quinta-feira, 30 de junho de 2022

SONDA O MEU CORAÇÃO NO MEIO DA NOITE


Minha recensão de um livro da Guerra & PAZ e do IEACGO:

O Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo e Globalização - IEAC-GO publicou, em Novembro de 2021, em parceria com a editora Guerra & Paz, o livro Sonda o meu coração no meio da noite, com o subtítulo Cartas de Despedida e anotações da Resistência ao Terceiro Reich (1933-1945), editado por Helmut Gollwitzer, Kaethe Kuhn e Reinhold Schneider. A obra é, como o subtítulo indica, uma compilação de cartas de despedida de condenados à morte pelo regime nazi, que saiu, com muito êxito, na Kaiser Verlag, de Munique, em 1954 (a versão portuguesa é um pouco condensada, dado o tamanho do original). O título foi extraído do Salmo 17, «Oração de um Inocente contra os inimigos». Na edição da Difusora Bíblica, que está on-line, reza  assim esta súplica (usando o termo «perscrutar» em vez de «sondar»): «Ouve, Senhor, a minha causa justa,/ atende o meu clamor./ Escuta a minha oração,/ que não sai de lábios mentirosos./ Venha de ti a minha sentença,/ pois os teus olhos descobrem o que é justo.// Perscruta o meu coração, mesmo durante a noite, submete-me à prova de fogo/ e não encontrarás em mim iniquidade; a minha boca não transgrediu./ Contrariamente às acções dos homens, conservei-me fiel à suas palavras./ Dirigi os meus passos por duras veredas; os meus pés não vacilaram nos teus caminhos.» Como diz Afonso de Reis Cabral, no prefácio, um «salmo é também o grande desejo de ser ouvido no silêncio e na solidão». Trata-se, portanto, de vozes que rompem o silêncio da espera da morte.  

Este livro é duro, por vezes muito duro. Tem passagens que não são fáceis de ler sem se ser sacudido por emoções fortes. A maior parte dos testemunhos está perpassada pela fé em Deus e pela entrega à Sua vontade. Mas nem todos os casos aqui relatados são de pessoas com fé religiosa, ou pelo menos nem todos os registos de despedida falam de Deus. É, obviamente, o caso dos católicos e protestantes condenados à morte, dado que Hitler não hesitou em livrar-se de opositores de uma e de outra igreja. As igrejas católica e luterana, que no seu conjunto são maioritárias na Alemanha, opuseram-se por vários modos ao projecto totalitário e às acções dele decorrentes do inefável regime nazi. Muitos dos  membros dessas igrejas pagaram com a vida essa sua oposição, num tempo em que a vida humana não tinha nenhum valor para as autoridades alemãs que sobre ela decidiam, muitas vezes sumariamente e sem direito a uma defesa decente. As vozes que foram caladas tiveram  razões de sobra para clamarem contra o monstro fascista, mas é muito curioso que nestes depoimentos não se encontrem expressões de ódio ou desejos de vingança, mas sim e apenas expressões de humanidade. Na maior parte dos casos, há conformidade com a morte por ela ser considerada desígnio de Deus. Poderá parecer absurdo em certas situações, mas os desígnios de Deus são «insondáveis», como diz o Salmo 139; «Como são insondáveis, ó Deus os teus pensamentos! Como é incalculável o  seu número.» Há uma manifesta desigualdade entre os humanos e a divindade: Deus pode sondar os pensamentos humanos, mas os humanos não podem sondar os pensamentos de Deus.

