua, no quadro da missão Artemis I. Como físico, encara estas
notícias com grande entusiasmo?
R- Sim, com grande entusiasmo, com grande fascínio! Encaro eu e julgo
que a generalidade das pessoas, porque está a ocorrer um regresso ao espaço.
Era preciso um novo elã na astronomia e, agora, temos o telescópio James Webb, lançado
no dia de Natal de 2021. Está tudo a correr bem, tudo conforme o previsto. Já
vimos as primeiras imagens, que são mais
nítidas do que as anteriores do Hubble, dando-nos informações sobre as
primeiras estrelas, portanto mais notícias sobre o início do mundo. Funciona apenas
com luz infravermelha. A luz infravermelha que vem de astros mais distantes, do
tempo do início do Universo, atravessa melhor as poeiras do que a luz visível. Por outro lado, corpos mais
frios, como os planetas, emitem principalmente luz infravermelha: é o caso da
Terra. O James Webb vai transmitir-nos imagens de exoplanetas já conhecidos e
vai descobrir outros. Vamos ter mais informação sobre a sua atmosfera, composição química, etc. Haverá grandes
novidades da ciência, pois o telescópio ainda agora começou a funcionar. Vai haver milhares e milhares de imagens. Os cientistas estão agora a começar a
trabalhar com o James Webb e, como eu
gosto de dizer, o melhor ainda está para vir.
Por outro lado, está em curso o programa Artemis, que na mitologia
grega é a irmã de Apollo. O Artemis vai fazer aquilo que o Apollo já fez, agora
com tecnologia mais evoluída. O foguetão mais poderoso do mundo está, agora, a
ser testado. O primeiro voo será não tripulado: lembro que a Apollo I falhou em terra com um desastre que
vitimou três astronautas. Depois, se tudo correr bem, em 2024, haverá um voo
tripulado já à volta da Lua e, em 2025, uma alunagem. A ideia é criar uma base
na Lua, Ela permitirá que as pessoas possam viver tal como vivem dentro da Estação
Espacial Internacional, embora com uma gravidade melhor: na Lua é um sexto da da Terra. Os astronautas terão um
veículo pressurizado que os possa transportar na Lua. Será maior do que rovers
já
usados em solo lunar, antes
um mini-autocarro que pode percorrer distâncias mais longas. Também está
planeada uma estação espacial orbital em torno da Lua. O objectivo deste
programa é preparar a primeira viagem a
Marte. Ao construirmos uma base na Lua, estaremos a treinar como fazer o mesmo
em Marte. Será neste século, ainda não
sabemos quando. Isso será ir mais longe, ir mais além.
Como disse o pioneiro russo da astronáutica Konstantin Tsiolkovsky,
“A humanidade teve o seu berço na Terra,
mas ninguém fica eternamente no berço”. É com grande expectativa que
acompanhamos as notícias futuras na área da astronáutica, que focarão a atenção
do mundo neste domínio da ciência e da tecnologia, que é um dos que acende o
fogo do nosso imaginário. Será bom para a cultura científica. Temos decerto muitos
problemas na Terra, mas, ao contrário do que alguns dizem, não estamos a fugir
dos problemas da Terra ao ir para o espaço. Estamos a mostrar a capacidade de
nos unirmos com propósitos comuns. O programa Artemis
não é apenas norte-americano, é canadiano, japonês e europeu. Por exemplo, em Portugal,
onde o governo tem abordado o espaço, falando de uma base nos Açores, que se tornou uma enorme
trapalhada, seria bom que se desenvolvesse um programa mais sólido de
cooperação com a Agência Espacial Europeia. Existem questões geopolíticas. Uma
das razões deste regresso à Lua, não podemos ser ingénuos, é a política, porque
agora já não é tanto a questão da rivalidade dos Estados Unidos com Rússia, mas
sim com a China, que tem um grande programa espacial. Tudo isto mostra que na
Europa nos demos unir e, apesar de Portugal não ser um país muito rico, tem de
ter uma presença mais forte na Agência Espacial Europeia. O primeiro astronauta
português será para nós uma coisa simbólica, mas tal dependerá do nosso grau de
participação no programa espacial europeu.
