segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

ADEUS PROFESSORES, BEM VINDOS LÍDERES EMPRESARIAIS

Em 2015, foi enviada à comunicação social uma carta aberta assinada por pais de alunos do ensino básico na qual contestavam o doutrinamento dos seus filhos, em contexto escolar, na ideologia do "empreendedorismo". Clara Viana, jornalista do Público falou com alguns deles. O resultado foi o artigo abaixo identificado e que se pode encontrar aqui. Eis um extracto do mesmo:

“«Não fomos informados previamente, não nos pediram autorização, o que deveria ter sido feito dado o conteúdo gravíssimo deste programa, onde a sociedade é apresentada como sendo exclusivamente regida por relações económicas e que exclui tudo o que sejam relações de solidariedade» [isto] «vai contra o que tenta ensinar ao filho» [e também contra] «os valores da escola pública» (…). «Não queremos que a escola pública obrigue os nossos filhos a serem empreendedores competitivos obcecados pelo sucesso». Contestam o que consideram ser «um programa altamente estruturado de formatação ideológica».”

Passados quase dez anos poderemos dizer que esta iniciativa, com respaldo na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo, foi atendida pela tutela, pelas autarquias, pelas escolas e, em última instância, pelos seus directores e professores?

De modo algum.

De então até ao presente, a escola pública escancarou as suas portas, janelas e postigos a esta entidade que continua imparável na sua marcha evangelizadora, a todas as empresas que declaram querer ajudar os "mais desfavorecidos", com especial destaque para os sectores de banca e das seguradoras, que andaram muito tempo associados. 

Disto tenho dado exemplos neste blogue. O que se segue é apenas mais um, ainda que represente maior elaboração em termos de abrangência e abordagem do que alguns anteriores: trata-se de um tipo de coligação que passou a ser frequente entre empresas, fundações e ONG, todas partilhando o interesse em chegar aos alunos e às suas famílias. No caso, segundo a notícia, ao lado identificada e que se pode ler aqui, a iniciativa partiu desta última entidade, bem estabelecida no sistema educativo com reconhecimento da tutela.

Mais uma vez, entidades não educativas e com interesses privados entram na escola pública para "dar uma aula". Ora, quem "dá aulas" são os professores! 

Abrirmos a porta a alguém - "líderes empresariais" - que ocupa indevida e ilegitimamente o nosso lugar. Alguém que ainda tem a veleidade de explicar que o "objectivo é o de valorizar o trabalho dos professores!

Leia-se a notícia (os destaques são meus):

A Teach For Portugal (TFP) lançou o desafio a líderes empresariais para darem uma aula a alunos do segundo ciclo em escolas que servem contextos desfavorecidos. O objectivo é o de valorizar o trabalho dos professores que trabalham diariamente para que todos os alunos tenham a oportunidade que precisam para atingir o seu máximo potencial (...) Os líderes empresariais estão a preparar aulas em conjunto com professores e mentores TFP, adaptando o conteúdo às necessidades e perfis dos alunos (...) vão partilhar a sua experiência directamente em sala de aula, promovendo uma conexão entre o sector empresarial e o educativo. Através desta iniciativa, os alunos terão acesso a uma aprendizagem prática e colaborativa, enquanto os líderes empresariais conhecerão de perto a realidade diária das escolas públicas portuguesas.

DO LABORATÓRIO À COZINHA

Por Galopim de Carvalho

Vinte e quatro anos depois da jubilação, eis-me a publicar mais um livro em que se fala de açordas, migas e outros comeres, como diziam os rurais alentejanos no tempo em que, como adolescente, pude conviver com eles. Nos três anteriores, “Com Poejos e Outras Ervas”, “Açordas Migas e Conversas” e “Com Coentros e Conversas à Mistura”, além de receitas culinárias, fala-se “de tudo e mais alguma coisa”, da crónica à ficção, da mineralogia e geologia à história e à filosofia, das artes à sociologia. Neste, síntese dos anteriores, a que se acrescenta o que fui editando na minha página do Facebook apenas das muitas confecções aprendidas e criadas, todas elas da gastronomia alentejana ou nela inspirada.
 
Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. Um laboratório foi, ainda, o que, respondendo a uma solicitação do saudoso professor Orlando Ribeiro, criei no Instituto de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, onde a investigação em sedimentologia estava na base da geomorfologia.

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que por amor à arte, por assim dizer, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto na da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; cloretados, oxidados e sulfatados tomaram o lugar dos refogados, guisados e estufados; átomos e iões foram substituídos por bagos de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa.

Acontece que, em criança de 9,10 e 11 anos, era eu que, a mando de minha mãe, ia ao talho e ao mercado municipal, com o recado bem metido na cabeça, comprar o peixe, as hortaliças e a fruta. Ia também à mercearia, em busca do arroz e das massas, do feijão e do grão, do açúcar e da farinha, da manteiga e do azeite, nesse tempo, tudo a granel, aos quilos e meios-quilos, litros e meios-litros. Com essa experiência aprendi a relacionar os produtos que trazia para casa com as confecções que vinham à nossa mesa, numa família de pai, mãe, seis filhos e uma tia viúva, irmã da minha mãe, uns 18 anos mais velha do que ela. Acontece, ainda, que muito cedo ganhei interesse pela cozinha e que a minha mãe teve gosto e paciência para me ensinar os rudimentos que me permitiram caminhar “pelo meu pé”, descobrir o que fui descobrindo e criando o que o acaso fez surgir, sempre inspirado na cozinha tradicional alentejana.
 
Nos anos em que fui profissional a tempo inteiro, mais precisamente, entre 1961 e 2001, sempre gostei de, aos fins-de-semana, feriados e períodos de férias, me entreter na cozinha. Nos outros dias trabalhei naquilo em que me tornei profissional. E com que gosto! Com tanta a entrega e tanta a obsessão que costumava dizer estar sempre em férias, modo eufemístico de dizer que nunca me lembrava delas. Nos três anos que vivemos em Paris, no 5ème arrondissement, Rive Gauche, a Isabel e eu, alugámos um apartamento com uma pequena, mas funcional, kitchenette, íamos ao mercado na Rue Mouffetard, tal como os nossos vizinhos, e cozinhámos o tempo todo, ora um, ora outro.

Este outro livro, certamente o último que farei, encaro-o como um poema à gastronomia alentejana, como arte colectiva e ancestral de um povo que aprendeu a tirar das ervas, que a Natureza pôs à sua disposição, os aromas e os sabores que a caracterizam.

