sábado, 4 de setembro de 2021

Júlio Dinis e a Química

 

[Não tive ainda tempo de ir à Feira do Livro do Porto onde se pode visitar a agora designada “extensão do Romantismo” do museu da cidade que tem originado muito polémica pela intervenção radical no Museu do Romantismo e que tem como objeto central um herbário de Júlio Dinis. Devo realçar que o Romantismo não é avesso à novidade e à ciência, mas rejeita as intervenções (alguns dizem destruições) sem alma ou impostas. Vamos ver.]

Júlio Dinis (1839-1871) é o escritor portuense evocado na feira do livro, realizada em 2021 nesta cidade. Como é bem sabido, Júlio Dinis é o pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, formado em medicina, professor depois na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que nunca exerceu medicina, devido em parte à tuberculose de que sofria. A sua tese versava a meteorologia e a medicina, mas ficou muito mais conhecido, pelos seus livros, supostamente, ligeiros. São considerados assim por a generalidade das suas personagens serem boas, podendo, no entanto, em muitos casos sofrer de vícios e manias. Diz quem sabe, e pode constatar quem lê, que são mais complexos do que parecem. Neste pequeno artigo vou referir a química em Júlio Dinis. Curiosamente, não encontrei muita, mas é bem conhecida a saga do arsénio nas "Pupilas do Senhor Reitor" que vai ter um grande efeito cómico (Júlio Dinis é aliás um mestre a explorar estas situações cómicas e teatrais, com um sorriso otimista). Este elemento químico, era usado numa preparação para aumentar o apetite, e a mulher de João da Esquina incentiva vezes sem conta o marido a tomá-lo. Ele responde, paciente mas sombrio, “Toma-o tu, se gostas”).

Há uma preleção sobre os metais e o galvanismo e outra contra o açúcar e a sua indústria numa “Família Inglesa” e não detetei mais neste livro. Em “Serões da Província” também não. Nota-se, no entanto, que Júlio Dinis gostava de plantas e Botânica. Em “Fidalgos da Casa Mourisca”, obra publicada postumamente, também não. Há alguma química, mas é pouco explícita. A química e as suas realizações e explicações estão, no entanto, presentes indiretamente. Nas roupas que as personagens vestiam, nos pratos onde comiam e nos seus sentimentos, por exemplo. Também na falta das suas realizações. Por exemplo, no tratamento da doença de que morreu Júlio Dinis, a tuberculose. A molécula estreptomicina só irá ser descoberta em meados do século seguinte, por exemplo. Tomavam-se bons ares, servia-se boa comida, descansava-se e esperava-se que a natureza fosse simpática. Muitas vezes não era. A mãe e vários irmãos de Júlio Dinis morreram com esta doença. Ia dizer que não aparece a palavra “química”, mas não é verdade (lá iremos). Aparece pouco a palavra e as personagens são todas bem intencionadas e boas. Os livros de Júlio Dinis são, nesse aspeto, um paraíso onde não há química e todos são boas pessoas. Dizem os críticos que ele está em trânsito entre o Romantismo e o Realismo. Talvez. Eu vejo-o como um romântico otimista.

Na “Morgadinha dos Canaviais”, afinal, aparece a palavra “química” (ou as suas variações). Três vezes! Primeiro na descrição de um leite muito puro e inteiro que toma Henrique. Ah! “pela primeira vez na sua vida disse ele ter bebido o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a análise dos químicos, de que os fisiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das Geórgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os compreendeu ele, que bem diferente de aquilo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a que estava habituado na cidade.” Nesta altura, o leite na cidade seria muitas vezes falsificado, mas o que transparece é uma visão romântica que hoje voltou a estar muito presente. Infelizmente, o leite inteiro não analisado poderia ser uma fonte de bactérias – Um familiar afastado morreu novo de carbúnculo ao beber leite diretamente – Isso leva-nos à terceira vez em que é referida a química: os enterramentos nas igrejas que originava maus ares onde estavam “pequenos insetos”. A falta de higiene poderia ser tão perigosa nos enterramentos como no leite. Finalmente, a química é tratada como uma figura de estilo na descrição de uma personagem, de que hoje já se perde bastante o sentido: “era um verdadeiro espírito, na aceção química do termo”. Diria que Júlio Dinis quis dizer que tinha uma personalidade bem definida e única.

Júlio Dinis não é só do Porto, claro. Há um museu muito bom em Ovar, na casa onde passava férias e de onde era natural seu pai. E os seus livros podem ser lidos onde quer que estejamos. Há edições gratuitas na Internet. Leia-se. Só custa tempo!

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