Os astronautas são de um sítio ou de outro conforme o grau de investimento que é
feito. Nós temos o Terreiro do Paço, em Lisboa, mas ainda não temos o Terreiro
do Espaço… [risos]
P- A ideia de que qualquer pessoa, ou melhor neste momento qualquer
magnata, pode pagar para fazer uma viagem ao espaço veio banalizar a ideia de
termos um português, pela primeira vez, a participar numa missão espacial?
R- Bem, um português que deu
um pulo no espaço e, ao fim de uns minutos, caiu, é semelhante a quem compra um
bilhete na feira popular para anda na grande roda. Não fiquei nada
impressionado. O espaço tem questões
económicas e é normal e desejável que os
empreendimentos públicos sejam acompanhados e seguidos pelos privados. No programa
Artemis, os foguetões e as naves são desenvolvidos por grandes empresas. Um dos
benefícios de qualquer programa espacial
é que beneficia muito da indústria já
existente, a indústria que faz aviões, motores, materiais, etc. Há todo um
sector industrial que é mobilizado, não
vejo mal nenhum nisso, a economia é essencial para a sociedade. Os grandes
programas exigem grandes meios e tem de haver grandes colaborações com os
privados. Mas uma outra coisa é esse espetáculo de uma pessoa dar um pulo ao ar
para dizer que é rico… [risos].
P- Esse evento não deu um clique para se falar mais de ciência?
R- Não sei se deu para falar mais de ciência. A partir do momento em
que uma coisa se banaliza, deixa de ser ciência, passa a ser uma aplicação da
ciência. Por exemplo, está aqui uma lâmpada elétrica. Quando, no século XIX, no
tempo do Edison, ou antes dele do Faraday, criar uma lâmpada exigia ciência. Hoje,
a lâmpada é um objecto de consumo. Pode ter ciência na base (agora até já há
lâmpadas LED), mas é um objecto de consumo. Com certeza que o espaço pode eventualmente
ser o palco de objectos de consumo. Vou ser directo na resposta: há muita
publicidade em eventos como este que nem sequer é encapotada. Querem vender-nos
isto e aquilo, querem vender carros, querem vender a imagem dos fabricantes de
carros, etc. Ir ao espaço é um chamariz. É preciso resistir ao engodo
comercial. Muitas vezes, quando se refere a ciência por trás está-se a dar uma
ideia falsa da ciência. A ciência é muito mais do que o fabrico de objectos. Se
essas pessoas que gostam de dar nas vistas estivessem muito interessadas na
ciência, teriam maneiras de patrocinar projectos
científicos. Eu não fico muito impressionado com o turismo espacial, penso até
que baralha um bocadinho as pessoas.
Os empresários espaciais dizem coisas que não se concretizam nem
rápida nem facilmente. Um deles, o Elon Musk, diz que iremos a Marte, mas é
tudo vago… Como e quando ninguém sabe. Iremos
a Marte, mas, muito provavelmente, essa expedição não será organizada por uma
só empresa ou mesmo por um só país. Eu não estou a ver um privado com meios
para conseguir chegar ao planeta vermelho. Mas dizer isso agora fica-lhe bem. Mas ele também
diz coisas que lhe ficam mal. Ele disse coisas sobre a vacina da COVID e sobre
a ciência em geral que não me levam a crer que tenha uma grande cultura
científica, que saiba sequer o que é a ciência, embora, naturalmente, a empresa
que dirige trabalhe com base na ciência. É muito difícil separar aquilo que é
publicidade do que é, de facto, algo mais substantivo.
As empresas de produtos de
alta tecnologia, como no caso das vacinas de RNA, grandes empresas
farmacêuticas, aproveitam naturalmente os seus produtos inovadores como meios de publicidade. As
vacinas de RNA usam, de facto, ciência avançada, e foram absolutamente revolucionárias. Têm sido usadas com sucesso para a COVID e estou
convencido que vão ser usadas com sucesso noutras doenças. Vai
haver spinoffs.
As empresas que se concentraram na COVID vão focar-se noutro tipo de doenças. Houve
aqui uma aceleração tecnológica nas modificações genéticas que será usada em noutras doenças. O que se faz ali é muito
simples, embora seja complicado fazer. Começa-se a receita de como se faz uma proteína do vírus, a proteína da espícula,
aquilo que penetra nas nossas células, e diz-se às nossas células para fazer
aquilo. Elas fabricam, de facto, uma proteína igualzinha à do vírus. Far-se-á
isso com outras doenças? A ideia é fazer um treino de fortalecimento do
organismo de uma forma controlada. A
molécula do vírus é feita pelo nosso organismo porque o código da vida é universal.