Importante atractor do já chamado turismo gastronómico, a gastronomia regional é um pilar da identidade da área territorial a que se refere e um património cultural que valoriza a relação entre a mesa e a sociedade locais. A gastronomia oferece ao viajante verdadeiras experiências muito pessoais e autênticas dos locais por onde passa, uma vez que, sentar-se à mesa para almoçar ou jantar, é uma necessidade de todos os dias. E a verdade é que quem viaja procura, cada vez mais, experiências que liguem os locais visitados ou a visitar às respectivas raízes culturais, e os “sabores” são uma parte importante dessas raízes. É por isso que, no dizer do colunista gastronómico espanhol Xavier Domingo (1929-1996), «Los libros de cocina son materia prima para historiadores, sociólogos, psicólogos, filósofos e incluso – termina com humor - para cocineros”. Sabemos que a gastronomia representa uma fatia importante do turismo cultural e também sabemos que este está intimamente ligado ao turismo rural, pela relação que tem com a agricultura e a pecuária que estão na base dessa mesma gastronomia.
 
Quem me conhece sabe que cozinhar tem sido para mim um hobby, à semelhança de outros, como a bricolage, a escultura, a pintura e, ultimamente, a escrita. Não sendo gastrónomo, gosto de ler sobre gastronomia, a «nona arte», como a distinguiu o conhecido gastrónomo, escritor e jornalista, Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), além de que aprecio, e muito, os bons sabores e gosto de «pôr as mãos na massa», no dizer de José Quitério (1942-), o jornalista fundador da secção de gastronomia do semanário Expresso.

Revejo-me nas palavras de Alfredo Saramago (1938-2008) que escreveu, em 1994, «O homem que gosta de cozinhar é um ser social por excelência». E é isso mesmo que eu sei que sou. Com efeito, é em confraternizações de amigos e familiares que mais gosto de cozinhar. “Do Laboratório à Cozinha” é um apanhado de ideias e sugestões passadas a escrito, cujo objectivo é dar a conhecer confecções caseiras, muito simples, vindas de pais e avós, amigos e conhecidos, citadinos e rurais, quase sempre com a marca mais ou menos visível da grande província que é a minha. Não indica quantidades nem tempos, nem se preocupa com os modos de preparação. Neste propósito, destina-se a toda aquela ou todo aquele que conheça os rudimentos da cozinha, deixando a cada um a liberdade de fazer delas o que melhor entender. 
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Capa de Francisco Bilou, com base em uma fotografia de Jerónimo Heitor Coelho

ESTÁ O DINHEIRO FIXO EM EXTINÇÃO?

O Professor Mário Frota responde à questão colocada em título numa entrevista concedida ao jornalista João Nuno Pinto, no programa “Isto é o Povo a Falar”, da K – TV. O ponto de partida é a recusa de um restaurante que labora em Portugal em receber dinheiro vivo como forma de pagamento.
 
 
Ver: Associação Denária Portugal (ver aqui e aqui

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Daniel Completo - Porque não cai a Lua - No Reino dos Porquês - Luísa Du...

GUERRA E LITERATURA: DOIS LIVROS DE RUI DE AZEVEDO TEIXEIRA APRESENTADOS EM COIMBRA


 

A ARTE DE GOSTAR DE LER: LIVRO DE CARLOS GRANJA APRESENTADO EM COIMBRA

RUA DO ARSENAL: LIVRO DE ANA PAULA JARDIM APRESENTADO EM COIMBRA

ESTAÇÃO ELEVATÓRIA DE COIMBRA BIBLIOTECA CARLOS FIOLHAIS - PROGRAMA 1.º TRIMESTRE 2025




O protocolo estabelecido entre a Sociedade CoimbraPolis e a Câmara Municipal de Coimbra, em 2007, permitiu recuperar, dinamizar e devolver à cidade a antiga Estação de Captação de Água. Desde então, este edifício, datado de 1922, tem sido um local dedicado à educação ambiental e um ponto de diálogo entre a empresa municipal Águas de Coimbra e a comunidade.

A criação da Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais marcou um novo ciclo para este espaço, em 2024. Para concretizar este projeto, foi assinado um protocolo entre a Câmara Municipal de Coimbra, a empresa municipal Águas de Coimbra e Carlos Fiolhais, investigador, físico e um dos mais destacados divulgadores científicos, em Portugal. Com este acordo, Carlos Fiolhais formalizou a doação ao Município de Coimbra da sua biblioteca, composta por mais de 40 mil documentos, permitindo o acesso público a esse espólio.

O projeto de adaptação do interior do edifício, da autoria do arquiteto João Mendes Ribeiro, estará concluído em 2025. Contudo, a Estação Elevatória de Coimbra – Biblioteca Carlos Fiolhais iniciou a atividade em outubro de 2024, tendo já realizado tertúlias e debates que convidam à reflexão sobre temas essenciais da ciência e da sociedade atual.

Da mesma forma, este espaço já acolheu o lançamento de diversas obras literárias e promoveu atividades pedagógicas dirigidas aos mais jovens.

PROGRAMA 1.º TRIMESTRE DE 2025

5 DE FEVEREIRO 14H30

Apresentação do livro infantil “No Mundo dos Porquês. A Ciência Cantada e Contada”, com espetáculo musical, de Daniel Completo e Carlos Fiolhais, para público infantil. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

21 DE FEVEREIRO 18H00 Apresentação do livro de poesia “Rua do Arsenal”, de Ana Paula Jardim, por Carlos Fiolhais. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

28 DE FEVEREIRO 18H00

Apresentação do projeto “Ephemera”, com José Pacheco Pereira e moderação de Carlos Fiolhais. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

7 DE MARÇO 18H00

Palestra-debate “Ainda vamos a tempo de salvar o nosso futuro na casa comum?”, com Viriato Soromenho Marques e moderação de Carlos Fiolhais. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

12 DE MARÇO 18H00

Palestra-debate “Ser Humano na Era da Inteligência Artificial”, com António Dias Figueiredo e moderação de Carlos Fiolhais. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

26 DE MARÇO 18H00

Conferência comemorativa do Dia Mundial da Água - “A gestão da água no contexto das alterações climáticas”. Auditório Laginha Serafim – Departamento de Engenharia Civil, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra

27 DE MARÇO 18H00

Palestra-debate “Pacto Nazi-Soviético”, com Manuel Fonseca e moderação de Carlos Fiolhais. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

2 DE ABRIL 18H00

Palestra-debate “Psiquiatria e Literatura”, com Carlos Braz Saraiva e Cristina Robalo Cordeiro, e moderação de Carlos Fiolhais. Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

3 DE ABRIL 18H00

Palestra “Os Mistérios da Água”, por Carlos Fiolhais, dirigida a alunos do ensino secundário.Estação Elevatória de Coimbra - Biblioteca Carlos Fiolhais

Está também prevista uma exposição sobre arquitectura na Serra da Estrela.