Quem são os editores do livro? Helmut Gollwitzer (1908–1993) é o mais conhecido: foi um teólogo protestante, escritor e simpatizante das ideias socialistas. Discípulo do suíço Karl Barth, o maior teólogo protestante do século XX, apoiou, na época nazi, a chamada Igreja Confessante, um movimento protestante minoritário que tentou resistir ao domínio da Igreja Protestante pelo governo nazi. Um dos líderes desta igreja foi o pastor luterano Martin Niemoeller, que foi preso nos campos de concentração de Sachsenhausen e Dachau (ele é o autor do texto «Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me; afinal de contas, eu não era comunista. (…) Quando eles vieram por mim, não havia mais ninguém para protestar», muitas vezes atribuído a Bertold Brecht). Em 1940, Gollwitzer foi proibido de falar em público e, mais tarde, foi incorporado numa unidade de assistência médica na frente oriental da guerra. Em 1945, foi preso pelos soviéticos e enviado para um campo de trabalho e reeducação, de onde só foi libertado no final de 1949. Em 1950, sucedeu a Barth como professor de Teologia Sistemática na Universidade de Bona. Na década de 1950, lutou contra a instalação de armas nucleares na Alemanha. Na década de 1960, quando era professor da Universidade Livre de Berlim, apoiou os movimentos estudantis, muito activos nessa época.

Por sua vez, Kathe Kuhn (Lewy de seu nome de solteira) (1896-1971) era a esposa do filósofo judeu Helmut Kuhn que, em 1938, emigrou para os Estados Unidos, tendo sido  professor de Filosofia na Universidade da Carolina do Norte. Durante os anos do exílio o casal, que entretanto se converteu-se ao catolicismo, ajudou muitos refugiados. Voltaram em 1949 à Alemanha, tendo ele ocupado um lugar na Universidade de Erlangen.

Por último, Reinold Schneider (1903–1958) foi um escritor – poeta, romancista e ensaísta  , cujos escritos foram progressivamente ganhando um pendor religioso no quadro do catolicismo. É curioso que Luís de Camões se encontre entre as suas influências, tendo mesmo escrito sobre ele. Schneider fez uma viagem a Portugal, sobre a qual escreveu um diário de viagem, que ainda não está traduzido em português. É ainda autor de uma peça de teatro sobre o Marquês de Pombal e o Grande Terramoto de Lisboa. Escreveu poemas contra a guerra, que foram proibidos na Alemanha nos anos 1940. Apesar de ter sido perseguido e mesmo acusado judicialmente, o facto é que a guerra acabou sem que ele tenha ido a julgamento.

O livro encerra os depoimentos de alguns nomes conhecidos e de muitos desconhecidos. Escolhemos aqui alguns nomes exemplos de uns e de outros. Um dos mais famosos foi Dietrich Bonnhoeffer (1906-1945), pastor luterano e teólogo como Gollwitzer. Também ele ajudou a formar a Igreja Confessante. Acusado de co-autoria do fracassado atentado da Abwehr  (Serviços de Informação do Exército) em 1944 (foi o «golpe de 20 de Julho», que recorreu a duas bombas, uma das quais não explodiu) a Hitler, foi preso com outros conspiradores e, depois de um julgamento breve, enforcado numa prisão de Berlim, nos dias finais da guerra na Europa, poucos dias antes do suicídio de Hitler. Com ele foram enforcados seis outras pessoas, incluindo o almirante Wilhelm Canaris, comandante da Abwehr, e o general Hans Oster, vice de Canaris. O líder e executor do  atentado foi o coronel Claus von Stauffenberg (1907-1944), que era conde, executado por fuzilamento (o filme, de 2008, «Valquíria», com Tom Cruise, conta a história). Bonnhoeffer deixou estas palavras no livro em apreço: «Eu acredito que Deus pode e quer fazer surgir o bem a partir de tudo, também a partir do maior mal. Para isso, Ele precisa de seres humanos que contribuem para o melhor de todas as coisas».

