segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Eugénio Lisboa, Poemas em tempo de guerra suja

Por João Boavida

Eugénio Lisboa, Poemas em tempos de guerra suja. Lisboa: Guerra & Paz, 2022. É um livro de poesia feito de indignação e de revolta, na linha de muitos outros que nascem da indignada consciência moral dos seus autores. A poesia sempre foi uma arma. 

Lembremos, por exemplo, esse livro mítico que é a Praça da Canção, de Manuel Alegre, e a importância que teve no despertar de consciências contra um sistema opressivo que, à custa de uma visão fora de tempo e sem justificação para sustentá-lo, mantinha uma guerra dilacerante para nós e para os povos das colónias.

Lembremos também o entusiasmo que o livro gerou, as cópias clandestinas, umas ainda a stencil, outras já impressas, que andavam em Coimbra entre os estudantes, e a rapidez com que se espalharam por todo o país; lembremos as canções que originou, que ainda hoje nos emocionam porque se tornaram hinos à liberdade e para sempre ficaram ligadas a esses tempos empolgantes.

Lembremos algumas das vozes que as imortalizaram, como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, e sem as quais esses tempos não seriam, na memória de todos nós, o que continuam a ser, emocionantes e incomparáveis. 

A poesia pode ser uma arma, e mais mortífera que aquelas que para matar foram feiras, isto é, sem sangue mas com ideias e sentimentos de justiça e de humanidade. Por tudo isto que este livro é oportuno e mostra a sua força contra uma certa amorfia que parece atravessar alguma intelectualidade portuguesa em relação à guerra de Putine e à invasão bárbara da Ucrânia. 

É disso que se trata e, desde o título, porque é, de facto, uma «guerra suja» e a sua intenção é lutar, com poemas, pela consciência moral que se revolta com o que está a acontecer. «Nas guerras vence-se, mas não se ganha. Há sempre um vencedor, um vencido e dois perdedores», diz Eugénio Lisboa na, introdução, sendo, portanto, segundo o autor, mais um «serviço inútil».

Mas talvez não seja. Em primeiro lugar, porque compete a cada um fazer o que pode para evitar uma ignomínia destas, depois, porque esta guerra ficará, em pleno século XXI, como a imagem do brutal colonialismo que a URSS (de que Putine é um representante exemplar) andou, durante décadas e décadas, a acusar os outros e que ela fazia melhor e mais brutalmente que ninguém (lembremos a Hungria e a Checoslováquia), e que continua a fazer (lembremos a Geórgia, a Chechénia, a Transnistria e agora a Ucrânia).

A história verá esta guerra como mais uma negra e suja página na grande lista de guerras negras e sujas de que está cheia. Putine e o seu bando até podem vir, no fim, a cantar vitória, e acrescentar, ao seu imenso país, mais algumas regiões, como têm feito sempre (a ganância não tem limites) mas o seu gesto ignóbil e cobarde não tem perdão nem o futuro lho perdoará. 

Poesia cortante e acerada.

«Putininio
reptilínio
latrocínio
assassínio
extermínio
curvilíneo morticínio…» (p. 42). 

Como todas, desde a fábula do lobo e do cordeiro, esta guerra também tem a sua «receita»:
«Encontre-se um pretexto
qualquer.
Dê-se a volta que um texto
requer.
Cuide-se bem do contexto
a rever.
Propague-se o hipertexto
com saber.
Usar então o pretexto
que houver.
A guerra que está no texto
requer,
ENTÃO,
Bombardear o contexto.
Morrer
estava previsto no texto» (p. 65).

Poesia maioritariamente em sonetos, mas com outras formas poéticas. Como redondilhas, de que respigo, por exemplo:

«Homens do CAPA–GÊ-BÊ
Têm grande sangue frio:
Mata-se de A a ZÊ
E sempre com grande brio» (p. 57).

Ou esta:

«Imaginem Rosa Casaco
eleito nosso presidente!
Rimaria um tal velhaco
Com um cargo tão eminente?

