 Reproduzimos abaixo uma parte substancial da nota do editor da revista Ler, Francisco José Viegas, constante no seu último número, saído neste mês.
Reproduzimos abaixo uma parte substancial da nota do editor da revista Ler, Francisco José Viegas, constante no seu último número, saído neste mês. É uma nota de grande interesse sobre o "politicamente correcto" ou "censura beneficiente", que se vê consolidado nos sistemas educativos, incluindo as universidades, precisamente o contexto em que nunca deveria ter entrado a não ser como objecto de crítica.
O editor ilustra a sua denúncia com um recente exemplo de advertência sobre Kant e as suas obras, que de resto, já haviam sido objecto de atenção por parte de outros novos censores (ver aqui). É preciso proteger os alunos das ideias do filósofo, explicando-lhe que ele viveu há muito tempo, quando as pessoas eram muito desagradáveis umas para as outras!
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
"Será que as pessoas se sentem mais seguras quando não utilizamos certas palavras? Parece que sim: especialmente quando utilizamos as palavras corretas, quando não discutimos certos assuntos e quando se proíbe a evocação de determinados temas. É esse o princípio que preside à criação dos safe places (lugares seguros) em universidades americanas e britânicas. Trata-se de uma espécie de «bolha» imune a ideia contrárias, especialmente a ideias perigosas e, também criminalizadas.
A bolha dos safe places funciona como um filtro em que nãtram conversas desagradáveis, ideias com que não se concorda, pessoas que achamos detestáveis (...)
Nas universidades, a proibição afecta um grupo numeroso de frequentadores e, no seu conjunto, o espírito e o fundamento da própria universidade. Para quem estudou minimamente a história intelectual da Europa, um dos momentos mais altos foi, sempre, a peregrinação de polémicas de universidade em universidade, de cidade em cidade; escapando aos poderosos, às Igrejas e aos censores, intelectuais e vadios ilustres defendiam (contra a ameaça das fogueiras e da prisão) ideias perigosas, perseguidas, revolucionárias ou conservadoras, temidas, desejadas, enigmáticas ou - até - criminosas. O resultado é a Europa como nós a amamos; e não a Europa submetida a vários regimes de chumbo, como o fascismo, o comunismo ou o nazismo, ou amedrontada e vigiada pela Inquisição, pelas várias políticas do trono e do altar, ou pela sombra da infantilidade, como agora parece ser o caso (...)
Esta vigilância sobre as opiniões, as palavras e as ideias está a ameaçar a liberdade intelectual - mas também as instituições de ensino. Perseguindo à lupa atropelos racistas, xenófobos, homófobos, atentatórios de igualdade de género ou do veganismo, facilmente se passará (tal é a agressividade da sanha - à criminalização efectiva e à denúncia pública em massa, bem como a uma reconstrução do passado para eliminar todos os crimes, desvios, contracurvas e maldades que é normal o passado registar. Literatura, teoria da história, filosofia, pintura, escultura, artes em geral, «línguas mortas» (o latim e o grego como expressão de violência cultural), rituais - tudo deve ser revisto e, se possível, explicado em novilíngua" (página 2)
(...)
"Tornaram-se moda nos EUA (e também no reino Unido) os chamados safe places, uma espécie de «bolha» criada para não importunar as meninas e os meninos das universidades com ideias e linguagem que não apreciam: nestes espaços (...) as boas almas que o sistema educativo está a preparar em laboratório não serão atingidas por linguagem racista, transfóbica, homofóbica, colonialista, machista ou considerada inimiga da igualdade de género - nem por violência, assédio, discussões, ideias que não partilham, pessoas de que não gostam especialmente e, enfim, os outros, o inferno. Isto estaria bem se não fosse um modo de, por extensão, as próprias universidades tenderem a transformar-se em safe places de onde são excluídos todos os que a bolha considera estranhos aos seus ideais de bondade, sentido da História e moralidade.
Em Edimburgo, por exemplo, a associação de estudantes declarou todo o espaço da universidade um safe place, proibindo inclusive aplausos durante os debates e sessões ou discursos - uma vez que os aplausos podem ser considerados ofensivos para os surdos ou pessoas com outro género de distúrbios físicos ou emocionais, além de serem humilhantes para quem não é aplaudido.Quem não é aplaudido é o Sr. Immanuel Kant, que teve a infelicidade de ter vivido entre os anos 1724 e 1804, o que o inabilita para compreender ideias básicas sobre tolerância, respeito pela identidade dos seus semelhantes ou até veganismo e talvez podolatria.
Um amigo mostrou-me o frontispício de uma edição americana das obras de Kant (que inclui a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática a Crítica da Faculdade do Juízo) onde se lê este benevolente aviso:
que este livro, note-se, é «um produto do seu tempo» e não refletiria os mesmos valores se fosse escrito hoje; além disso, os pais também devem esclarecer os seus filhos sobre as opiniões do filósofo sobre «raça, género, sexualidade, etnicidade e relações interpessoais» (...)" (página 12)
 
 
 
1 comentário:
Depois destas informações, para mim espantosas, vou pensar que talvez as crianças e os jovens estejam mesmo em risco de se viciarem nas leituras de Kant, caso comecem a lê-lo, o que não me parece ser o caso, ou seja, não me parece que haja crianças e jovens a lê-lo e, quanto aos adultos, também não. E, se o lessem, duvido que isso fosse contagioso ao ponto de toda a gente o querer fazer.
Enviar um comentário