Outro nome grande nome da teologia que foi mártir no tempo nazi e que tem  escritos neste livro é a freira carmelita, de origem judaica, Irmã Teresa Benedita da Cruz, de seu nome próprio Edith Stein. Por coincidência, tanto ela como Bonhoeffer nasceram em Breslau, na antiga Prússia, mas hoje na Polónia. Foi uma das primeiras mulheres a fazer um doutoramento em Filosofia na Alemanha. Converteu-se ao catolicismo aos 31 anos. Para fugir à perseguição na Alemanha refugiou-se num carmelo nos Países Baixos, mas, após a invasão alemã daquele país, foi levada para o campo de concentração de Auschwitz – Birkenau, onde foi executada numa câmara de gás. Numa carta a sua mãe em 1942 escreveu, em palavras registadas no livro  publicado agora entre nós: «Só se pode alcançar uma scientia crucis quando se chega a experimentar radicalmente a cruz.» Canonizada em 1998 pelo papa João Paulo II, alguns dos seus escritos teológicos e místicos estão publicados em português.

No esforço de Hitler para eliminar rapidamente o catolicismo, pelo menos a sua influência na esfera política, milhares de pessoas foram presas nos anos de 1930 e 1940, entre elas muitos intelectuais ligados à igreja. O ditador não queria menos do que a total subordinação da Igreja ao Estado, o que para a Igreja era isustentável. Em 1937, na encíclica Mit Brennender Sorge («Com Cuidado Ardente»), o Papa Pio XI acusava o regime nazi de ser «fundamentalmente hostil a Cristo e à sua Igreja.» Os colégios católicos na Alemanha seriam fechados em 1939 e o mesmo aconteceu a toda a imprensa católica em 1941. Nesse mesmo ano, as autoridades decretaram a dissolução de todos os mosteiros e abadias na Alemanha, tendo começado a expropriar os bens da Igreja. Muitas instalações eclesiais foram ocupadas pela SS, o sinistro corpo comandado por  Himmler. Alguns padres alemães opositores do  regime foram enviados para campos de concentração, incluindo o deão católico da Catedral de Berlim, Bernard Lichtenberg, que morreu a caminho de Dachau (entretanto, ele foi beatificado).  No campo de  Dachau, dos 2720 clérigos presos que lá passaram, 95% eram católicos, sendo os jesuítas o maior número.  Os que não perderam a vida foram libertados em 29 de Abril de 1945 pelo exército norte-americano: o que os militares viram foi aterrador. Hitler esperava descristianizar completamente a Alemanha após a vitória final na guerra, uma vez que sua ideologia não poderia aceitar um estabelecimento autónomo, com legitimidade alheia à do governo. Mas, como é sabido, foi implacavelmente derrotado pelos Aliados.  

Há outros nomes de vítimas no livro. Alguns deles, tal como Stauffenberg (que pertencia a uma família católica da Baviera, estado onde prevalece o catolicismo), eram nobres: é o caso dos condes Ulrich Wilhelm Schwerin von Schwanenfeld, Peter York zu Wartemburg e Heinrich von Lehndorff-Steinort. E há alguns padres católicos, dois dos quais jesuítas. Um foi o filósofo Alfred Delp (1907–1945), que foi enforcado em 1945, acusado de implicação no referido atentado de 20 de Julho de 1944. De facto, Delp não estava envolvido nessa tentativa de golpe militar. Transferido para uma prisão em Berlim, passou aí  a rezar missa dissimuladamente e a escrever cartas e reflexões sobre temas espirituais, que foram secretamente enviados para fora, antes de ele ter sido julgado. Durante a prisão, a Gestapo ofereceu-lhe a liberdade, desde que ele repudiasse a ordem a que pertencia, mas ele recusou sem hesitar. As suas condições prisionais foram extremamente difíceis, uma vez que, tal como todos prisioneiros implicados no atentado de 20 de Julho, era obrigado a usar algemas noite e dia. Por ironia do destino, o juiz que o condenou morreria no mesmo dia da execução da sentença devido a um bombardeamento aéreo dos Aliados. Um outro jesuíta assassinado que é autor de um depoimento registado no livro em apreço foi Rupert Meyer, que escreveu 1937 a um funcionário da Gestapo, a polícia secreta, como a provação lhe tinha reforçado a confiança em Deus: «Que Deus existe isso sempre o soube, mas que Ele é tão bom, tal como eu pude experimentar nas últimas duas semanas, isso não me ocorreria ser possível».

