Meu artigo recente no JL:
No passado dia 31
de Maio, véspera do Dia da Criança (que, por recomendação das Nações Unidas,
assinala em muitos países os direitos das crianças), decorreu na sede da
Fundação Bissaya Barreto em Coimbra a apresentação do segundo tomo do livro «O
que se passa na infância não fica na infância», publicado pela Editora
d’Ideias de Coimbra, coordenado por João Pedro Gaspar, doutorado em Psicologia
da Educação e responsável pela PAJE – Plataforma de Apoio a Jovens (Ex)
acolhidos (instituição que recebe todas as receitas do livro) e por Paulo
Guerra, juiz desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra e especialista em Direito de Família e das Crianças.
O livro, com um curto, mas eloquente prefácio de Manuela Ramalho Eanes (que, como primeira-dama, ajudou a criar o Instituto de Apoio à Criança) é um conjunto de depoimentos de 51 pessoas sobre experiências, positivas ou negativas, que os marcaram na infância. É mesmo verdade o que diz o título, corroborado por uma outra citação a abrir, esta do filme Magnólia, do realizador norte-americano Paul Thomas Anderson: «Podemos esquecer o passado, mas o passado nunca se esquece de nós». O presente tomo segue-se a um primeiro, com capa semelhante, a mesma coordenação e a mesma estrutura, que saiu em Maio do ano passado na mesma editora e que foi apresentado em vários sítios do país, a última das quais em 3 de Abril último no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa, com a presença de um bem conhecido futebolista que viveu numa instituição de acolhimento – o Eder, marcador do golo à França na final do Europeu de 2016.
No volume agora saído alinham-se os textos dos vários autores,
sempre com uma fotografia de infância (o neuropediatra Luís Mello Borges, o
mais velho de todos nos seus bem conservados 88 anos, apresenta-se aí tal como
veio ao mundo) e uma breve apresentação de cada um. A maior parte dos escribas,
embora nem todos, têm alguma relação com questões da infância. Por exemplo,
estão ligados pessoal ou profissionalmente à protecção e ao desenvolvimento
infantil. Encontram-se aí, por ordem alfabética dos primeiros nomes dos autores,
os depoimentos de Adalberto Campos Fernandes (médico e ex-ministro da Saúde), Alma
Rivera (jurista e deputada), Daniel Oliveira (jornalista e comentador
político), Dulce Pontes (cançonetista), Eduardo Sá (psicólogo clínico), Isabel
Moreira (jurista e deputada), Lucília Gago (ex-Procuradora-Geral da República),
Manuela Grazina (bioquímica e divulgadora de ciência), Mónica Quintela (advogada
e deputada), Nini Andrade Silva (decoradora de interiores) e Teresa Ricou (a palhaço
do Chapitô). Os outros que me perdoem a omissão dos nomes, mas são muitos.
Os coordenadores
quiseram incluir-me neste rol, para além de me terem convidado para ser um dos apresentadores
do livro em Coimbra, na companhia de Madalena Alarcão, doutorada em Psicologia
Clínica e professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da
Universidade de Coimbra. Isso obrigou-me a lançar um olhar retrospectivo sobre
um acontecimento de infância que me tenha particularmente marcado. Não tendo
sido fácil, achei que o evento mais marcante da minha infância terá sido a
entrada na escola primária, aos seis anos, saindo da esfera da exclusiva protecção
familiar para a esfera da protecção partilhada com os professores. Este é,
suponho, um momento importante na vida de qualquer pessoa. Se os pais nos dão os
genes e a primeira educação, são os professores que, complementando-a, nos
transmitem o essencial do património da humanidade. Costumo dizer que nos proporcionam
«o melhor da humanidade para que a humanidade possa ser melhor». Intitulei o
meu texto «Transições de Fases», indo buscar à minha ciência, a física, uma metáfora
para as transformações que experimentamos na vida: em bebé os nossos movimentos
são limitados como acontece com as moléculas na fase sólida da água (o gelo),
na infância e juventude passam a estar mais soltas, ainda que tenham numerosas
interacções, como as moléculas da água líquida, e em adultos passamos a
mover-nos com maior liberdade, como as moléculas do vapor de água. Desse meu texto
respigo aqui um excerto, com o intuito de chamar a atenção para um livro que
constitui um retrato multifacetado de um Portugal já antigo que para além da
cidade e dos campos, se estendia pela emigração e pelas colónias africanas, um
Portugal onde existiam as reguadas que nunca mais se esquecem.
«Os físicos chamam
«transição de fase» às mudanças de propriedades de um sistema, graças ao
rearranjo da estrutura, quando muda a temperatura (ou a pressão). Por exemplo,
a água passa da fase sólida para a líquida a zero graus Celsius à pressão
normal e da fase líquida para a gasosa a cem graus. No primeiro caso, o gelo
funde e, no segundo, a água ferve. Uso a metáfora das transições de fase – há
quem lhes chame mudanças de estado – para, na minha descrição biográfica, designar
a entrada na escola primária, aos seis anos, e a saída da escolaridade aos 26,
com a conclusão do doutoramento em Física Teórica na Alemanha. Foram, no total,
vinte anos de escola, quase um terço da minha vida até agora. Concentro-me,
neste apontamento, no primeiro dos referidos momentos, talvez o mais decisivo na
minha infância.
(…) A memória, quando existe, é uma grande enganadora.
E eu nunca tive tendência para a exercitar, olhando muito para o retrovisor da vida.
Mas um acontecimento da infância que me ficou marcado na mente foi a entrada na
Escola Primária da Voz do Operário, que fica na Ajuda (não confundir com a
escola homónima, que fica na Graça). O meu pai levou-me pela mão, confiando-me
a uma senhora professora, já com uma certa idade. Naturalmente que chorei baba
e ranho, porque o meu progenitor me estava a deixar num lugar que me era
estranho, entregue a pessoas que eu não conhecia. Mas, se de início estranhei,
depois entranhei. (…) Cada dia em que voltava a casa tinha o cérebro mais
crescido. Tal como as moléculas de água, quando a temperatura aumenta, eu estava
cada vez mais desenvolto, quer dizer, mais livre.»
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