segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

MEU PREFÁCIO A “A EUROPA AO ESPELHO DE PORTUGAL: IDEIA(S) DE EUROPA NA CULTURA PORTUGUESA” DE JOSÉ EDUARDO FRANCO



Meu prefácio ao livro de José Eduardo Franco que acaba de sair no Círculo de Leitores /Temas e Debates:

Sou europeu desde que nasci. Na escola aprendi com Luís de Camões que a terra onde tinha nascido era cume da cabeça/ De Europa toda”. Mais tarde com Fernando Pessoa fiquei a saber que a Europa “fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. /O rosto que fita é Portugal.” Já percorri quase toda a Europa, fui várias vezes à América, mas nunca fui a África, como foi Pessoa, nem à Índia, como foi Camões (Pessoa ficou a metade do caminho de Camões). Quando viajei na Europa pela primeira vez estranhei que as fronteiras de Portugal fossem das poucas que estavam fechadas (de noite, nem sequer abriam!). Portugal era um quarto fechado da Europa. Hoje, felizmente, as fronteiras estão abertas e posso, podemos todos, andar, sem mostrar o cartão de cidadão nem trocar de moeda, na maior parte dos países europeus. A ideia dos Estados Unidos da Europa, de que Vítor Hugo falou, em 1849, no Congresso Internacional da Paz e depois, em 1871, na Assembleia Nacional Francesa,  pode ser mítica, mas está em boa parte consubstanciada na actual União Europeia. Sim, eu sei, todos sabemos, que essa ideia está cheia de contradições, que o Brexit poderá ser uma cisão irreparável na União, que a liderança política europeia é hoje muito débil, que os velhos nacionalismos espreitam por todo o lado, que a democracia liberal sobre a qual tem assentado a nossa governação corre sérios riscos.

Seja como for a Europa é a minha casa, é  casa dos portugueses. Que Europa? A Europa – a Europa das antigas Atenas e Roma, onde nasceram a filosofia e o direito, que são traves-mestras do nosso pensamento e da nossa vida, a Europa da Idade Média cristã, onde surgiram as universidades que hoje nos continuam a formar e a alimentar o espírito, a Europa do Renascimento, onde o humanismo floresceu e a Revolução Científica despontou, a Europa do Iluminismo, onde a ciência triunfou como grande baluarte da razão, a Europa da Revolução Industrial, onde a ideia de progresso económico ganhou raízes para crescer, e, finalmente, a Europa da actual União Europeia, onde houve e há paz após duas guerras que devastaram o Velho Continente. Quero, como português, ter um futuro nela. O continente poderá ser velho, mas gostava que conseguisse ser novo.

Portugal pela posição geograficamente extrema na Europa nunca teve uma posição fácil no contexto europeu. Mas não há dúvida que nasceu europeu, em plena Idade Média, no seio da cristandade. É portuguesa e está em Coimbra uma das primeiras universidades que a cristandade soube constituir. Largando a Europa com coragem, os Portugueses souberam nos séculos XVI e XVI empreender a primeira globalização, ao descobrir “novas ilhas, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas” (a frase é de Pedro Nunes, no seu “Tratado em defensão da carta de marear com o regimento da altura”, apenso ao “Tratado da Esfera” de 1537). A Europa, quer dizer, a cultura europeia, foi levada pelos portugueses às sete partidas do mundo, pondo em contacto pessoas com muito diferentes. O jesuíta Luís Goes enumerou no seu “Tratado em que se contem muito susinta e abreviadamente algumas contradisões e diferenças de custumes antre a gente da Europa e esta província do Japão”, em 1585,  as diferenças, bem marcantes, entre os portugueses e os “japões”, não só antropológicas como nos usos e costumes :“Pola maior parte dois homens de Europa são altos de corpo e boa estatura; os Japões pola maior parte mais baixos de corpo e estatura que nós”. Depois houve, é certo, um prolongado período de recolhimento, para não dizer decadência. Fernando Pessoa escreveu,  no seu poema Opiário”, que pertencia "a um género de portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho". No século XVIII, houve é certo o Iluminismo em Portugal, Iluminismo católico como convinha, mas o Marquês de Pombal para que se visse bem a sua luz, esforçou-se por apagar a dos outros. Revolução Industrial é que não houve, pelo menos no tempo certo: foi importada tardiamente, com todos os custos que importa  a importação tardia. A geração de 70, com o clarividente Antero de Quental à cabeça, denunciou a distância que nos separava da Europa, isto é, da civilização (ecoam até hoje as suas palavras nas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”: “Que é, pois, necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta?” O nosso século XX foi, em grande parte, tempo perdido, tal como foi boa parte do nosso século XIX. O Estado Novo cultivou com insistência a ideia do “orgulhosamente sós,” traduzida na ideia de grandeza   em que se cobria o mapa da Europa com as “províncias” portuguesas, que iam do Minho a Timor. No dia 12 de Junho de 1985, com a assinatura de Mário Soares no claustro do Mosteiro dos Jerónimos, voltámos, em boa hora, a ser europeus. Foi a Europa que nos ajudou à modernização, eufemisticamente chamada “convergência,” por exemplo a erguer um sistema de ciência que tem permitido entre nós a formação e o conhecimento avançados (obrigado José Mariano Gago!). De facto, é nossa condição irrenunciável a de sermos europeus,  pois a Europa é a nossa matriz geográfica e cultural. Neste globo, que ajudámos a encurtar, a geografia sempre foi condicionante da cultura.