CIÊNCIAS E ARTES NA ESCOLA

Meu artigo no livro "Artes e Educação. Antologia de autores portugueses", recentemente saído na Imprensa Nacional:

A dicotomia entre ciência e artes foi discutida na famosa polémica que se seguiu à conferência que o físico-químico e romancista inglês Charles P. Snow proferiu em 1959 em Cambridge, no Reino Unido, sob o título As Duas Culturas [1]. No mundo do pós-guerra, claramente dominado pela ciência e pela tecnologia, Snow tinha chamado a atenção para a separação cada vez mais arreigada entre a ciência e a tecnologia, por um lado, e as humanidades, incluindo as artes, por outro, protestando talvez de um modo exagerado contra os “intelectuais literários” que ignoravam a ciência e tecnologia. 

Pese embora todas as numerosas e por vezes bem sucedidas tentativas de aproximação, tal dicotomia permanece tão entranhada nos dias de hoje que alguns alunos não podem deixar de ser vítimas dela. Há casos de conflitos interiores quando são obrigados a fazer uma escolha, no ensino secundário em Portugal, entre “ciências” e “letras”. Nesse nível de ensino, é assaz reduzido o trabalho interdisciplinar e, no nível do ensino superior, as escolas continuam a dificultar a interacção entre as várias disciplinas, aprofundando cada vez mais a especialização disciplinar. Deste modo, poucos alunos se poderão aperceber das fecundas intersecções e confluências entre ciências e artes. 

Acontece, porém, ao contrário do que muitos julgam, a ciência é uma forma de humanismo, pois é parte integrante da vasta e diversificada cultura humana. De facto, vendo bem, não há “duas culturas”, mas uma só, embora plural nas suas dimensões. Essas duas dimensões do espírito humano, embora servindo-se de métodos diferentes, tentam estabelecer relações, juntar o que está separado numa visão o mais coerente possível. As duas procuram sentido, encontrando-o, mesmo onde e quando ele não parecia presente. Esta comum busca de sentido é, como veremos, ajudada pela estética. As ciências, orientadas para a realidade física, na qual o ser humano evidentemente se inclui, dispõem de um método próprio para observar as regularidades que a Natureza exibe e as tecnologias, idealmente ao serviço da vida humana, permitem melhorá-la com base no conhecimento científico disponível. Por seu lado, as humanidades, não estando sujeitas a esse espartilho, não deixam por isso de estar ligadas à realidade, até pelo simples facto de serem produto do cérebro humano, que é um lugar da Natureza. 

As duas usam a imaginação para conceber mundos [2], sendo a diferença que os cientistas têm de imaginar como é o mundo real – começam por colocar hipóteses a respeito do funcionamento do mundo, cuja veracidade vão depois averiguar – ao passo que os artistas podem, mais livremente, ser criadores de mundos – embora a sua liberdade não seja total, porque eles vivem e pensam “neste” mundo. O facto de as ciências e as humanidades serem amiúde guiadas por critérios estéticos é um aspecto unificador deveras relevante que costuma ficar esquecido. Com efeito, não são só os artistas que buscam o belo, os cientistas tentam também descobrir a harmonia ou beleza do mundo, que pode ser entendido como a coerência das partes entre si e destas com o todo [3]. O poeta romântico inglês John Keats escreveu os seguintes versos no final de Ode a uma Urna Grega (1819): “Verdade é beleza, beleza é verdade/ –  e isso é tudo que conhecemos na Terra, e tudo o que precisamos de saber” [4]. É curioso que essa identificação entre verdade e beleza tenha sido proclamada em pleno romantismo, quando a ciência e tecnologia (esta última pujante com o advento da Revolução Industrial) e as humanidades estavam ou pareciam estar em colisão. Mas é muito anterior o lema latino Pulchritudo splendor veritatis, “A beleza é o esplendor da verdade”. O homem de ciências e o homem das artes são, afinal, hoje, tal como na Antiguidade Clássica, quando a racionalidade nasceu, e no Renascimento, quando a ciência moderna emergiu, o mesmo homem.

Pouco antes da palestra de Snow, o matemático e poeta britânico de origem polaca Jacob Bronowski (que foi também historiador e divulgador de ciência, dramaturgo e crítico literário) enfatizou, numa palestra proferida no MIT em Boston, nos Estados Unidos, em 1953 e publicada três anos mais tarde no livro Ciência e Valores Humanos [5], a profunda unidade entre ciência e arte, por partilharem uma ânsia de unidade num mundo plural e aparentemente díspar. Bronowski ilustrou a unidade da cultura citando o poeta, crítico e ensaísta inglês Samuel Coleridge, contemporâneo de Keats:

“Quando Coleridge tenta definir a beleza, regressava sempre a um único pensamento profundo: a beleza, disse, é a «unidade na variedade». A ciência não é nada mais do que a procura da descoberta da unidade na desordenada variedade da natureza – ou, mais exactamente, na variedade da nossa experiência. A poesia, a pintura, as artes, são a mesma procura, na frase de Coleridge, da unidade na variedade. Cada um, à sua própria maneira, procura as semelhanças sob a variedade da experiência humana.”

Não se pode dizer que essa mensagem tenha na altura sido interiorizada em círculos maiores do que que a elite mais atenta às questões culturais. Mas, em obras como A Ascensão do Homem [6], uma história popular da civilização humana, Bronowski esforçou-se no sentido da sua propagação.

