Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião
O texto que transcrevemos será de uma professora brasileira do, entre nós, designado primeiro ciclo, que acaba de se reformar. Mas poderia ser de uma professora – ou de um professor – português de qualquer nível de ensino, incluindo o superior; poderia ser de outro país... O desligamento de que fala pouco tem a ver com lugares, com contextos e com esta ou aquela profissão; tem muito a ver com a "cultura" de desligamento da realidade, de insensibilidade face ao outro, de brutalização do mundo, que se nos impõe e para a qual, de uma maneira ou de outra, contribuímos.
“Hoje, um menino de 7 anos me disse que eu não servia para nada.” Assim começou meu último dia como professora primária em uma escola pública. Sem ironia. Sem raiva. Apenas uma voz indiferente, como se estivesse comentando sobre o tempo.
– Você não sabe fazer TikToks. Minha mãe diz que pessoas velhas como você já deveriam se aposentar.
Eu sorri. Aprendi a não levar para o lado pessoal. Mas mesmo assim... algo dentro de mim quebrou um pouco mais.
Meu nome é professora Helena. Ensinei o 1.º ano em uma cidadezinha nos arredores de Belo Horizonte por 36 anos. Hoje, arrumei minha sala pela última vez. Quando comecei, no fim dos anos 80, ensinar era um chamado. Um laço sagrado. As pessoas confiavam em nós. Até nos admiravam. Não ganhávamos muito, mas havia respeito. E isso valia mais do que qualquer salário. Os pais levavam bolo de fubá nas reuniões. As crianças faziam cartões de aniversário cheios de erros de português e corações tortos. E quando alguém lia sua primeira frase em voz alta... Era uma alegria que nenhum dinheiro podia pagar.
Mas alguma coisa mudou. Devagar. Silenciosamente. Ano após ano. Até que um dia, olhei para minha sala e não reconheci mais o trabalho que tanto amei. Não é só por causa de tablets e lousas digitais – embora também seja. É o cansaço. A falta de respeito. A solidão.
Antes, eu passava as tardes recortando maçãs de papel para enfeitar as paredes. Agora, passo preenchendo relatórios em um aplicativo de comportamento, caso algum pai resolva me processar.
Já gritaram comigo na frente de toda a turma. Não alunos – pais. Um deles me disse:
– A senhora não sabe lidar com criança. Vi um vídeo no celular do meu filho.
Ele tinha me filmado enquanto eu tentava acalmar outro aluno em crise. Ninguém perguntou como eu estava. Ninguém quis saber que eu estava funcionando à base de chiclete, café e pura força de vontade.
As crianças também mudaram. E a culpa não é delas. Vivem num mundo acelerado, barulhento, desconectado. Chegam à escola sem dormir, viciadas em telas e emocionalmente despreparadas. Algumas vêm com raiva. Outros, com medo. Muitos não sabem segurar um lápis, esperar a vez ou dizer “por favor”. E esperam que a gente dê conta de tudo. Seis horas por dia. Sem assistentes. Com 28 alunos. E um orçamento que não dá nem pra bolo de aniversário.
Lembro de quando minha sala era um abrigo. Tínhamos um cantinho da leitura com almofadas coloridas. Cantávamos toda manhã. Aprendíamos a ser gentis antes de aprender a somar. E agora?
Agora me pedem para focar em “metas de aprendizagem”, “métricas”, “resultados mensuráveis”. Meu valor se mede pela forma como uma criança de 6 anos preenche bolinhas em uma prova padronizada de março.
Uma vez, um supervisor me disse:
– Você é muito “afetiva”. Nosso município quer resultados.
Como se conectar com crianças fosse um defeito. Mas eu continuei. Porque sempre existiram momentos. Pequenos. Sagrados. Uma criança que cochichou pra mim:
– Você parece minha vó. Queria morar com você.
Outra que deixou um bilhete na minha mesa:
– Aqui me sinto seguro.
Ou aquele menino tímido que finalmente me olhou nos olhos e disse:
– Li sozinho.
Agarrei esses momentos como se fossem boias salva-vidas. Porque eles me lembravam que, mesmo quando o mundo gritava o contrário, eu ainda estava fazendo algo que importava. Mas este último ano... me quebrou. A violência aumentou. Um aluno jogou uma cadeira pela sala. Outro me ameaçou:
– Vou levar uma coisa de casa amanhã.
E tudo porque pedi para ele sentar.
O telefone da escola virou linha direta de emergência. A coordenadora pediu demissão em outubro. Em novembro, não havia mais professores substitutos. A exaustão virou uma névoa densa e constante. E eu? Comecei a me sentir invisível. Substituível. Como uma máquina velha em um mundo digital que já não acredita no toque humano.
Arrumei minha sala hoje. Arranquei desenhos desbotados das paredes – alguns de décadas atrás. Encontrei uma caixa de cartinhas de uma turma de 1995. Uma delas dizia:
– Obrigado por gostar de mim mesmo quando fui bagunceiro.
Chorei ao ler. Porque, naquela época, ser professora significava alguma coisa. Hoje, parece uma profissão pela qual a gente precisa pedir desculpa. Não houve festa. Nem discurso. Só um aperto de mão do novo diretor, que me chamou de “senhora” e checou o celular no meio da despedida.
Esqueci minha caixa de adesivos. Minha cadeira de balanço. Minha paciência. Mas levei comigo a lembrança de cada criança que um dia me olhou com encanto, com confiança ou com alívio. Isso é meu. Ninguém pode me tirar.
Não sei o que vem agora. Talvez eu seja voluntária na biblioteca da cidade. Talvez eu aprenda a fazer pão caseiro. Ou talvez eu apenas me sente na varanda com um chá quente, lembrando de um tempo que era mais gentil. Porque sinto falta.
Sinto falta de quando ser professora era ser aliada, não alvo. Quando escola e família caminhavam juntas. Quando educar era cultivar, não apenas medir desempenho. Se você já foi professor ou professora, você entende.
(...) Fizemos [isso] pelo menino que aprendeu a amarrar os cadarços. Pela menina que finalmente sorriu depois de semanas em silêncio. Pelos que precisavam de nós de um jeito que nenhuma prova consegue mensurar. Fizemos por amor. Por esperança. Por acreditar que ainda dava para mudar o mundo.
Então, se um dia você encontrar uma professora – de ontem ou de hoje – agradeça (...). Com sua voz. Seus olhos. Seu respeito. Porque num mundo que corre depressa demais, elas ficaram. Num sistema que desmoronou, elas resistiram. E numa sociedade que as esqueceu, elas se lembraram de cada criança. Que as professoras do passado saibam que não estão esquecidas. Que as de hoje saibam que não estão sozinhas.
1 comentário:
Desculpe lá, mas também há muitos professores e professoras que não merecem agradecimento nenhum se os encontrar na rua. Não são todos 'santos', pelo contrário, há cada um... Se devo muito ou mesmo imenso ao Prof. Salgado Júnior, ao Prof. Baltasar Valente, ao Prof. Armando de Morais, à Drª Fernanda Estrada ou à Drªa Raquel Valença, tive dezenas de energúmenos 'vendedores de aulas' sem ética, sem competência, sem vergonha; se os encontrasse, só tinha a agradecer-lhes a minha ignorância em tudo o que me deviam ter ensinado. Vamos lá a deixar de poetizar a missão docente, que a maioria, provavelmente, são funcionários sem alma.
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