Meu prefácio ao livro de José Eduardo Franco que acaba de sair no Círculo de Leitores /Temas e Debates:
Sou europeu desde que nasci. Na escola aprendi com Luís de Camões que a
terra onde tinha nascido era “cume da cabeça/ De Europa toda”.
Mais tarde com Fernando Pessoa fiquei a saber que a Europa “fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. /O
rosto que fita é Portugal.” Já percorri quase toda
a Europa, fui várias vezes à América, mas nunca fui a África, como foi Pessoa,
nem à Índia, como foi Camões (Pessoa ficou a metade do caminho de Camões).
Quando viajei na Europa pela primeira vez estranhei que as fronteiras de
Portugal fossem das poucas que estavam fechadas (de noite, nem sequer abriam!).
Portugal era um quarto fechado da Europa. Hoje, felizmente, as fronteiras estão
abertas e posso, podemos todos, andar, sem mostrar o cartão de cidadão nem
trocar de moeda, na maior parte dos países europeus. A ideia dos Estados Unidos
da Europa, de que Vítor Hugo falou, em 1849, no Congresso Internacional da Paz
e depois, em 1871, na Assembleia Nacional Francesa, pode ser mítica, mas está em boa parte consubstanciada
na actual União Europeia. Sim, eu sei, todos sabemos, que essa ideia está cheia
de contradições, que o Brexit poderá ser uma cisão irreparável na União, que a
liderança política europeia é hoje muito débil, que os velhos nacionalismos
espreitam por todo o lado, que a democracia liberal sobre a qual tem assentado
a nossa governação corre sérios riscos.
Seja como for a Europa
é a minha casa, é casa dos portugueses. Que
Europa? A Europa – a Europa das antigas Atenas e Roma, onde nasceram a
filosofia e o direito, que são traves-mestras do nosso pensamento e da nossa
vida, a Europa da Idade Média cristã, onde surgiram as universidades que hoje nos
continuam a formar e a alimentar o espírito, a Europa do Renascimento, onde o
humanismo floresceu e a Revolução Científica despontou, a Europa do Iluminismo,
onde a ciência triunfou como grande baluarte da razão, a Europa da Revolução
Industrial, onde a ideia de progresso económico ganhou raízes para crescer, e,
finalmente, a Europa da actual União Europeia, onde houve e há paz após duas
guerras que devastaram o Velho Continente. Quero, como português, ter um futuro
nela. O continente poderá ser velho, mas gostava que conseguisse ser novo.
Portugal pela posição
geograficamente extrema na Europa nunca teve uma posição fácil no contexto
europeu. Mas não há dúvida que nasceu europeu, em plena Idade Média, no seio da
cristandade. É portuguesa e está em Coimbra uma das primeiras universidades que
a cristandade soube constituir. Largando a Europa com coragem, os Portugueses
souberam nos séculos XVI e XVI empreender a primeira globalização, ao descobrir
“novas ilhas, novos mares, novos povos e,
o que mais é, novo céu e novas estrelas” (a frase é de Pedro Nunes, no seu “Tratado
em defensão da carta de marear com o regimento da altura”, apenso ao
“Tratado da Esfera” de 1537). A Europa, quer dizer, a cultura europeia, foi
levada pelos portugueses às sete partidas do mundo, pondo em contacto pessoas com
muito diferentes. O jesuíta Luís Goes enumerou no seu “Tratado em que se contem
muito susinta e abreviadamente algumas contradisões e diferenças de custumes
antre a gente da Europa e esta província do Japão”, em 1585, as diferenças, bem marcantes, entre os
portugueses e os “japões”, não só antropológicas como nos usos e costumes :“Pola
maior parte dois homens de Europa são altos de corpo e boa estatura; os Japões
pola maior parte mais baixos de corpo e estatura que nós”. Depois houve, é
certo, um prolongado período de recolhimento, para não dizer decadência. Fernando Pessoa escreveu,
no seu poema “Opiário”, que pertencia "a um género de portugueses / Que depois de
estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho". No século XVIII,
houve é certo o Iluminismo em Portugal, Iluminismo católico como convinha, mas
o Marquês de Pombal para que se visse bem a sua luz, esforçou-se por apagar a
dos outros. Revolução Industrial é que não houve, pelo menos no tempo certo:
foi importada tardiamente, com todos os custos que importa a importação tardia. A geração de 70, com o
clarividente Antero de Quental à cabeça, denunciou a distância que nos separava
da Europa, isto é, da civilização (ecoam até hoje as suas palavras nas “Causas
da Decadência dos Povos Peninsulares”: “Que
é, pois, necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para
entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta?” O nosso século XX foi, em
grande parte, tempo perdido, tal como foi boa parte do nosso século XIX. O Estado Novo cultivou com insistência a ideia do
“orgulhosamente sós,” traduzida na ideia de grandeza em que
se cobria o mapa da Europa com as “províncias” portuguesas, que iam do Minho a
Timor. No dia 12 de Junho de 1985, com a assinatura de Mário Soares no claustro
do Mosteiro dos Jerónimos, voltámos, em boa hora, a ser europeus. Foi a Europa
que nos ajudou à modernização, eufemisticamente chamada “convergência,” por
exemplo a erguer um sistema de ciência que tem permitido entre nós a formação e
o conhecimento avançados (obrigado José Mariano Gago!). De facto, é nossa condição
irrenunciável a de sermos europeus, pois
a Europa é a nossa matriz geográfica e cultural. Neste globo, que ajudámos a
encurtar, a geografia sempre foi condicionante da cultura.