Rómulo de Carvalho

Bronowski teve contemporâneos em Portugal que, estando ou não conscientes da discussão cultural no mundo anglo-saxónico, partilharam da sua ideia da profunda unidade entre ciências e artes. Havendo outros, um dos nomes maiores nesta junção entre nós das “duas culturas” foi o professor de Física e Química do ensino secundário e escritor Rómulo de Carvalho (poeta, contista e dramaturgo sob o nome de António Gedeão). A sua obra poética ilustra de um modo exemplar as possíveis relações entre arte e ciência [7], as quais muito dificilmente ele poderia pôr em prática nas escolas onde foi professor, dadas as limitações que eram os programas oficiais, as metodologias impostas e os livros únicos. Prudentemente, como revela a própria criação de um pseudónimo (surgido em 1956), ele próprio separou os dois mundos que coabitavam dentro de si. No entanto, no artigo “Ciência e Arte”, publicado na revista Palestra no Liceu Pedro Nunes em Lisboa, em 1958 [8], Rómulo de Carvalho, que nessa altura ensinava nesse liceu, escreveu:

“No nosso sentimento (e o tema é para discussão) o artista e o cientista são dois destinos paralelos embora em fases dispares da sua evolução. Ambos desempenham na sociedade o mesmo papel de construtores, de descobridores, de definidores: um, do mundo de dentro; outro, do mundo de fora. Precisemos melhor a questão. Não estamos apenas a afirmar (o que certamente teria o aplauso geral) que o artista e o cientista são pessoas igualmente estimáveis, merecedoras do mesmo respeito e ambos imprescindíveis na sociedade. Estamos a querer exprimir mais do que isso, que um e outro ocupam lugares de igual necessidade, que aqueles mundos de dentro e de fora são de transcendência equivalente, que ambos esses mundos exigem a permanente busca, a orientada investigação que, em nossos dias, é considerada apenas apanágio da Ciência.” 

A unidade entre ciência e poesia voltou a ser salientada por Rómulo de Carvalho, numa entrevista que deu, em 1991, terminada a sua carreira escolar e já perto do final da sua vida [9]. Quando interrogado sobre a referida dicotomia entre ciência e poesia respondeu:

“Há alguma dicotomia? Não há nenhuma! A pessoa encara a poesia como encara a ciência como encara a arte, como encara qualquer coisa, não há incompatibilidade. [...] Quer dizer, há uma base de onde parte tudo o que é um certo entendimento do que nos rodeia, na busca da melhor maneira de expressar aquilo que se sente. Tanto pode ser num campo como noutro. [...] É que na poesia estou a falar comigo. Enquanto na minha actividade profissional, estou a falar com os outros. “

 E, mais à frente na mesma entrevista, acrescentou:

“Bem, […] repudio até essa dicotomia. Nós estamos muito viciados, nós ocidentais, [...] nós estamos todos muito viciados pela cultura greco-latina... todos... e continuamos a ver na poesia aquela coisa extraordinária, mítica e mística, aquele valor extraordinário que os gregos e os romanos atribuíram aos poetas. É claro que era uma época em que a ciência não tinha peso nenhum. Embora hoje nós saibamos que eles tecnicamente tinham coisas muito valiosas – muito interessantes, muito valiosas, muito bem imaginadas. Mas, naturalmente, não havia ninguém que pensasse pôr uma coroa de louros na cabeça dum técnico. Isso ficava reservado para os poetas.”

Como estamos hoje nas escolas portuguesas num tempo pós Gedeão? Parece claro que, apesar de todas as citações a esse e outros autores que souberam conciliar ciências e humanidades (a começar logo pelo nosso maior poeta, Luís de Camões, cujos primeiros versos impressos surgiram num livro de ciência, os Colóquios dos Simples, de Garcia de Orta [10], e cuja obra maior, Os Lusíadas, é um repositório de conhecimentos de astronomia, meteorologia, química e botânica [11]), a actual formação de professores não ajuda a que uma ligação fértil entre ciência e artes se concretize no plano pedagógico. Continuam a existir sérios entraves como a organização e práticas escolares. Por isso, que muitos jovens têm de descobrir, fora da escola, as conexões da cultura humana que a escola lhe esconde. 

Para as pessoas formadas nas ciências – e, em geral com uma preparação nas artes reduzida – será mais viável fazer um percurso auto-didacta em áreas das artes: por exemplo Jorge de Sena, autor do prefácio para a Poesia Completa de Gedeão, que ajudou na afirmação deste autor no mundo literário, formou-se em engenharia civil (curiosamente tinha aluno de Rómulo de Carvalho). Só para dar alguns exemplos avulsos, alguns poetas como Sena têm formação científica, como Ruy Cynatti, que era antropólogo, José Blanc de Portugal, que era meteorologista, e Eugénio Lisboa, que é engenheiro electrotécnico. para já não falar dos numerosos poetas médicos, como Miguel Torga, Fernando Namora, Bernardo Santareno, António Lobo Antunes, Jorge de Sousa Braga, João Luís Barreto Guimarães e António Oliveira [12]. Em contraste, será mais difícil às pessoas formadas nas humanidades, com mais reduzida preparação matemática, a entrada no mundo da ciência.     

O exemplo de Werner Heisenberg

Outras escolas que não a nossa têm sabido comunicar uma formação humanista integral, a qual, partindo das nossas raízes greco-latinas, e passando pelo Renascimento, transmite aos estudantes o que tem sido a “ascensão do homem.” Um bom exemplo dessa formação é aquela que os liceus do espaço germânico proporcionavam no século XX, como tão bem revelam as biografias e obras dos autores da teoria maior do século XX que foi a teoria quântica, a teoria que, numa grande visão unificadora, explica tanto os átomos como as estrelas. Após os passos iniciais dados por uma plêiade de físicos como Max Planck, Albert Einstein, Niels Bohr e Louis de Broglie, essa teoria ficou completa, na forma que hoje conhecemos e aplicamos, em 1926, com os notáveis trabalhos, independentes mas complementares, do físico alemão Werner Heisenberg, Prémio Nobel da Física de 1932, e do físico austríaco Erwin Schrödinger, Prémio Nobel da Física de 1933, o primeiro autor de uma “mecânica de matrizes” e o segundo de uma “mecânica de ondas”, que são apenas duas maneiras diferentes de formular a mesma doutrina.