Mas ser eleito presidente
de uma Rússia tão augusta
este CAPA-GÊ-Bê doente
não perturba nem vos assusta? (p.80).

É certo que nem só da guerra de Putine estes poemas tratam, mas ele anda sempre por ali como um fantasma:

«Ruínas onde foram ontem casas,
Corpos a apodrecer no chão,
Crianças mortas, lindas, já sem asas,
Um mundo antes vivo, em implosão».

E a indignação que o mundo civilizado sentiu, e sente, desde há meses, a ver, incrédulo, tal barbárie, transformou Eugénio Lisboa em poemas que são pedras, ou balas, que agora não matam, mas que matarão, à sua maneira, no futuro.

«Por todo o lado a morte em vez da vida
por todo o lado o nada em vez do tudo,
por todo o lado a vida invertida
e o rasto do monstro chavelhudo» (p. 70).

«Agora mata-se mais e mais depressa,
mata-se mulher, velho e criança:
distinguir quem se mata não interessa,
é só perder tempo enquanto se avança» (p.71).

E como os novos tiranos não são diferentes de outros de má memória para a humanidade:

«Heil, Putine, que uma bruxa pariu,
em noite assombrada de segredos,
feitiços e mezinhas, e previu,
naquele monstro, só medos e enredos.

Heil, Putine, aborto malcheiroso,
cozido no enxofre do Inferno,
em frenético coito ardiloso,
fazendo do planeta longo inverno.

Heil, ó filho de coitas fedorentas
lambido por demónio malformado,
farejando ruínas com as ventas

sujas de beber o famigerado
sangue dos que à vida já roubou,
feliz por ter feito quanto almejou» (p.79). 

Poemas na linha da poesia satírica e das de escárnio e maldizer, acutilantes, fulgurantes, e atravessadas por uma indignação e um espanto moral que lhes dá, aqui e agora, outra dimensão e atualidade e, portanto, outro poder.

A poesia é uma arma, como disse acima, e será uma arma enquanto os poetas se indignarem com as indignidades e os seres humanos tenham sentido de moral. E ao contrário do que possa parecer, tê-lo-ão hoje mais atento e afiado que noutras épocas. É isso que nos faz ter esperança de que, no fim de todas as cantadas vitórias de Putine (que por certo as cantará) a história o derrotará e colocará no pelotão dos grandes facínoras que o mundo moderno cada vez suporta menos.

E para os que pensam que identificar Putine com o povo russo, que há séculos e séculos é martirizado, e hoje desinformado e envenenado pela propaganda, fica este excerto:

«Que diria Turguenév
Ou o suave Tchécov
daquele país de neve,
do século dezanove?
Um libertou os escravos
e o outro consolou
os aflitos e os agravos
a quem tudo ensinou.
Que diriam estes russos
destes seus irmãos de hoje,
mais parecidos com ursos,
atacando quem não foge?...» (p.22). 

Poemas em tempo de guerra suja, lê-se de um fôlego, sem saber o que mais admirar, se a inspiração constante e quase tumultuosa do autor se a sua capacidade assertiva e implacável. 

João Boavida

1 comentário:

Anónimo disse...

Agradeço ao Professor João Boavida o seu generoso comentário aos meus singelos POEMAS EM TEMPO DE GUERRA SUJA. É uma leitura cheia de empatia e simpatia pelas vítimas de uma guerra suja. E é uma leitura corajosa, porque o Professor João Boavida sabe bem que tanto o meu livro como o seu límpido comentário não tardarão a serem conspurcados por aqueles espíritos enviesados que gostam de "contextualizar" os tiranos e confundir o invasor com o invadido. Dizer que Putine se está a defender é o mesmo que dizer que o preto é branco. Foi sempre esta a lógica dos tiranos.
Queria só dizer ao meu Amigo João Boavida que a porcaria que em breve vão atirar para cima de nós ficará sempre como nobres medalhas, que poderemos ostentar sem vergonha.
Bem haja! Um grato abraço do
Eugénio Lisboa

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...