quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Ciência, Liberdade e Democracia

 


Meu contributo para a revista Ipsis Verbis, nº7, Abril, 2025, em Oliveira do Hospital, sobre o tema da Liberdade:

Os conceitos de liberdade e democracia estão intimamente associados: as liberdades, tanto individuais como colectivas, são necessárias para que haja «governo do povo».  Que a ciência se dá bem com a liberdade e a democracia e mal com a falta delas é a tese do livro do ensaísta norte-americano Timothy Ferris no seu livro Science of Liberty: Democracy, Reason, and the Laws of Nature, publicado originalmente pela editora Harper em 2019 e que saiu em tradução portuguesa em 2013 com o título Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza, publicado originalmente em 2010 com o n.º 200 na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, uma editora fundada em 1981, quando a liberdade e a democracia já eram realidades entre nós. A obra foi escolhida por Guilherme Valente, fundador e da editora, para não só assinalar a publicação das duas centenas de volumes, mas também para encerrar com chave de ouro o seu ciclo de director dessa colecção, passando o testemunho ao autor destas linhas, por reflectir a sua ideia de ciência como trave-mestra da cultura e ingrediente indispensável ao desenvolvimento. Ferris afirma que «revolução democrática» no mundo [iniciada pela Revolução Gloriosa em Inglaterra, que instalou a monarquia constitucional em 1688, continuada pela Revolução Americana de 1776, que deu início a um novo país,  e pela Revolução Francesa de 1789, que consagrou os valores da «liberdade, igualdade e fraternidade»] foi desencadeada - provocada talvez não seja uma palavra demasiado forte – pela Revolução Científica [período de criação da ciência moderna nos séculos XVI e XVII]  e que a ciência continua, ainda hoje, a alimentar a liberdade política». E, mais à frente, diz que «liberdade significa respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades individuais. Na prática, os governos que conseguiram isso eram quase todos democracias liberais, de modo que a ascensão da liberdade pode ser aproximadamente equiparada a ascensão da democracia liberal. Este processo começou lentamente, mas acelerou muito nos últimos cem anos.» Segundo ele, explicitando esta afirmação, as primeiras democracias surgiram nos “Estados em que a ciência e a tecnologia estavam mais avançadas – Inglaterra, Estados Unidos e Países Baixos e (mais irregularmente) França, Itália e Alemanha. O autor alicerça a sua tese de que a ciência apenas floresce ou pelo menos floresce melhor em ambientes democrático-liberais em cinco argumentos principais: 

1) A ciência é “inerentemente antiautoritária tal como a democracia. Ao contrário do que por vezes se julga, em ciência não existem autoridades, mas sim especialistas, pois apenas à realidade se reconhece autoridade para escolher entre hipóteses rivais. As coisas não são como são por alguém o diz, mas sim porque existe uma realidade que o método científico, baseado na observação, experimentação e raciocínio lógico, permite desvendar.  Por exemplo, Galileu substituiu as ideias de Aristóteles sobre a queda dos corpos, simplesmente porque as novas ideias estavam mais de acordo com a experiência (isso não implica que Aristóteles estivesse completamente errado, mas apenas que a sua teoria contemplava apenas um certo aspecto da realidade, ao passo que a teoria galilaica era bastante mais abrangente. 

2) A ciência e a democracia autocorrigem-se. Segundo o filósofo de origem austríaca, mas fixado na Inglaterra Karl Popper, um dos maiores epistemólogos do século XX, também a democracia contém em si a possibilidade de emendar erros, embora os erros na política sejam obviamente diferentes dos erros na ciência. Ferris chama a atenção para o facto de as democracias liberais não se autocorrigirem suficientemente. Os erros em ciência são mais facilmente reconhecíveis do que outro tipo de erros. O método científico foi concebido propositadamente para evitar ao máximo os erros.  Se uma hipótese não estiver de acordo coma realidade, ela, não demorará, em geral, a ser descartada.   

3) A ciência, para se desenvolver, tem «de se valer de todos recursos intelectuais à sua disposição», o que significa que beneficia do facto de que, em democracia, todos, pelo menos em princípio, têm acesso aos benefícios da educação, dada o ideal de igualdade. A capacidade intelectual está muito bem distribuída na espécie humana: seria um desperdício se não pudesse ser aproveitada a de alguém que seja discriminado na sociedade. Ciência e democracia são, também por isso, naturais aliadas. Abundam os exemplos de pessoas das camadas mais baixas da sociedade que deram contributos extraordinários à ciência, uma vez que lhes foi proporcionada uma educação básica:  um deles foi o inglês Michael Faraday, que no século XIX inventou o dínamo, que está na base da actual distribuição da electricidade. 