Uma vez que o humanismo de Schrödinger já foi valorizado noutro lado [13], valerá a pena deixar aqui algumas notas sobre Heisenberg. Bom apreciador de música clássica (também pianista) e profundo conhecedor da filosofia, a começar desde logo nos clássicos greco-latinos, Heisenberg conhecia o dito Pulchritudo splendor veritatis, para a qual chamou a atenção no seu livro Across the Frontiers [14]:

“O significado da beleza para a descoberta da verdade tem sido reconhecido e enfatizado em todos os tempos. O lema em latim Simplex sigillum veri – ‘O simples é o selo da verdade’ – está inscrito em letras garrafais no auditório de Física da Universidade de Göttingen, como uma exortação àqueles que descobririam novidades; mas outro lema em latim, Pulchritudo splendor veritatis, ‘A beleza é o esplendor da verdade’ – pode também ser interpretado como querendo dizer que o investigador reconhece a verdade, primeiro, por seu esplendor, pelo modo como ela brilha.”

O seu ponto de partida são as ideias pitagóricas, que desembocaram no platonismo, respeitantes à ligação entre a matemática e a música. Essa relação seria mais tarde cultivada por cientistas. O pai de Galileu, Vincenzo Galileo, foi alaudista em Florença, cocriador da ópera e teorizador da harmonia musical [15]. Muito mais tarde, Einstein, um violinista amador, confessou que, se não fosse físico, seria músico, justificando desta maneira: “Penso muitas vezes musicalmente. Vivo musicalmente os meus sonhos diurnos. (…) Tiro o maior prazer da minha vida do violino” [16]. Heisenberg acrescentou sobre a definição e o papel da beleza [14]: 

“A beleza, conforme a primeira das nossas definições antigas, é a conformidade adequada das partes entre si e com o todo. As partes aqui são as notas individuais, enquanto o todo é o som harmónico. A relação matemática pode, desse modo, reunir duas partes inicialmente independentes num todo e produzir beleza. Essa descoberta produziu um avanço na doutrina pitagórica para formas totalmente novas de pensamento, suscitando, assim, a ideia de que a base primordial de todo o ser não era mais considerada matéria sensorial, tal como a água em Tales, mas sim um princípio ideal de forma. Isso afirmou uma ideia básica que, mais tarde, forneceu o fundamento para todas as ciências exactas.”

Numa carta a Einstein transmitiu essa mesma posição [17]. Aprofundando a ligação entre ciência e arte, esclareceu [14]: 

“Compreender a multiplicidade colorida dos fenómenos foi, desse modo, aprofundada através do reconhecimento neles de princípios unitários a respeito da forma, que podem ser expressos na linguagem da matemática. Deste modo, foi estabelecida também uma conexão íntima entre o inteligível e o belo. Porque se o belo é concebido como a conformidade das partes entre si e com o todo, e se, por outro lado, toda compreensão é tornada possível em primeiro lugar por meio dessa conexão formal, então a experiência do belo torna-se virtualmente idêntica à experiência das conexões, sejam estas compreendidas ou pelo menos adivinhadas.”

Por aqui se percebe que, para um grande criador da ciência, a experiência científica é semelhante a uma experiência estética. Na mesma linha, disse o matemático alemão Hermann Weyl: “Sempre procurei no meu trabalho juntar o verdadeiro e o belo, mas, quando tive de escolher, escolhi normalmente o belo”. A física moderna veio, ao longo do século XX, a revelar a existência de simetrias abstractas no âmago da realidade física. E as simetrias são, como sempre foram e como a arte tão bem evidencia [18], manifestações superiores de beleza. 

Em conclusão

Há muito espaço – e há uma multidão de caminhos para percorrer – para a aproximação entre ciências e humanidades na escola. Uma vez que a escola se destina a preparar para a vida, a questão é a de saber que vida desejamos para as gerações seguintes: uma vida fragmentada e quiçá dolorosa ou uma vida plena e tranquila, na qual saibamos ocupar o nosso lugar no mundo, procurando responder às nossas interrogações, em particular as que dizem respeito ao desafio que estava inscrito no templo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!” 

Konrad Lorenz, um dos pais da etologia e prémio Nobel da medicina de 1973, enfatizou a necessidade de comunicar a proximidade entre beleza e verdade aos jovens [19]:

“Os jovens de hoje deem ter acesso à mensagem de magnificência e beleza deste mundo para que compreendam o lugar do homem no universo e se não abandonem ao desespero. É preciso fazê-los compreender que a verdade também é bela e está cheia de mistérios inimagináveis e que não é necessário entregarmo-nos às drogas ou tornarmo-nos místicos para termos a experiência do maravilhoso.”

Referências:

[1] Snow, Charles P., The Two Cultures and a Second Look, Cambridge Mass., Cambridge University Press, 1963. Traduções portuguesas são As Duas Culturas, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1965, e Lisboa,: Presença, 1996; ver sobre o tema: Fiolhais, Carlos, “‘Estranhas, mas irmãs’: revisitando a questão das duas culturas”, Revista Lusófona de Estudos Culturais 2, vol. 3 (2016), p. 103-111. http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/view/259/162>.

[2] Fiolhais, Carlos, “Imaginação, ciência e arte”. Biblos. Série 2. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade. Vol. 6 (2008), p. 3-16. http://hdl.handle.net/10316/12372 .

[3] Fiolhais, Carlos, “Os jardins secretos de Mandelbrot“, in Universo, computadores e tudo o resto. Lisboa: Gradiva, 1994. http://dererummundi.blogspot.com/2008/08/os-jardins-secretos-de-mandelbrot.html

[4] Keats, John, “Ode on a Grecian Urn, in Annals for the Fine Arts for 1819, vol. 4. Ver Complete Poems, Cambridge Mass.: Harvard University Press, 1982. Algumas odes estão traduzidas em português, ver e.g. Odes, Porto: Livraria Sousa Almeida, 1960.

[5] Bronowski, Jacob, Science and Human Values. New York: Julian Messner, 1956. Tradução portuguesa: Ciência e Valores Humanos, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972. Texto reeditado em Bronowski, Jacob, A Responsabilidade do Cientista e Outros Escritos, (Introd., org. e notas de A.M. Nunes dos Santos, C. Auretta e J.L. Câmara Leme), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

[6] Bronowski, Jacob, A Ascensão do Homem. Boston: Little Brown and Company, 1974. Reedição, London: BBC, 2013. Há tradução em português do Brasil: A Escalada do Homem São Paulo, 3.ª ed., 1992.