Mas há também algumas figuras anónimas. O seu drama não é menor por os seus nomes terem permanecido  desconhecidos. Um filho de agricultores da região dos Sudetas escreveu aos pais em 1944: «Agradeço-vos por tudo o que de bom fizeram por mim desde a minha infância; perdoem-me, rezem por mim…». Um oficial de SS condenado por traição (os militares traidores eram fuzilados sem contemplações) escreveu a um padre em 1949: «Gostaria de lhe pedir que escrevesse umas linhas à minha mãe para lhe comunicar que fui integro e valente e para lhe dizer que o meu ultimo desejo é que ela também o seja. Agradeço-lhe a consolação que me trouxe nos últimos dias da minha vida e parto com fé numa vida melhor no Além.»

A promessa de vida eterna serve de consolação às pessoas que têm fé religiosa. Mas há, ainda que em menor número neste livro, pessoas sem fé que experimentam a espera da morte. Julius Fucik, comunista checo, foi preso pela Gestapo em 1942 e executado em Berlim no ano seguinte por ter integrado a resistência comunista (presume-se que fosse ateu). Logo após ter sabido da sentença que o condenava à pena capital, escreveu aos pais e irmãs: «O Inverno prepara os homens, tal como as árvores, para a sua chegada. Acreditai em mim: isto não retirou nada, mas mesmo nada, à alegria que sinto e que ressurge diariamente com uma melodia  qualquer de Beethoven. Um homem não fica mais pequeno, mesmo quando lhe cortam a cabeça. E desejo ardentemente que, quando tudo tiver terminado, não vos lembreis de mim com tristeza, mas com a mesma alegria com que sempre vivi.» É muito interessante que ele tenha encontrado lenitivo na música de um génio.

Um dos depoimentos que mais me tocou - e é verdadeiramente difícil escolher - foi o de Kim Malthe-Bruun, grumete e marinheiro de segunda classe dinamarquês, que foi acusado por ter fugido com uma lancha alfandegária da Dinamarca para a Suécia transportando armas. Acabou fuzilado. Escreveu em 1945 uma carta de despedida à namorada onde se encontra um texto belíssimo:

«Penso em Sócrates. Lê sobre ele e ouvirás Platão contar precisamente o que agora experimento. Tenho-te um amor sem limites, mas ele não é agora maior do que sempre foi. O que me apunhala o coração não é nada; é como é, e tens de compreender isto. Há algo que vive em mim e que me queima - um amor, uma inspiração, chama-lhe o que quiseres, mas é algo para o qual ainda não consegui encontrar palavras. Agora, morro e não sei se terei ateado uma chama num outro coração, uma chama que me sobreviverá; todavia, estou sereno, pois vi e sei que a natureza é tão rica, que ninguém repara se uns quantos rebentos forem calcados com os pés e morrerem. Porque deveria eu desesperar, quando vejo toda a riqueza que ainda vive?»

E continua:

«Ergue a cabeça, tu, cerne mais precioso do meu coração, ergue-a e observa; o mar ainda é azul, o mar que tanto amei e que nos envolveu aos dois Vive agora por nós os dois. Fui embora e estou longe, e o que se mantém não é o pensamento de que devas ser uma mulher do tipo X ou Y, mas de que te faças uma mulher de espírito vivo e afectuoso, amadurecida e feliz. Não podes enterrar-te no luto, porque, assim, ficarias ancilosada, atolada numa idolatria de mim e de ti própria, e perderás aquilo que em ti mais amei: a tua feminilidade.»

É difícil não ficar comovido ao ler esta declaração de amor. Ciente da sua morte próxima, o marinheiro invoca o amor, que é uma das marcas mais extraordinárias da vida.

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