Nós partilhamos esse código com todos os outros organismos, incluindo os vírus.
Portanto, estamos desde já a usar conhecimento que terá implicações muito maiores.
As empresas tiram e tirarão proveito disso? Com certeza, ganham muito dinheiro
e vão ganhar mais. Tal como os construtores de aviões e de naves, etc. Mas isso
faz parte da vida.
Quando me dizem que vão a Marte amanhã, eu aí fico um bocadinho
mais desconfiado. Assim como com a
história de que qualquer um de nós vai poder ir ao espaço, etc. Eu não tenho
dinheiro suficiente, nem conto vir a ter. Os bilhetes são ainda muito caros, os
bilhetes para os concertos dos Coldplay são caros, mas, apesar de tudo, mais baratos…
[risos]
P- O professor deu a sua última aula há um ano, mas tal não o impede
de continuar a ser uma voz activa na ciência. Na sua última aula, disse que
aquele era “o primeiro dia do resto da sua vida” [frase de Sérgio Godinho]. Que
balanço faz a este seu “primeiro ano do resto da sua vida”?
R- Ah, boa pergunta, ainda não me tinham perguntado essa. Não costumo
fazer balanços na minha vida. Se me sinto bem passado um ano? Bem, eu sou o
mesmo. A principal diferença é que não tenho nove horas semanais na
Universidade. Aliás, o meu número de horas semanais de trabalho aumentou, só
deixei de dar aquelas aulas. Eu anunciei que ia fazer muitas «últimas aulas»,
que é o que eu tenho andado a fazer, e nenhuma delas foi ainda a última… [risos]
Estou mais livre para fazer aquilo que já gostava de fazer. Neste momento, continuo
a fazer investigação em História da
Ciência, para a qual é preciso uma variedade de conhecimentos, ligações à
cultura, etc. Dedico-me a ler e a escrever. É muito importante a ordem: não
se pode escrever sem ter lido… [risos]
Vou contar algumas coisas que faço, sumariando. Tenho neste
momento um programa na SIC, o talk show cultural O Original é a Cultura, que reúne uma
escritora [Dulce Maria Cardoso], um musicólogo [Rui Vieira Nery] e um
cientista. Apesar de dar a altas horas da noite, há a registar uma voz da
ciência no seio da cultura. Tenho um podcast na Rádio Observador que
é semanal intitulado Ciência Pop, que está nas
plataformas de podcasts e tem tido muito bem acolhimento. Por vezes respondo a
questões de ouvintes, o que é muito curioso. É uma nova maneira de chegar ao
público. Mas também uso antigas
modalidades de comunicação, como a imprensa. Estou a publicar todos os domingos
num dos jornais que mais vende em Portugal, o Correio da Manhã. Tenho andado por vários sítios do interior do país, e é o
jornal que mais encontro nos cafés. Escrevo uma coisa pequenina, são só três
parágrafos, mas encontrei outro dia uma professora que me disse que dava a ler os
meus textos aos seus alunos porque eles
só leem coisas pequeninas. [risos].
Tenho, também, no JL (Jornal de Letras) uma presença
mensal, um artigo mais cultural no sentido tradicional do termo. Colabora ainda
mensalmente nutra revista cultural, esta do Norte, As Artes Entre As Letras. E trabalho com
a Gradiva, a minha editora, na edição de livros. Herdei a colecção «Ciência Aberta» desse
grande editor que é o Guilherme Valente. Tenho ajudado autores a fazer obras, revendo
traduções, escrevendo prefácios e recensões. Faço tudo isso no meu dia-a-dia. Os livros são
objectos pelos quais tenho grande paixão.
Este ano fui três vezes à Feira do Livro
de Lisboa e uma à do Porto. O resto do meu tempo tem que ver com convites para presença real, em
câmaras municipais, escolas, bibliotecas, etc. Ainda ontem na feira do livro,
em Lisboa, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa me perguntou: “Então o que é que
faz agora?”. E eu disse, “Agora vou muito a sítios onde me chamam, câmaras,
escolas, etc.” E ele disse “É isso mesmo! É isso que eu quero fazer depois!”.
