quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Portugal é de todos os portugueses

Artigo de opinião de Guilherme Valente no Público de hoje:

“What is America to me” A casa onde vivo, os Amigos que encontrei / (...) os meus vizinhos brancos e negros (...). / Todas as raças, todas as religiões (...) O ar de liberdade / Mas especialmente as pessoas, isso é a América para mim.” The house I live in, Lewis Allan (1942), cantado por Paul Robeson e Frank Sinatra

O pensamento e o discurso das ciências sociais, de endémica importação, são frequentemente inquinados pela ideologia. Essa marca universitária “credibiliza” visões políticas obscurantistas com que converge ou coincide. Não surpreende por isso que manifestações de causas sociais justas, como o combate ao racismo, se deixem colonizar por essa produção “académica” enviesada, perdendo-se no seu labirinto.

O fenómeno vai-se manifestando em intervenções surgidas na comunicação social. Prosseguindo a reflexão sobre o tema, faço agora algumas considerações sobre o racismo* registando o que considero ser um anti-racismo esclarecido e consequente.

 a) O discurso do activismo anti-racista exerce frequentemente nos grupos humanos mais expostos ao preconceito referente à cor da pele um efeito perverso: encerra-os no seu meio, discrimina-os como deficientes inapelavelmente condenados a um futuro igual. O paternalismo desprezível do activismo anti-racista, assente numa suposta superioridade intelectual e moral e numa pseudocoragem militante, impede, afinal, as verdadeiras vítimas de condições discriminatórias de ultrapassarem essa situação.

b) Na intervenção desse activismo transparece por vezes a pulsão reptiliana que está no cerne do próprio racismo, à espera de circunstâncias sociais e materiais que favoreçam a sua emergência. Para esse “anti-racismo”, o racismo é apenas branco. Branco é sinónimo de mau e de racista.

c) A besta racista tem de ser enfrentada por uma visão objectiva do que é de facto racismo, leis esclarecidas e um direito intransigente. Mas só poderá ser erradicada pela educação, o conhecimento, o saber da História contada nas suas grandezas e misérias, a ciência, o exemplo ético e moral. Pelo que conduza à compreensão de nós próprios e do outro, condição para nos reconciliarmos com o que é irremediável na nossa humana natureza. É neste registo que é imperativo intervir.

O racista é uma pessoa que quer enganar-se a si própria. Não sabe ou não é capaz de assumir que a riqueza reside na diferença de todos os seres humanos. Todos singulares, como a impressão digital de cada um. Todos insubstituíveis. Mas único não quer dizer superior.

O racista revela uma fragilidade identitária que se traduz numa revolta inconsciente contra si próprio, logo projectada sobre o outro, próximo ou distante, que o racista vê como insuportável revelador (como o negativo fotográfico) de uma inferioridade de si próprio que a si próprio oculta. Um complexo de inferioridade logo transformado numa ilusão de superioridade. A fusão de fragilidade identitária com a apreensão ou medo que esta determina suscita uma acossada agressividade que pode ir ao extremo da eliminação do outro. Outro cuja simples existência e diferença o racista julga pô-lo em causa. Para o racista, a diferença e a novidade são uma ameaça.

A intolerância estigmatizadora do extremismo político é etiologicamente idêntica à da pulsão racista. O extremismo político desconfia do diferente, receia a novidade. Teme o que põe em causa as suas “certezas”. Por isso odeia a liberdade, que é sempre “fonte de imprevisível novidade” (Bergson). Se a defendeu foi hipocritamente. Usou-a para chegar ao poder e sem ética nem moral acabar com ela. É por isso que defende a tese filosoficamente insustentável Definitivamente: não há raças. A palavra ‘raça’ não deve ser usada para se dizer que há uma diversidade humana de que a moral e a ética não têm lugar nas opções políticas. Precisamente para legitimar todos os meios para atingir os seus fins. Tese usada recentemente pela extrema-esquerda para “justifi car” a recusa de uma diferença entre Le Pen e Macron nas eleições francesas.

O racismo não é racional. Mas é pela razão e pelo conhecimento que pode ser vencido.

O racismo não tem nenhum fundamento científico, embora houvesse sempre quem tenha tentado servir-se da ciência para justificar a discriminação. Definitivamente: não há raças. A palavra “raça” não deve ser usada para se dizer que há uma diversidade humana. Só há a espécie humana, o género humano. Todos os homens têm o sangue da mesma cor — mesmo se não o fosse, isso seria moralmente irrelevante. Posso ser mais parecido com um angolano do que com um lisboeta na aparência física mais próximo de mim.

Não há, aliás, nenhum grupo humano com pele de uma só cor. Basta olhar para os portugueses “brancos” para se verifi car a variedade de tons de “branco”. “Somos todos primos uns dos outros”, escreveu M. Sobrinho Simões.

Manifestações racistas inadvertidas ou extremas verificaram-se sempre em todo o lado. Mas o racismo foi há muito oficialmente proscrito e é punido na maioria dos países. Excepto nalguns repugnantes Estados islâmicos e africanos.

E o que deverá ser, afinal, um antiracismo bem compreendido e eficaz? Cito Bruckner: “Uma sabedoria de coabitação, uma sedução da diversidade quando cada vez mais indivíduos de todas as origens estão lado a lado no mesmo espaço. Mas também uma inteligência do discernimento capaz de distinguir aquilo que tem que ver com o vexame e o que resulta da liberdade de expressão, das liberdades individuais.”

Portugal é de todos os portugueses. Se fosse mais de alguns — e não é! —, seria dos que o amam, dos que contribuem de facto, na medida das suas possibilidades, para que seja mais esclarecido, justo e solidário.

Guilherme Valente

*O livro de Tahar Ben Jelloun O Racismo Explicado aos Jovens (Presença)  guiou-me na intenção de clareza deste texto.

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