4) A ciência é poderosa e a democracia permite que esse poder seja partilhado pelo maior número possível de cidadãos. Já o inglês Francis Bacon, contemporâneo de Galileu e um dos primeiros filósofos da ciência, dizia que “knowledge is power”. Bacon, no seu livro A Nova Atlântida, teve a visão de uma sociedade baseada no conhecimento, que é a actual. De facto, é o conhecimento que na época contemporânea tem feito avançar as economias dos países, permitindo um melhor nível de vida aos cidadãos. Ferris nota que «historicamente, oi crescimento económico avançou rapidamente nos países onde a ciência floresceu. Enquanto nos países menos ciente+iuficos se tecnológicos os relógios locais avançaram mais lentamente.»

 5) Por último, a ciência é uma actividade social, isto é, não depende de um só indivíduo ou de poucos indivíduos, exigindo o diálogo constante entre os membros da comunidade científica para que as conclusões da ciência sejam validadas. Uma pessoa pode enganar-se. Mas o engano de muitas pessoas é muito menos provável. Esse diálogo apenas é possível quando não são erguidas barreiras que impeçam a comunicação entre os indivíduos. Assim, a limitação das liberdades representa uma ameaça ao progresso da ciência. Também a democracia é um regime baseado na comunicação entre os indivíduos, sendo tanto melhor quanto melhor for essa comunicação. Por outro lado, também não podem ser erguidas barreiras entre ciência e sociedade, entre os criadores de ciência e os seus beneficiários, sendo desejável que todos possam desfrutar de uma forma o mais equitativa possível dos benefícios do processo científico. A ciência não é dos cientistas, mas sim de todos.

    Uma análise da história permite confirmar esse paralelismo entre ciência e democracia. Na Revolução Gloriosa, os revoltosos Whig eram defensores das ciências e da inovação, ou pelo menos eram mais do que os seus opositores, com visões tradicionalistas. Os pais da Revolução Americana como Thomas Paine, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson eram fervorosos adeptos a ciência, sendo nalguns casos mesmo cientistas amadores. São bem conhecidas as experiências feitas em tempo de trovoada com um papagaio por Franklin, que resultaram no para-raios.  Menos conhecido é o facto de Thomas Jefferson, que haveria de ser o terceiro presidente norte-americano, no dia da independência do seu país, a 4 de julho de 1776, não se ter esquecido de fazer as suas regulares observações meteorológicas, que para ele eram essenciais para uma boa agricultura nas propriedades que detinha. Disse um dia: «A ciência é a minha paixão, mas a política o meu dever». Em contraste, a Revolução Francesa não se revelou, de início, tão amiga da ciência, designadamente por uma das vítimas da guilhotina ter sido um dos grandes cientistas do seculo XVIII, o francês Antoine-Laurent Lavoisier, a quem se deve a química moderna. Note-.se, contudo, que ele não foi executado, após julgamento sumário, por ser cientista, mas sim por ser adepto do Ancien Régime, onde teve lugares de relevância, como o de pertencer à administração da Ferme Générale, a instituição que cobrava os impostos. Mas a Revolução Francesa foi inequivocamente resultado das ideias de filósofos iluministas que eram adeptas da ciência como Voltaire e Diderot, o primeiro receptor das ideias de Newton em França e o segundo coautor da famosa Enciclopédia.

No Século das Luzes assistiu-se ao triunfo da razão, que tinha ascendido coma Revolução Científica nos dois séculos anteriores. Não faltou quem pensasse que a fonte de onde brotava a ciência deveria também inspirar a organização da sociedade humana. Essa talvez seja uma ideia algo ingénua, mas o certo é que filósofos políticos ingleses como Thomas Hobbes e John Locke, beberam muitas das suas ideias dos escritos científicos. John Locke não só leu os escritos de Newton como foi amigo dele. Pode até dizer-se que a organização do Estado que ele idealizou foi buscar algumas ideias aos princípios newtonianas de organização do mundo físico.

