quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"É PRECISO REDESCOBRIR A ELEGÂNCIA"



Publicado no "Jornal de Letras", a meu pedido foi-me me enviado um novo texto de Eugénio Lisboa, crítico literário, que agradeço e reproduzo com o prazer de sempre:

Para o  Luis Amorim de Sousa (Eugénio Lisboa)

Passaram, em 27 de Agosto, dez anos sobre a morte, em Londres, do poeta Alberto de Lacerda, encontrado caído à porta do seu minúsculo apartamento, em Battersea. Assinalando a efeméride, encontra-se, neste momento, na Biblioteca Nacional, uma bela e compreensiva exposição dedicada ao grande poeta de Oferenda.

Exílio é como se intitula um dos mais belos livros de Alberto de Lacerda e um longo exílio foi a sua vida, desde que, em 1951, deixou Lisboa, a caminho de Londres, onde, para sempre, se estabeleceria.

Nascido em 1928, na Ilha de Moçambique – “festa de luz de mar tranquilo” , estudante pouco convicto do liceu em Lourenço Marques, partiria em 1946 para Lisboa, com os estudos liceais mal concluídos e pior amanhados. Cinco anos de vida mais ou menos boémia na capital portuguesa, sem concluir estudos que o aparelhassem para uma entrada na universidade, Alberto de Lacerda entregou-se, por outro lado, a leituras intensivas e a um convívio literário apaixonado com vultos de proa do meio literário lisboeta. Ao fim de cinco anos, cansado, desiludido, magoado, partiu para Londres, sem trabalho certo garantido, aí vivendo, no meio de grandes dificuldades financeiras, de colaborações e alguma locução na BBC, mas sem vínculo certo.

Guloso de conhecimento e de diversidade, andou, em 1959 e 1960, pelo Brasil, onde atou laços de amizade perene, com figuras como Manuel Bandeira e Cecília Meireles.
Em 1967 foi ensinar para a Universidade de Austin, no Texas, uma experiência de fundo encantamento e de enorme produtividade poética. Terminado o contrato, regressou a Londres, mas, em 1972, foi contratado pela Universidade de Boston e aí ensinou Poética até se reformar. 

Viajante incansável, descobridor de mundos e minúcias que a outros escapavam, Alberto de Lacerda conhecia Londres como ninguém, sendo, da cidade que considerava “o centro da liberdade”, um admirável e apaixonado cicerone.

Amigo e correspondente de alguns grandes da cultura universal, Alberto de Lacerda foi considerado por René Char uma das quinze vozes universais da poesia de hoje. Co-fundador da Távola Redonda, com um número dos Cadernos de Poesia inteiramente dedicado à sua poesia e o seu livro (bilingue) 77 Poems saudado encomiasticamente no Spectator e no Times Literary Supplement, com mais poemas traduzidos fora de Portugal do que qualquer poeta português, genial animador cultural e aliciante conversador, Alberto de Lacerda, uma das mais belas vozes da poesia portuguesa, dono de um discurso poético a um tempo intenso e castigado – consegue, no entanto, o prodígio de ser actualmente um dos poetas mais invisíveis e desdenhados, no universo pícaro da nossa república das letras.

Disse já, algures, que o autor de Palácio “é um poeta que celebra, em cada curva do seu discurso, o esplendor da língua e o fulgor da vida.” O poema que, no livro Exílio, dedicou à língua portuguesa é uma das mais belas homenagens prestadas à língua de Camões e um poema onde todos os excessos são permitidos: “Esta língua que eu amo / Com seu bárbaro lanho / Seu mel / Seu helénico sal / E azeitona / Esta limpidez / Que se nimba / De surda / Quanta vez / Esta maravilha / Assassinadíssima / Por quase todos que a falam / Este requebro / Esta ânfora / Cantante / Esta máscula espada / Graciosíssima / Capaz de brandir os caminhos todos / De todos os ares / De todas as danças / Esta voz / Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores / Todos os riscos / De expressão / (E ganha sempre a partida) / Esta língua portuguesa / Capaz de tudo / Como uma mulher realmente / Apaixonada / Esta língua / É minha Índia constante / Minha núpcia ininterrupta / Meu amor para sempre / Minha libertinagem / Minha eterna / Virgindade”.

 São de notar, neste extraordinário poema, os excessos afirmativos, os superlativos absolutos simples (fazendo cada um, só por si, um verso: “Assassinadíssima”, “Graciosíssima”), os adjectivos intensos: “soberba”, “máscula”. Observei algures que, “na sua poesia há sempre uma sedutora tensão entre o excesso apaixonado e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda.” Dizia Gide que o classicismo – o verdadeiramente vital – é apenas um romantismo domesticado. A poesia de Alberto de Lacerda ilustra, como poucas, esta asserção: vigorosamente romântica e severamente travada por uma mão que segura, com sábia firmeza, o leme. De tudo se alimentava a sua poesia: tanto das “maravilhas” como dos “horrores” da vida. Alimentava-se também, por certo, da sua prodigiosa e vivíssima cultura, municiada por toda uma vida de leituras e frequentação de museus, galerias, teatros, salas de concerto e de uma voracidade de coleccionador tão insaciável quão desprovido de substanciais meios financeiros. Do pouco soube contudo tirar muito, numa obstinação sublime e quase roçando o limiar da loucura.

Disse atrás que o Alberto era um aliciante conversador: nele, a enorme erudição não era árida, pelo contrário, era profundamente vivida, amoravelmente perscrutada e intensamente doada aos seus ouvintes. A sua conversa era um continuado fascínio, a que não faltava o toque de uma acerada e pessoalíssima ironia. Foi mesmo este seu dom que me fez surgir um dia a ideia de propor ao Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, o Professor Fernando de Mello Moser, a criação de um lugar de super-leitor de literatura e cultura portuguesa, nas universidades estrangeiras onde houvesse estudos portugueses. E que esse lugar fosse desempenhado pelo autor de Oferenda. Passaria períodos de residência de dois ou três meses em cada uma de diversas universidades, que até não teriam de ser só inglesas. O notabilíssimo animador e sedutor cultural que era o Alberto, por certo daria aos leitorados onde periodicamente residisse um fulgor, um colorido, uma vitalidade, uma sedução, uma aura que o vulgar leitor sediado na universidade não estaria em condições de propiciar. Moser foi sensível à minha sugestão e prometeu tudo fazer para a tornar uma realidade. Infelizmente, viria a falecer pouco depois da nossa conversa e não voltei a ter ânimo para retomar, com outro, o mesmo projecto.

Na vida, como na obra, Alberto visou sempre a beleza, a liberdade, a simplicidade recheada de conteúdo, a esbelteza. Num texto publicado no Notícias, de Lourenço Marques, e falando da obra do escultor Giacometti, o poeta escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades ainda mais misteriosas.” Alguns meses antes, no mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro.” É realmente preciso. Mas faz também parte da mais elementar elegância não fingirmos que não damos por um grande poeta.

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