quarta-feira, 22 de junho de 2022

A constante luta entre clássico e moderno

João Boavida 

Quando disse, em texto anterior, que o bom escritor faz o leitor e, inversamente, o bom leitor exige qualidade ao escritor, pretendi chamar a atenção para a relação do artista com o seu público, e pela qual ambos mutuamente se potenciam, ou enfraquecem. 

Um texto de qualidade é reconhecido como tal mesmo que o leitor não tenha muito treino, desde que, como é óbvio, o perceba minimamente. Pode não descobrir todas as potencialidades que o texto encerra, mas mesmo que considere somente alguns aspetos, ao sentir um mínimo de empatia reconhece as suas qualidades, ou, pelo menos, sente que há nele aspetos que o atraem.

O ato de o compreender, mesmo que não completamente, e a atração sentida, produzem no leitor uma usufruição estética ou a intuição do que isso seja. Ora, este é um processo de crescimento em que o leitor se sente amadurecer e se vai reconhecendo mais capaz de tirar de um texto o que ele pode dar.

Se tomarmos a questão pelo lado do escritor, reconhecemos um processo inverso mas que se entrosa com este. Com efeito, um leitor exigente e amadurecido, com referências bem estabelecidas e capacidade de avaliação, não vai perder tempo com escritos sem qualidade literária nem ideias válidas. E, portanto, ou os escritores produzem objetos literários de qualidade ou não serão lidos por quem interesse, ou seja, pelos leitores mais exigentes e capacitados.

No primeiro caso, era o escritor que condicionava o leitor, agora é este que condiciona aquele.

Mas donde vem a qualidade literária que o escritor procura e o leitor reconhece? E como apreciá-la?

Podemos dizer que a qualidade literária é definida por um cânone (Vd., por exemplo, H. Bloom, O cânone ocidental – os grandes livros e os escritores essenciais de todos os tempo, Lisboa, Temas e Debates, 2.013; A. Feijó, J. Figueiredo, M. Tamen, (eds.) O cânone, Lisboa, Tinta-da-China, 2020). 

Por vaga e implícita que seja há sempre alguma referência que define balizas à compreensão de um texto e à capacidade do leitor para o usufruir, e que estabelece níveis de realização ao escritor. Portanto, embora nem sempre se tenha noção disto, e por muito leve e pouco fundamentada que seja essa avaliação, uma leitura está sempre a ser enquadrada pelo leitor numa tabela valorativa, que lhe permite ir fazendo juízos sobre o que lê. E, por outro lado, o escritor irá sentindo maior ou menos satisfação com o que está a produzir, tendo em conta os cânones mais ou menos implícitos por que se rege e constituem a sua tabela de valores.

O cânone é, pois, uma escala valorativa, um padrão de qualidade a partir das obras já realizadas. Os cânones vão-se formando com maior ou menor estrutura teórica a partir das obras consideradas as mais conseguidas numa cultura, e são definidos basicamente pela aprovação dos pares, ou seja, dos que em princípio estão mais aptos a apreciar, a alto nível, aquilo que se produziu.

Foi assim que, ao longo dos séculos – desde há quase de 3.000 anos, e a partir de obras como a Bíblia, os Poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, a Poesia e o Teatro Grego, a Filosofia, e depois pela grandes obras latinas, helenísticas e medievais, até aos nossos dias - se foi formando o chamado Cânone Ocidental. 

Foi a partir de obras que, resistindo ao tempo, foram definindo um gosto, um conjunto de modalidades de expressão, de formas, de regras e, sobretudo, de níveis de exigência, que mais ou menos implicitamente foram condicionando autores e leitores.

É claro que toda a criação exige mudanças porque uma dinâmica de inovação está implícita na própria ação criativa. Se um artista não for além do que outros fizeram e do modo como sempre o fizeram não terá grande interesse porque a cópia é o contrário da criação, por muito perfeita e “artística” que seja. Por isso, a evolução artística em geral, e literária em particular, não estagna, porque vão aparecendo novas correntes, novas formas de criação que, por sua vez, vão exigindo novas formas de apreciação. 