Eu acho que ele estava a ser genuíno, embora houvesse uma câmara perto. Acho
que é o que vai fazer quando se reformar da política.
Eu gosto, sempre que posso, de corresponder a este tipo de
solicitações. Ontem, na mesma Feira do Livro, apresentei um livro ilustrado de
ficção científica para crianças e jovens ["Azul do meu coração", de
Isabel Bravo e Danuta Wojciechowska]. Eu gosto de misturar ciência com arte.
Também tenho misturado ciência com música, tenho feito concertos com base em
ciência. Faço parte do Conselho Cultural da Orquestra Clássica do Centro, aqui
em Coimbra, e já comentei vários concertos onde meto sempre uma pitada de
ciência. Fiz no ano passado concertos ao ar livre, como nas ruínas de
Conímbriga, nas Buracas do Casmilo, em Condeixa, etc. São meios inovadores de juntar a ciência à arte, que eu aprecio
e espero que o público também aprecie. Ainda agora um jovem dramaturgo e actor,
que não conhecia de lado nenhum, me pediu ajuda para um projecto. Está a escrever uma peça que vai
referir o aquecimento global e está em
contacto comigo.
Enfim, tenho o tempo todo preenchido. Se houver propostas
interessantes, poderei fazer mais coisas. Tenho participado em programas de
humor. Tenho dado cursos a pessoas seniores, isto é, da minha idade ou mais
velhas. Tenho colaborado com a Fundação Francisco
Manuel dos Santos: eu e o David Marçal preparámos um programa para o Mês da
Ciência e da Educação que vai aparecerem Outubro. Hoje de manhã, antes de vir
para aqui, estive a editar um texto que sobre as mulheres na Química que vai
sair na «Ciência Aberta» da Gradiva.
Uma
das coisas apaixonantes da vida é que nunca sei as coisas que podem surgir
amanhã. Enquanto estiver vivo e de saúde, ajudarei inserindo a ciência na cultura.
Tenho muitos livros para ler, que estão
longe de ser só de ciência. Leio muita ficção e poesia, par além do ensaio. Tento
fazer uma mistura sábia das «duas culturas» que deviam ser só uma.
P-Apesar das adversidades, mantém o seu optimismo e a esperança na
ciência e no futuro?
R- Sim. Os cientistas são, por
natureza, optimistas. Se uma pessoa não
for optimista, não sei como poderá viver... [risos] Os cientistas estão cientes de que vão saber mais no dia seguinte. E vão
mesmo! Porque o conhecimento não se perde, o conhecimento acrescenta-se. E vai ficar
maior e melhor. Amanhã vamos saber mais do que hoje, o que é uma boa razão para
viver. Há novos instrumentos, como o telescópio espacial ou a
missão Artemis, que ajudam a acrescentar conhecimento. Eu sei que o tempo de vida dos humanos
é limitado, mas o tempo de vida da humanidade, tenho esperança que não seja. Não
está garantido que seja, mas oxalá seja. Existem grandes desafios, como o das alterações
climáticas, mas estou convencido que valerá a pena viver o dia de amanhã.
Gosto muito de seguir a actualidade, de ser surpreendido pela
actualidade. Por vezes há notícias tristes. Hoje, por exemplo, quando acordei, li que “o
escritor espanhol Javier Marías já não está connosco”. Mas estão os livros
dele! E há escritores a escrever que leram os livros dele. E há leitores que os
lêem e que também leram os livros dele. E, portanto, tenho razões para ser
optimista. Eu
disse, na minha última aula, que “o melhor ainda está para vir”. Não faltou
quem comentasse: “coitado, este fulano está caquético, já diz coisas sem sentido”. Mas usei a palavra “melhor”
no sentido de ver e fazer coisas que ainda não visto ou feito, e que se
acrescentarão às que vi e fiz. E, nesse sentido, o melhor ainda está para vir.
Espero o melhor do futuro. Haverá surpresas, más e boas, e a minha atitude será
de valorizar as boas. Estar aberto ao
futuro é o sentido da vida. É isso que nos faz viver.