A Europa é, para nós, um facto. Mas a Europa, para além de facto, por vezes mais próximo e noutras vezes mais distante, sempre foi um mito. O historiador José Eduardo Franco, especialista dos mitos na cultura portuguesa (ele analisou com particular atenção os mitos referentes aos jesuítas, uma das primeiras instituições  globais para a qual Portugal serviu como “rampa de lançamento” no mundo) e estudioso da visão que temos da Europa  (ver os volumes “A Europa segundo Portugal”, “Repensar a Europa” e “Europa das Nacionalidades”, que coordenou) analisa neste livro, que percorre toda a história de Portugal, os mitos que fomos construindo a respeito do continente que integramos. Os vários textos, que têm individualidade própria e podem por isso ser proveitosamente lidos de forma autónoma, vão desde as nossas primeiras percepções da Europa, às concepções renascentistas, ao pensamento do Padre António  Vieira (ao autor devemos estar muito gratos pela publicação da “Obra Completa” de Vieira, talvez o maior dos mitómanos portugueses), às concepções iluministas do pombalismo, à ideia do socialismo utópico, com raízes na geração de 70, aqui representado por Sebastião Magalhães Lima, e o contraponto católico que aqui está representado pelo Padre José Joaquim Sena de Freitas, e finalmente as ideias contemporâneas desses dois grandes pensadores de Portugal que são o Padre Manuel Antunes e Eduardo Lourenço.

No fecho, dito em “aberto”, está a conclusão, que me permito antecipar aqui, esperando que ela abra o apetite para que os leitores saboreiem os argumentos que até lá conduzem:

Na Europa, nascemos como país, na Europa, buscámos a nossa legitimação, da Europa, saímos para sermos um povo entregue ao mundo, mas à Europa, viemos buscar sempre a confirmação e o reconhecimento da nossa mitificada grandeza. Foi então que nos sentimos na dianteira da Europa, imaginando-nos capazes de fazer um mundo novo, um Quinto Império, como idealizaram os nossos escritores maiores: Camões, Vieira e Pessoa. Contudo, esta visão auspiciosa de nós próprios viveu mais da imaginação do que da crua realidade da nossa condição de país-quase-sempre-em-crise. E fomos vivendo de sonho em sonho, de um Portugal com um papel relevante na história, sempre à procura de uma saída, de um ponto de fuga, para nos viabilizarmos como projeto de Estado autodeterminado. Em todo este percurso multissecular, a Europa, continente de que fazemos parte como se às vezes não fizéssemos, funcionou e manteve-se sempre no horizonte também mitificado, ora como espelho, ora como palco, e a maior parte das vezes como meta a atingir.”

Está aqui bem claro um dos problemas nacionais: saímos um dia da Europa e, nas mentes mais influenciadas pela mitologia, ainda não voltámos a ela. Ela continua a ser um mito, o sítio do desenvolvimento que ambicionamos, mas demoramos a alcançar. A distância entre nós e a Europa poderá crescer perante as suas contradições e tergiversações a que assistimos. Numa época em que a Europa – e nós nela e com ela – se encontra em profunda crise, recomendo vivamente esta reflexão de José Eduardo Franco, que nos permite assentar no passado as nossas reflexões sobre o futuro. O futuro é obviamente uma incógnita. Apesar de o Padre António Vieira ter escrito uma “História do Futuro,” a Segunda Lei da Termodinâmica impõe a diferença entre passado e futuro, impedindo que exista ou venha algum dia a existir uma história do futuro. Mas haverá com toda a certeza futuro e não há futuro sem história. O conhecimento e a compreensão da história ajudam-nos a erguer o futuro.

Terá a Europa futuro? Por mim falo: acredito na Europa, até pela simples razão de não ver alternativa. Sei que hoje em dia o motor do crescimento económico vem do Extremo Oriente, onde um dia desembarcámos, e já não tanto, como no século passado, do Novo Continente. Mas olho para o mundo à minha volta e concluo que a única alternativa à Europa é a própria Europa, onde estamos e sempre estivemos. Oxalá ela - e nós nela e com ela - consciente da sua longa e rica história se saiba reconstruir, reciclar. Vários tipos de reconstrução ou reciclagem já ocorreram no passado no nosso continente. As minhas palavras finais são de  Eduardo Lourenço pois eu não saberia dizer melhor:

“De qualquer modo podemos sempre reciclar-nos, porque este é continente de Platão, de São Tomaz de Aquino, das catedrais e de Galileu.”

Carlos Fiolhais

Professor de Física da Universidade de Coimbra



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