A ciência, por se basear no diálogo de uma comunidade precisa de liberdade como de pão para a boca. Sem a possibilidade de livre expressão do pensamento e de livre circulação de ideias, que, por sua vez, exige livre circulação de pessoas e bens, a ciência não pode florescer. Este condicionalismo começou logo a tornar-se evidente na época da Revolução Científica, quando, em 1633, o italiano Galileu Galilei foi réu no Tribunal do Santo Ofício por afirmar, contra a autoridade da palavra bíblica, que é a Terra a mover-se e não o Sol. Verdadeira ou não (provavelmente não é), a expressão «e por si move!» que ele terá dito depois de ouvir a sentença significa simplesmente que as concepções científicas não podem ser reprimidas. De uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, acabam por se impor.

A democracia verificou, à medida que se espalhava e consolidava, que a ciência lhe servia e, do mesmo modo, a ciência verificou que a democracia lhe servia: as duas tornaram-se inseparáveis. A democracia procura assegurar o desenvolvimento aos cidadãos, mas só o pode fazer com base na ciência. Por sua vez, a ciência necessita de prosperidade, embora só gaste uma parcela muito pequena da riqueza que a sociedade cria.

            Ferris é taxativo: “de um modo geral, a ciência prosperou em sociedades livres e deu-se mal com governos despóticos.” Os exemplos da chamada «ciência alemã» nos tempos de Hitler (que, na medicina, conduziu a horríveis experiências com seres humanos em campos de concentração) e da «ciência soviética» na era de Estaline (que contrariava a biologia darwinista, tida como capitalista, por falar de competição por recursos ambientais) devem chegar para validar a tese da aversão entre a ciência e os regimes totalitários. Ainda hoje, observamos o maior progresso científico e tecnológico, com consequências extraordinárias no desenvolvimento económico e social, nos países onde a liberdade e a democracia estão mais enraizadas, enquanto vemos o menor progresso nos países onde existe défice democrático. Claro que esta tendência geral nem sempre é clara. Que dizer, por exemplo, do extraordinário progresso recente da ciência num país como a China onde existem manifesta restrições à liberdade? A China já é o país com mais publicações no globo, sendo também já o primeiro em publicações mais citadas (embora haja alguma desigualdade no desenvolvimento de áreas científicas). Trata-se de um case study a seguir. 

Como estamos, em Portugal, quanto à relação entre ciência, democracia e liberdade? 

De facto, a ciência, pese embora alguns exemplos limitados no espaço e no tempo, só ganhou quantidade e qualidade no nosso país após a Revolução de 25 de Abril de 1974, quando as liberdades foram afirmadas e se começaram a preparar as bases do sistema democrático que hoje vigora. O regime de António de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano não era muito «amigo» da ciência, como mostra o reduzido investimento, o desprezo pela ciência fundamental e até a perseguição alguns cientistas, que não partilhavam as ideias do governo. Salazar disse um dia que preferia que Portugal fosse um país agrícola do que industrial, a «horta e o pomar da Europa», embora reconhecesse que a indústria trazia maior desenvolvimento do que a agricultura. Em consonância, só em 1963, muito depois de outros países europeus, o produto industrial ultrapassou o agrícola em Portugal. E o seu ministro Franco Nogueira defendeu que a ciência era para os países ricos, o que faz lembrar a frase do filósofo espanhol Miguel de Unamuno: «Que inventen ellos!». De 1974 para cá, graças em especial à integração de Portugal na União Europeia em 1986 (na altura chamava-se Comunidade Económica Europeia), a ciência cresceu entre nós de um modo sem precedentes, não só reforçando a investigação em disciplinas mais tradicionais, como as ciências exatas e naturais, mas também inaugurando a prática de disciplinas menos implantadas ou mesmo inexistentes, como algumas ciências sociais e humanas (a sociologia, por exemplo). Existem hoje cerca de 60 000 investigadores, mais do que o número de cientistas que jamais houve. Obtém-se um número parecido com o da média europeia, se o dividirmos pela população. Contudo, o investimento em ciência e tecnologia ainda fica aquém da média europeia: 1,7 por cento do PIB em contraste com os 2,3 por cento na Europa, que deseja chegar aos 3 por cento em 2030.

 Há ainda mais relações entre ciência e democracia. Modernamente, as ciências sociais e humanas, que muitas vezes se alimentam dos métodos das ciências exactas e naturais, são consideradas um meio auxiliar precioso para o funcionamento da democracia. Elas permitem, por exemplo, procurar respostas a questões sobre a organização da sociedade, em domínios como a economia, a justiça, a educação, etc.  A democracia é uma procura constante. E o mesmo acontece com a ciência. As duas anseiam por mais e melhor.~

Carlos Fiolhais

Professor emérito de Física da Universidade de Coimbra

 

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