Estas novas formas de avaliação são impostas pelas criações inovadoras e originais, e acabam, em grande medida, por vir ao seu encontro, digamos assim, adaptando-se-lhe, uma vez que vão progressivamente integrando essas obras e os novos critérios de que necessitam.

Podemos considerar portanto que há dois movimentos paralelos, que, embora opostos, vão interagindo: um, o da inovação, outro, o da consolidação e da referência. A novidade que a criação vai produzindo, e que às vezes provoca grandes reações e rejeições, vai sendo assimilada com maior ou menor dificuldade e, neste processo, vai criando as suas formas canónicas; isto é, vai introduzindo novidade nas formas de apreciação que vêm de trás, e assim vai colaborando na transformação e enriquecimento do cânone. 

Mas há uma matriz básica que subjaz a este processo, que constitui um substrato de referência e de enquadramento, e que vai permanecendo apesar de todas as inovações. Não permanece rígido e estático, mas antes enriquecendo-se e alterando-se vai perdendo umas referências e ganhando outras. Esta modificação é, porem, dupla, porque a própria inovação ao transformar o cânone transforma-se a si mesma, vai sendo assimilada por ele.

Daí que as grandes mudanças nas correntes artísticas acabam por perder a novidade e transformarem-se, em geral, em contributos e enriquecimentos a usar posteriormente; em suma, perdem muita da sua acutilância porque se vão integrando no cânone, até por sua vez provocarem renovações pois, com o tempo, irá sofrer o mesmo efeito. Entretanto o cânone tem tendência a alargar-se tornando-se mais elástico.

Ora, este processo tem o seu ritmo de transformação, digamos, ideal. Em certas épocas de maior agitação e mudança social é natural que os cânones tenham tendência a ser contestados e mudados com mais rapidez, noutras mais estabilizadas, acontecerá menos. Por outro lado, a aceitação ou não de um código novo tem tanto a ver com a sua necessidade de novidade como com o grau de estabilização e de valorização do código anterior. É também, em grande medida, uma questão de pessoas e de gerações, e dependente também do grau de formação e do nível de interiorização dos valores que o enformam. 

A valorização do cânone estabelecido tem ainda que ver com o âmbito da sua aceitação; cada leitor, por sua vez, aderirá mais ou menos ao novo consoante o sinta mais ou menos necessário, e esteja mais ou menos convicto relativamente ao anterior. Pode acontecer ainda que um criador se sature mais cedo de certas formas, que outro, que o seu espírito irrequieto exija novidades onde outro, mais clássico, vê ainda muito campo de aperfeiçoamento e de progressão.

Se um escritor novo renega todos os códigos anteriores e se vangloria, por exemplo, de não ler os clássicos (antigos e modernos) para melhor poder fazer obra original, está provavelmente a deitar fora as condições para a obra inovadora que pretende. Por outro lado, procurar a novidade a todo o custo pode tornar-se demasiado pesado, e até desgastante. O mais vulgar é ainda o escritor entrar com rompantes inovadores e, depois, perdê-los à medida que a obra ganha consistência e acomodação. Um dia será contestado, mas o que de válido conseguir entrará no cânone sempre em reformulação. 