A Europa é, para nós, um
facto. Mas a Europa, para além de facto, por vezes mais próximo e noutras vezes
mais distante, sempre foi um mito. O historiador José Eduardo Franco,
especialista dos mitos na cultura portuguesa (ele analisou com particular
atenção os mitos referentes aos jesuítas, uma das primeiras instituições globais para a qual Portugal serviu como
“rampa de lançamento” no mundo) e estudioso da visão que temos da Europa (ver os volumes “A Europa segundo Portugal”, “Repensar
a Europa” e “Europa das Nacionalidades”, que coordenou) analisa neste livro,
que percorre toda a história de Portugal, os mitos que fomos construindo a
respeito do continente que integramos. Os vários textos, que têm
individualidade própria e podem por isso ser proveitosamente lidos de forma autónoma,
vão desde as nossas primeiras percepções da Europa, às concepções
renascentistas, ao pensamento do Padre António Vieira (ao autor devemos estar muito gratos
pela publicação da “Obra Completa” de Vieira, talvez o maior dos mitómanos
portugueses), às concepções iluministas do pombalismo, à ideia do socialismo
utópico, com raízes na geração de 70, aqui representado por Sebastião Magalhães
Lima, e o contraponto católico que aqui está representado pelo Padre José
Joaquim Sena de Freitas, e finalmente as ideias contemporâneas desses dois grandes
pensadores de Portugal que são o Padre Manuel Antunes e Eduardo Lourenço.
No fecho, dito em
“aberto”, está a conclusão, que me permito antecipar aqui, esperando que ela abra
o apetite para que os leitores saboreiem os argumentos que até lá conduzem:
“Na Europa, nascemos como país, na
Europa, buscámos a nossa legitimação, da Europa, saímos para sermos um povo
entregue ao mundo, mas à Europa, viemos buscar sempre a confirmação e o
reconhecimento da nossa mitificada grandeza. Foi então que nos sentimos na
dianteira da Europa, imaginando-nos capazes de fazer um mundo novo, um Quinto
Império, como idealizaram os nossos escritores maiores: Camões, Vieira e
Pessoa. Contudo, esta visão auspiciosa de nós próprios viveu mais da imaginação
do que da crua realidade da nossa condição de país-quase-sempre-em-crise. E
fomos vivendo de sonho em sonho, de um Portugal com um papel relevante na
história, sempre à procura de uma saída, de um ponto de fuga, para nos
viabilizarmos como projeto de Estado autodeterminado. Em todo este percurso
multissecular, a Europa, continente de que fazemos parte como se às vezes não
fizéssemos, funcionou e manteve-se sempre no horizonte também mitificado, ora
como espelho, ora como palco, e a maior parte das vezes como meta a atingir.”
Está aqui bem claro um
dos problemas nacionais: saímos um dia da Europa e, nas mentes mais influenciadas
pela mitologia, ainda não voltámos a ela. Ela continua a ser um mito, o sítio
do desenvolvimento que ambicionamos, mas demoramos a alcançar. A distância
entre nós e a Europa poderá crescer perante as suas contradições e
tergiversações a que assistimos. Numa época em que a Europa – e nós nela e com
ela – se encontra em profunda crise, recomendo vivamente esta reflexão de José
Eduardo Franco, que nos permite assentar no passado as nossas reflexões sobre o
futuro. O futuro é obviamente uma incógnita. Apesar de o Padre António Vieira
ter escrito uma “História do Futuro,” a Segunda Lei da Termodinâmica impõe a
diferença entre passado e futuro, impedindo que exista ou venha algum dia a
existir uma história do futuro. Mas haverá com toda a certeza futuro e não há
futuro sem história. O conhecimento e a compreensão da história ajudam-nos a erguer
o futuro.
Terá a Europa futuro? Por
mim falo: acredito na Europa, até pela simples razão de não ver alternativa.
Sei que hoje em dia o motor do crescimento económico vem do Extremo Oriente,
onde um dia desembarcámos, e já não tanto, como no século passado, do Novo
Continente. Mas olho para o mundo à minha volta e concluo que a única
alternativa à Europa é a própria Europa, onde estamos e sempre estivemos. Oxalá
ela - e nós nela e com ela - consciente da sua longa e rica história se saiba reconstruir,
reciclar. Vários tipos de reconstrução ou reciclagem já ocorreram no passado no
nosso continente. As minhas palavras finais são de Eduardo Lourenço pois eu não saberia dizer
melhor:
“De qualquer modo podemos sempre reciclar-nos, porque este é continente de
Platão, de São Tomaz de Aquino, das catedrais e de Galileu.”
Carlos Fiolhais
Professor de Física da Universidade de Coimbra