[7] Gedeão, António, Poesias Completas (1956-1967), Lisboa: Portugália, 2.ª ed., 1968. Reedição: Obra Completa, Lisboa: Relógio d’Água, 2004. O prefácio, intitulado “A Poesia de António Gedeão (esboço de análise objectiva),”  é de Jorge de Sena. Sobre a poesia de Gedeão ver: Fiolhais, Carlos, “Poesia e Ciência em António Gedeão”, Nova Síntese, Cultura Científica e Neo-Realismo, Fitas, Augusto J.S., (ed.)Lisboa: Colibri 2019. http://dererummundi.blogspot.com/2019/10/poesia-e-ciencia-em-antonio-gedeao.html

[8] Carvalho, Rómulo de, “Ciência e Poesia”, Palestra 1 (Lisboa, 1958), p. 20-27.

[9] Christopher Auretta e António Nunes dos Santos, António Gedeão: 51+3 Poems and Other Writings, Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 1992. Tradução em português: “Uma Conversa com Rómulo de Carvalho”, Gazeta de Física vol. 16, fasc. 1 (1993), p. 2-8. 

[10] Fiolhais, Carlos e Paiva, Jorge (coords.), Primeiro Livro de Botânica: Colóquio dos Simples, de Garcia da Orta, vol. 15 de Fiolhais, Carlos, e Franco, José Eduardo (coords.), Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 30 vols., 2017-2019. 

[11] Tomás, Túlio Lopes, Os Lusíadas e a Ciência do Renascimento. Macau: Imprensa nacional. Ver também Silva, Armando Tavares, Camões e a Química. A Química em Camões, ed. autor, Lisboa, 2010, e Paiva, Jorge, “As plantas na obra poética de Camões (épica e lírica)”,  in Andrade, António Manuel Lopes de et al. (coords.), Humanismo e Ciência,  Antiguidade e Renascimento,  Coimbra: Universidade de Aveiro editora e Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume,   http://hdl.handle.net/10316.2/35691

[12] Fiolhais, Carlos, “Ciência e Literatura: Encontros e Desencontros”,  Atlântida, LXIII (2018), p. 277-286. ( http://dererummundi.blogspot.com/2018/12/ciencia-e-literatura-encontros-e.html ). Ver também duas antologias sobre ciência e poesia: e Bochicchio, Maria,  e Moura, Vasco Graça, O binómio de Newton e a Vénus de Milo. Lisboa: Fundação Champalimaud e Alêtheia, 2011 e Malhó, Rui, O Bosão do João, 88 poemas com ciência, Lisboa: By The Book, 2014.

[13] Fiolhais, Carlos, “Ciência e humanismo: a visão da ciência de Erwin Schrödinger. Biblos. Nova série. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade. N.º 1 (2015), p. 127-151. 

( http://hdl.handle.net/10316/40714 ). 

[14] Heisenberg, Werner (1982), “The Meaning of Beauty in the Exact Sciences.” In: Across the Frontier. New York: Harper & Row, 1974, p. 167-180. Ver também do mesmo autor: (1984) Physics and Philosophy, New York: Harper & Brothers, 1958, e Physics and Beyond: Encounters and conversations, Harper and Row, 1971, Tradução portuguesa: Diálogos sobre Física Atómica. Lisboa: Verbo, 1975. Sobre a estética em Heisenberg ver Videira, António Passos, e Puig, Carlos Fils, “Realidade, linguagem e beleza segundo Werner Heisenberg,” Prometeica, n.º 21 (2020), 73-84. (https://doi.org/10.34024/prometeica.2020.21.10410 )

[15] André, João Paulo, Poções e Paixões, Química e Ópera, Lisboa: Gradiva, 2019.

[16] Calaprice, Aline, The Ultimate Quotable Einstein, Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2011. Há tradução portuguesa: Citações de Albert Einstein. Lisboa: Relógio d’Água, 2018, p. 237.

[17] Stewart, Ian, Why Beauty is Truth. A history of symmetry, New York: Basic Books, 2007, p. 278. Ver também: Chandrasekhar, S., Truth and Beauty. Aesthetics and Motivations in Science,  Chicago and London: The University of Chicago Press, 1987.

[18] Weyl, Hermann, Simetria, Lisboa: Gradiva, 2 017, rev. científica e posfácio de Carlos Fiolhais. 

[19] Lorenz, Konrad, The Waning of Humaneness, Boston: Little, Brown and Company, 1987, p. 209-210.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O BEM-ESTAR ANIMAL JÁ É ÁREA DE EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA NO CURRÍCULO ESCOLAR

Li a seguinte notícia no Público de hoje (ver aqui)

 
Deixemos a eterna questão do carácter opcional ou obrigatório da disciplina de Cidadania, ou de Educação para a cidadania, ou da Cidadania e desenvolvimento (isto para não invocar as múltiplas designações que surgiram antes destas) e o facto de esta componente estar mais dependente das políticas partidárias do que dos desígnios formativos que devem ser os da educação escolar pública, e foquemo-nos nos domínios e temas ou áreas, como se lhe queira chamar.

Ora, a partir de 2016, o Bem-estar animal (seja isso o que for, tal como o "bem-estar" humano... não se leia a desvalorização da vida animal, que, de resto, também inclui os humanos) está contemplado como domínio opcional (veja-se abaixo "Domínios opcionais") na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC). Ou seja, esta área já consta no currículo escolar, como se pode constatar num quadro constante na publicação oficial dessa Estratégia

Os agrupamentos de escolas/as escolas não agrupadas, ao abrigo da sua autonomia (atenção ao Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular vigente) podem, caso entendam, escolher esta área.

Poder-se-á dizer que não sendo obrigatória, corre-se o risco (se é um risco) de a área não ser escolhida. Bom, a autonomia permite, legalmente, fazer escolhas curriculares. E, convenhamos, nem todas as dezassete (e outras) áreas atribuídas à cidadania podem ser obrigatórias, a menos que descartemos (ainda mais) o tempo de disciplinas escolares ou as dispensemos de todo.

Mas o que eu queria realçar é que, neste como noutros casos, seria muito conveniente que os políticos com responsabilidade na formulação de políticas curriculares, estudassem a fundo o currículo vigente (sim, dá trabalho, muito trabalho!) para que não fizessem passar para a opinião pública ideias que serão meias verdades.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

EDUCAÇÃO E VIDA INTELECTUAL

Do último número da revista Teoría de la Educación destaco um artigo - Educação e vida intelectual - que, ao arrepio, da tendência de instrumentalização do conhecimento, da funcionalidade que ele pode ter em termos imediatos, afirma o valor que ele tem na vida intelectual e que não lhe pode ser negado.

