quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

IPSISSIMA VERBA

O meu bom Amigo Eugénio Lisboa, académico e crítico literário, a meu pedido, enviou-me este seu delicioso texto, publicado originalmente no último número de "Ler". Confesse o leitor, como eu me confesso, que, de uma maneira geral, todos nós nos vemos retratados neste texto. A propósito, não podia deixar de chamar a atenção do leitor para esta lacónica e corrosiva resposta de Torga, a um antigo colega da Universidade de Coimbra, a respeito de sua mulher: "Estime-a"!

Transcrevo o texto enviado:

"Os homens (e as mulheres) sempre gostaram de falar de si e das suas façanhas. A confissão, dizia não sei quem, é uma tentação irresistível. Vem isto, repito, de muito longe. Júlio César, por exemplo, não deixou por mãos alheias o relato das suas campanhas na Gália: escreveu o seu próprio panegírico no famoso De Bello Gallico, para tormento dos alunos de latim dos liceus do meu tempo.

Rousseau deliciou-se a falar de si e das suas misérias, nas sumarentas Confissões que nos legou. O mesmo fez Santo Agostinho e tantos outros depois dele. Magníficos diários não faltam, por exemplo, na grande literatura francesa: Delacroix, os Goncourt, André Gide, Jules Renard, Julien Green, por exemplo. O Diário de Gide é suavemente indiscreto e o de Julien Green foi-o também, até ter saído, há muito pouco tempo, a sua versão integral, isto é, não expurgada, na qual podemos ver o escritor a deliciar-se na descrição minuciosamente indiscreta e muito crua das suas orgias sexuais: não resistiu à tentação de contar tudo…

Falarmos de nós próprios, com maior ou menor indiscrição, é, repito, uma enorme tentação. Oscar Wilde era muito dado a isso. Conta-se que, estando ele, uma vez, num restaurante, em Londres, lhe apareceu um jovem admirador, que queria conhecê-lo pessoalmente. Wilde aproveitou logo a ocasião para falar de si com abundância e fê-lo durante uma boa meia hora. Por fim, deteve-se e, voltando-se para o jovem, disse-lhe mais ou menos isto (cito de memória): “Basta. Estive muito tempo a falar de mim. Basta. Agora é a sua vez de falar de mim.” 

O autor de O Retrato de Dorian Gray estava longe de ser um caso isolado, no seu tempo e no seu país. Tinha um bom rival, em egotismo e em espírito acerado, no pintor James Whistler. Quando, em certa altura, a célebre revista Punch publicou um elogio ditirâmbico dirigido à actriz Sarah Bernardt, atribuindo a autoria do texto a Oscar Wilde, este reagiu, enviando um telegrama a Whistler, nestes termos: “O Punch é demasiado ridículo. Quando eu e tu estamos juntos, nunca falamos de nada a não ser de nós próprios.” Whistler não perdeu tempo a responder-lhe: “Não, não, Oscar, estás a esquecer-te. Quando tu e eu estamos juntos, nunca falamos de nada a não ser de mim.” Wilde encerrou a conversa com um terceiro telegrama: “É verdade, Jimmy, que nós estávamos a falar de ti, mas eu estava a pensar em mim.”

O pendor confessional é, às vezes, tão forte, que o autor faz entrega de si, às mãos cheias: Gide, para além de um extenso diário, ainda nos deixou uma substanciosa autobiografia intitulada Si le grain ne meurt. Julien Green também, além de um muito volumoso diário, igualmente nos deixou belíssimas páginas de memórias. E o nosso Miguel Torga somou aos dezasseis volumes do seu saboroso diário uma longa autobiografia disfarçada, em cinco volumes: A Criação do Mundo. Sem falar no que, de confissão, pôs na sua poesia. Como se vê, o autor de Bichos, embora discreto, era obstinado a falar de si e da sua circunstância. E estava tão seguro  de si e do seu estatuto, que se não deixava facilmente abater, como o demonstra a seguinte anedota verdadeira.

Estava o escritor a gozar as suas habituais férias, no Gerês, quando lhe apareceu um colega dos tempos da universidade, em Coimbra. O antigo companheiro de estudos fez-lhe uma grande festa: havia que tempos que não se viam e mais isto e mais aquilo, até que o inevitável aconteceu: tirando do bolso um manuscrito, explicou ao autor de Novos Contos da Montanha, que também ele tinha escrito uns Poemas Ibéricos. E, já agora, se o amigo os quisesse ler… Torga, sem uma palavra, meteu os papéis no bolso. E, poucos dias depois, devolveu-lhos, sem dizer uma palavra. O colega, afrontado, reagiu: que o Rocha era de força, que podia, ao menos, dizer se gostara ou não dos seus poemas e que até, por acaso, a sua mulher preferia os seus Poemas Ibéricos aos do Torga. Este respondeu-lhe curto e final: “Estime-a!”"

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...