segunda-feira, 29 de abril de 2019

João Bigotte Chorão (1933-2019)


Crónica do ensaísta Eugénio Lisboa escrita com um realismo que nos torna presente neste almoço/tertúlia de personagens da vida Cultural Portuguesa. Passo a transcrever:

“Conheci João Bigotte Chorão, há 30 anos, a completarem-se em Setembro próximo. O pretexto para o encontro foi um almoço congeminado e organizado por esse excelente “go-between” literário que foi o Luis Amaro. No almoço, que teve lugar num restaurante do Parque Mayer, estiveram também presentes, se o meu diário e a minha memória me não enganam, o João Rui de Sousa, a Joana Varela e o próprio Luis Amaro.

Falámos de muita coisa, mas falámos, sobretudo, lembro-me bem, de Camilo, em atenção ao João Bigotte Chorão, camiliano convicto. Entendemo-nos bem, eu e o João, e achei logo que podia ficar seu amigo, apesar de diferenças ideológicas e religiosas. Estas diferenças nunca, para mim, serviram de empate à amizade. Para o João, pelos vistos, também não.

Um pouco mais tarde, passámos a ver-nos, com uma certa regularidade espaçada, por via de uma agradável tertúlia que reunia no restaurante Galeto, ao Saldanha, na qual, além de nós, participavam os meus prezados amigos Jorge Martins, Alfredo Campos Matos e Francisco Gonçalves. A tertúlia era viva, bem humorada, bem apimentada com as várias contribuições dos cinco participantes. Cada um tinha a sua área preferida. Ao Campos Matos, por exemplo, puxava-lhe o pé para o Eça de Queiroz (com um “z” terminal). E assim por diante. João Bigotte Chorão, com a sua voz de baixo e os seus itálicos bem sublinhados, dava a sua empenhada e capitosa contribuição à conversa da tertúlia, a qual se prolongava, com fluência, até às cinco da tarde.

 Era, para tudo dizer, um excelente conviva, com um elevado sentido de humor e uma vastíssima leitura, que lhe permitia condimentar, com gosto, o seu discurso afável. Agora que nos deixou, a tertúlia vai sentir imensamente a sua falta.

Nascido na Guarda, há 85 anos, João Bigotte Chorão licenciou-se em Direito, em Coimbra, mas não exerceu nunca nessa área. Foi professor do ensino particular, funcionário público e, sobretudo, director literário da Enciclopédia Verbo. Além de dezasseis livros que deixa publicados, fica também, dele, colaboração dispersa por jornais e revistas, como, por exemplo, Távola Redonda, Tempo Presente, Colóquio/Letras e O Observador. Foi membro (assíduo) da Academia de Ciências de Lisboa e do Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia.

Camilo foi, como dissemos, uma das suas paixões, a ele tendo dedicado valiosa bibliografia. Outras admirações foram Miguel Torga, Carlos Malheiro Dias, João de Araújo Correia, Tomaz de Figueiredo e, fora de Portugal, Papini, Julien Green e Montherlant. Entre os dezasseis livros que nos lega, estão também dois belos, inteligentes e sensíveis volumes de diário: Diário quase completo (2001) e Diário – 2000/2015 (2018). O primeiro destes dois livros recebeu o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores.

De entre os seus livros mais recentes, gostaria de destacar aqui o excelente volume de ensaios e críticas, intitulado, significativamente, Além da Literatura, que tive ocasião de apresentar ao público em 2014. Nele, João Bigotte Chorão faz questão de valorizar um “além da Literatura”, como componente importante e vital a ter em conta, para além da chamada “literariedade”. Em Torga, em Papini ou em Camilo, grandes espíritos desassossegados, Bigotte Chorão sonda, para lá de valores de escrita, algo mais a que, falando de Papini, chama “suplemento de alma”. A literariedade era, para este autêntico escritor, um valor importante, mas não lhe bastava. Fascinava-o a inquietação espiritual, o desassossego, a agonia, isto é, a "luta” interior de grandes escritores que nos atingem por muito mais do que o “estilo” ou a “forma”.

Falando, por exemplo de Papini, observava: “Repudiando o esteticismo finissecular, procurou na literatura o que não encontrara na filosofia: a alma, que se desobriga em exames de consciência e confissões públicas. A esta luz de catarse literária se há-de ler Um Homem Liquidado. Aí se desvela, com voz alterada, o desencanto de um homem que, depois de provar alimentos os mais diversos, tem fome de outro pão e sede de água de fonte não inquinada.”

Bigotte Chorão, verdadeiro escritor e, portanto, manipulador dos valores de escrita, buscava, no entanto, “outro pão”, buscava, em suma, um “além da Literatura”, que habita também em espíritos inquietos e agónicos, como são os de Camilo, Torga ou Papini. Não, repito, que desprezasse os valores da escrita: dono de um estilo ático, enxuto e escorreito, o autor de O Reino Dividido prestava homenagem aos valores da linguagem mas não se escravizava a esta. Tivemos já ocasião de aludir a um exemplo extremista desta tendência a pôr os ovos todos no cesto da linguagem, ao falarmos de Vladimir Nabokov, que não hesitava em fazer esta afirmação: “A palavra, a expressão, a imagem são a função da literatura. Não as ideias.”

João Bigotte Chorão estava completamente afastado desta atitude patologicamente extremista e muito mais se aproximava desse grande escritor de prosa descascada e escorreita – quase “neutra” – que se chamava George Orwell, o qual sustentava que “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de sentido até ao último grau possível.” Prospectando o desassossego singular de autores como Camilo, Torga ou João de Araújo Correia, João Bigotte Chorão avaliava-lhes, com gosto, a linguagem, mas não avaliava menos aquilo que a recheava: o miolo, o conteúdo, o sentido – a alma.

Valores que prezava nos outros e cultivava ele próprio. Valores que apareciam, com profusão, na sua escrita e na sua saborosa conversa, sempre recheada de estilo mas também de valioso e capitoso conteúdo. Falando, algures, de Camilo, refere “o génio não apenas verbal e confessional” do grande escritor: foi a combinação irresistível desses dois prestígios – a linguagem e o miolo – que o cativou, não só em Camilo, mas também nos escritores que pertencem – palavras suas – à “família camiliana”: Aquilino Ribeiro, Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia, Agustina Bessa-Luis. Poderosos escritores que, mais do que fazerem literatura, antes fazem vida, muito embora o “literário” esteja neles, forte e pujante.

Diarista e ensaísta de exímio valor, julgo que se justificaria recolher-se agora os verbetes de diário que terá vindo a redigir de 2015 para cá, bem como textos dispersos por jornais, revistas e prefácios. Juntar-se-iam com particular felicidade ao belo acervo de dezasseis títulos que temos actualmente ao nosso dispor. Ficaríamos todos mais ricos e mais “recheados”. “  

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