"Este texto aborda o valor e os desafios da vida intelectual, sublinhando que se trata de um bem humano acessível a todos (...). O autor defende que a vida intelectual enriquece a vida interior, permitindo uma compreensão mais profunda dessa vida (...). Este enriquecimento não depende do reconhecimento visível (...) mas desenvolve-se internamente. A vaidade é um dos principais perigos da vida intelectual, pois pode levar a desvios do caminho da verdadeira aprendizagem. Apesar do seu carácter solitário, a vida intelectual exige a interação com os outros para enriquecer a compreensão e o conhecimento. 

O autor recomenda que se estabeleçam pontes com pessoas de diferentes origens, mesmo fora do ambiente académico, para promover uma aprendizagem mais diversificada e mais rica. Relativamente à corrupção na vida intelectual, alerta para o perigo de utilizar o intelecto para ganhar poder ou estatuto, em vez de procurar o conhecimento pelo seu próprio interesse (...)

O gosto pela aprendizagem é apresentado como uma possibilidade de auto-conhecimento e de desenvolvimento pessoal. O autor critica a equiparação de todas as experiências intelectuais, como jogar videojogos e estudar, e defende uma hierarquia na educação que distinga isso mesmo. 
 
Por último, é referido o Projeto Catherine, uma iniciativa da Universidade de St. John's, que promove a vida intelectual através de conversas sobre grandes livros. Este projeto demonstra o interesse e a necessidade de espaços de desenvolvimento intelectual para além das instituições tradicionais"

sábado, 8 de fevereiro de 2025

UMA CURIOSIDADE EM QUE SE FALA DE CRISTALOGRAFIA.

Por A. Galopim de Carvalho

Hoje, ao falar de minerais, praticamente, já ninguém fala em sistemas cristalográficos (cúbico, tetragonal, monoclínico e outros), classes de simetria, eixos de rotação, planos de simetria, etc. Uma matéria linda que, quando mal ensinada, foi detestada pelos alunos que tiveram de a “empinar” para passarem no exame. 
 
Era a chamada Cristalografia Morfológica, disciplina de pendor geométrico e matemático que, no século XIX e primeira metade do XX, esteve na base de toda a investigação em Mineralogia. 
 
A recente Cristalografia Estrutural, possibilitada pela investigação com base na utilização dos raios X, é hoje um capítulo da Física do Estado Sólido e arrumou a dita Morfológica na “prateleira do esquecimento”.

Em termos da velha Cristalografia Morfológica, o quartzo α (alfa) representa a classe trapezoédrica trigonal, caracterizada pela existência de um eixo de rotação de grau 3 e de três de grau 2, situados no plano perpendicular ao eixo ternário, fazendo entre si ângulos de 120.º. Nestas condições, não tem centro nem planos de simetria. O quartzo β (beta) pertence à classe trapezoédrica hexagonal, com um eixo de rotação de grau 6 e três eixos de grau 2, situados no plano perpendicular ao dito eixo, fazendo, entre si, ângulos de 60.º. À semelhança do quartzo α, a conjugação destes operadores implica a ausência de centro de simetria. Hoje fala-se das respectivas estruturas íntimas, ou seja, do arrumo dos iões nas respectivas redes ditas cristalinas.

Quando se fala de quartzo, sem mais qualificativos, referimo-nos ao quartzo α (alfa) ou de baixa temperatura, presente e abundante em todos os grandes grupos de rochas da crosta, das ígneas ou magmáticas às metamórficas, passando pelas sedimentares e, ainda, pela imensa maioria dos corpos filonianos pegmatíticos e hidrotermais.
 
Por tradição, o conceito de cristal implicava o carácter poliédrico (facetado) do sólido, fosse ele uma substância mineral ou orgânica, natural ou produzida artificialmente. Tal concepção foi abandonada a partir do momento em que (com a descoberta dos raios X) se tornou conhecida a estrutura íntima, à escala atómica, dos corpos no estado sólido. Assim, cristal é hoje entendido como uma porção uniforme de matéria cristalina, isto é, matéria caracterizada por uma disposição geométrica dos seus átomos, segundo redes tridimensionais, próprias de cada espécie. 
 
Um tal arranjo geométrico interno deste tipo é posto em evidência, entre outras manifestações, pelas faces do cristal pela existência e orientação dos planos de clivagem e das maclas. Mas nem sempre a matéria cristalina se manifesta com a configuração de um cristal, no sentido vulgar do termo, isto é, no de um corpo poliédrico, total ou parcialmente limitado por faces planas. Um grão de quartzo, no seio do granito ou solto, como grão de areia da praia, não tem forma poliédrica, mas é matéria cristalina.
 
Vem isto a propósito da fotografia, do lado direito, inferior, da imagem, onde são visíveis pequenos triângulos.

Fotomicrografia obtida ao microscópio dito de varrimento (“scan”) põe em evidência a classe trigonal do quartzo alfa ou de baixa temperatura e mostra que mesmo um simples grão de areia, (arrancado por erosão de uma qualquer rocha (não vulcânica), é matéria cristalina. É, digamos assim, parte de um cristal que não teve condições para se manifestar. como foi o caso exemplificado na outra fotografia.

A "PRIVATIZAÇÃO OCULTA" DAS ESCOLAS PÚBLICAS. UM ESTUDO QUE NOS AJUDA A PENSAR NO SISTEMA DE ENSINO PORTUGUÊS

Há poucas semanas uma professora do primeiro ciclo do ensino básico, com mais de trinta anos de carreira, contava-me que, no presente ano lectivo, o agrupamento de escolas onde lecciona, aceitou integrar o "projecto pedagógico", intitulado DigitALL, promovido pela Fundação Vodafone. Dizia-me que o projecto havia sido imposto a todos os professores desse ciclo, que a sua opinião não foi pedida e que, além do mais, não lhe agradava ver no seu espaço de ensino, ocupando uma hora semanal ao longo do ano letivo, "parceiros" sem credenciais para educar.

Apesar de estar atenta a "projectos" engendrados por "entidades privadas que participam no nosso sistema de ensino", ainda não conhecia este. Eles surgem com frequência crescente e de onde menos se espera, não é fácil acompanhar o seu surgimento.

Tratei de me informar. Nenhuma novidade: a mesma retórica, os mesmos procedimentos, as mesmas redes (ver, o projecto, por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui; o acolhimento por municípios e agrupamentos de escolas, por exemplo aqui, aqui, aqui).

Mais um stakeholder que alega a "responsabilidade social", a que agora se junta a "sustentabilidade"; diz querer participar graciosa e desinteressadamente na salvação da escola pública. Já recebeu muitos prémios por isso. É reconhecido como "parceiro de qualidade" pela Direção-Geral da Educação, estabelece protocolos com municípios (chega a dezenas) e, claro, com agrupamentos de escolas (chega a quase centena e meia), e, como se percebe, a milhares de alunos. Promete ampliar a sua acção.

Poucos dias depois de ter recolhido informação, tive conhecimento do artigo de carácter teórico-empírico, assinado por Erika Martins e Sofia Viseu, saído muito recentemente, sobre o "projecto" a que me refiro.

Em concreto, o artigo incide na forma como as escolas públicas portuguesas interpretam, traduzem e contextualizam programas promovidos por fundações privadas, com especial destaque para o DigitAL. A análise documental e entrevistas realizadas a actores que aí laboram revela o acolhimento crescente de programas filantrópicos "prontos a usar" e, em consequência, da sua normalização. Nas palavras das investigadoras:

«... estes dados convergem para a ideia de que o sector privado utiliza o conceito de filantropia para criar, expandir e promover a sua presença nas escolas, esbatendo assim as fronteiras entre serviços públicos e privados. Este fenómeno cria uma forma de “privatização oculta” nas escolas (Ball e Youdell 2007), posicionando as intervenções filantrópicas como uma “alternativa necessária” à educação pública».

Quem tem alguma responsabilidade na escola pública, devia ("devia" porque, na verdade, é uma questão de dever, de ética) pensar nas consequências que advêm desta conclusão.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Arroz de coelho

Por A. Galopim de Carvalho

O nosso arroz de coelho, preparado com a metade dianteira do animal, o devant de lapin no dizer dos franceses, nasceu em Paris, no início dos anos 60 do século que passou, no antigo Hotel Blanadet, 51, Rue Monge, no 5 ème arrondissement, em plena rive gauche, designação dada a esta zona na margem esquerda do Sena, então muito frequentada por artistas e intelectuais. Aí se situavam o Museum National d’Histoire Naturelle, o Collège de France, a École de Mines, a Sorbonne, a École Politechnique e outras instituições de ensino superior e de investigação científica onde estudavam e estagiavam uma dezena de portugueses, entre geólogos, físicos, biólogos e até um sociólogo, todos eles residentes no velho e simpático hotel. Concentrados no 6.º andar, que um de nós baptizou de “Avenida das Tílias”, aí se viveu, por mais ou menos tempo, em apartamentos ou em quartos simples, consoante se tratasse de casal ou de pessoa só.

Muitas e muitas vezes, aos domingos, reuníamo-nos em longos e animados almoços, ora no nosso apartamento ora no dos Martinhos, os únicos com o espaço suficiente para sentar uma dezena de lusitanos, ávidos de falar a própria língua, ao fim de uma semana literal e, às vezes, penosamente francófona, saudosos de saborear qualquer coisa que nos trouxesse a casa e nos recompusesse para mais uma semana de Réstaurant Universitaire, de self-services ou de refeições comidas à pressa, à base de baguettes, jambon, patées ou queijo Brie. Foi neste contexto que, um certo domingo, servimos aos nossos conterrâneos, colegas e vizinhos o dito e saboroso arroz de coelho.

Nessa altura, em que o franco francês rondava os seis escudos (o preço de um litro de gasolina), comprava-se no talho um coelho médio por sete a oito francos, com a curiosa particularidade de a metade dianteira, o devant, quase sempre rejeitado por uma clientela de viver mais desafogado, ser vendido aos clientes de menores posses, como era o nosso caso, por apenas um franco, e o dérrière, pelos restantes seis ou sete.

Com as cabeças, mãos, costelas e fressuras de quatro ou cinco coelhos comia-se, no dizer de todos, o melhor arroz do dito, um pouco ao jeito do sabor da cabidela perfumada com cominhos.

– Este manjar, - dizia o Miguel Ramos, um dos lusitanos, a chupar à mão, uma a uma, as finas costelinhas, – devia ser comido acompanhado de louvores à Natureza e à arte de quem o confeccionou. Tais almoços, bem regados por bons tintos du Rhône e outros bem escolhidos, e pela sempre fresca, saborosa, perfumada e estaladiça baguette, prolongavam-se tarde fora, de mistura com muita conversa e animação, que crescia na razão inversa do nível do líquido nas respectivas bouteilles.

– Abre aí outra – dizia o António Ribeiro – que esta já disse o que tinha a dizer.

El Cid Campeador contado a crianças e jovens

Disponibilizo aqui o último texto que escrevi para o Ponto SJ - Portal dos Jesuítas Portugueses sobre um conjunto de publicações para a infância e juventude que seguem a pista de um herói de Espanha (El Cid Campeador), aproximado de outros heróis de outros países, nações, lugares. 
 
A grande valia da obra, no seu conjunto (são vários os volumes que a compõem) é o fundamento histórico que subjaz à construção das histórias, bem como a transposição que é feita para a contemporaneidade da vida e circunstâncias desse herói.

Revisitar (em papel, através de imagens e textos criados e escrutinados por especialistas de diversas áreas), o passado, com as suas grandezas e fraquezas, talvez ajude os mais novos a compreender o presente e, para o pior e o melhor, a constância da condição humana.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

PERDER A ALMA POR UM PRATO DE LENTILHAS

A poesia de Eugénio Lisboa como leitura da intemporal (e, portanto, actual) condição humana.
Perder a alma é sempre um mal,
mas perdê-la, ou por uma fortuna,
ou, mesmo, um sumptuoso pedestal,
ou tesouro oculto numa duna,

ou cátedra e outras maravilhas,
um título ou um penduricalho,
perdê-la por um prato de lentilhas
é, para a salvação, bem fraco galho.

Que a ambição seja, ao menos, digna
daquilo por que a alma se perde:
descomunal, ainda que maligna,

invasora como floresta verde!
A ambição nunca se quer pequena,
mesmo que louca e extraterrena!


Eugénio Lisboa

ADEUS PROFESSORES, BEM VINDOS LÍDERES EMPRESARIAIS

Em 2015, foi enviada à comunicação social uma carta aberta assinada por pais de alunos do ensino básico na qual contestavam o doutrinamento ...