João Boavida

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A palavra cânone, a ideia de cânone, têm uma carga histórica e académica e religiosa que dificulta muito a sua adopção e associação a uma prática que, embora de natureza e objectivos performativos, como são as artes, em grande medida, não se coaduna com a ideia de que é o autor quem estabelece os limites e formas e que uns e outras, canónicos ou não, sobretudo nas literaturas, não são a essência da arte. Para simplificar, ser soneto não é arte. Para que um soneto possa ser arte, não basta que seja soneto.
Nas perspectivas do autor e do leitor do soneto, e outros exemplos poderiam ser dados na música, na pintura, na encenação, embora nenhum leitor ou ouvinte ou observador, espectador, seja considerado um artista, tudo depende da descodificação, interpretação, sensação, representação, teoria, que este for capaz de fazer. Esta arte induzida, chamemos-lhe assim, acaba quase sempre por não extrapolar a experiência de cada um, como uma espécie de matéria escura da cultura. E nem sequer é experiência passiva, bem pelo contrário. Estar exposto, expor-se, atento, interessado, desperto, contemplativo ou interrogativo, perante a cultura, não é brincadeira e pode ser muito cansativo. Ler o mundo que nos rodeia, seja um livro, ou as pedras de uma rua, ou o que ocorre dentro de nós, é sempre uma criação desse mundo por nós próprios. Neste sentido, o homem é o criador dos significados.
E não se espera, nem exige, nem é exigível que o leitor aplique regras de interpretação literal, gramatical, histórica, restritiva, extensiva, correctiva, analógica, sistemática, teleológica.
Na realidade, induzido pelo texto, ou discurso, o leitor não tem outro remédio que não seja decodificá-lo, criá-lo, representá-lo, significá-lo, representá-lo, interpretá-lo e, na maior parte das vezes que não se está a falar de um objecto que todos estão a ver referido ao discurso, por exemplo, “isto é um lápis, confirmam que é um lápis?” provavelmente não haverá duas pessoas a pensar, a representar, a mesma coisa.
Quando pego num livro que me fala, por exemplo, de um lugar, devo estar preparado para aceitar que não vou “ler”, “ver” o que o autor “escreveu”, “viu”, por mais rigoroso e descritivo que seja o texto, ao ponto de ser possível imprimir uma fotografia desse lugar, a partir do texto. Nem que ele se refira a um lugar que eu conheça bem.
O autor e o leitor podem ver arte no soneto só porque é um soneto, embora o cânone não o exija, nem imponha, nem reclame.
Parece ser, assim, fácil compreender que um soneto seja, ou não seja, arte só por ser soneto, pelo menos numa certa acepção de arte, ou grau de realização artística, performativa, em função de um cânone, mais ou menos explícito e convencional.
A questão, porém, da discussão crítica da arte, em função de um cânone, não se confunde e não absorve, nem substitui, nem é mais relevante que o ponto de vista do que ela vale para o autor, ou leitor, fruidor, por muito que estes sejam desprezíveis para a crítica.
Entre discutir o cânone e discutir a obra de arte, pode-se preferir uma discussão à outra sem que alguma dessas discussões seja discussão crítica da obra de arte.
Independentemente das preferências, a crítica da arte deve fazer justiça à obra e ao autor.

João Boavida disse...

O cânone não obriga, o cânone condiciona o artista e quem avalia o valor do que foi produzido (o leitor ou o apreciador de arte em geral). O artista é o determinante primeiro da obra de arte e, por isso, é, ou pode ser, um inovador, isto é, um fator de enriquecimento ou de transformação dos códigos vigentes.
É óbvio que um soneto não é arte por ser soneto mas pela qualidade artística que, dentro da forma de soneto, consiga obter e, depois, produzir nos outros. É claro também que a apreciação do referido soneto depende da qualidade literária dele e de quem o ler, pois por muito bom que seja pode deixar o leitor indiferente. A arte, se dificilmente consegue extrapolar a experiência do leitor, como diz, por outro lado pode fazê-lo na medida em que é um catalisador dessa experiência criando e levando a intuir, nos outros, experiências novas e possíveis pois tem potencialidades múltiplas. O bom artista, como eu disse e suponho que está de acordo, precisa de quem seja capaz de o apreciar e, frequentemente, esta apreciação está mesmo, ou vai mesmo, para além disso. Os estudiosos de um autor veem frequentemente na sua obra aspetos e vertentes em que o próprio autor nunca pensou. O homem é, de facto, um criador de significados, como diz, e aplica neles tantos meios quantos tem o seu dispor, e de quantos pode ter sem saber que os tem. Muito do estimulante da arte vem das capacidades de quem a aprecia e a vive, de quem a recria.
É certo que um bom artista rompe e inova, mas não se vê facilmente livre de um cânone porque partiu de um e, com a sua novidade e inovação criativa, está a criar condições para um novo cânone ou para enriquecer o anterior. Isto, se a sua inovação criar escola e autores e dinâmicas transformadoras nos artistas posteriores , e não se morrer à nascença, como também acontece. A inovação pode ir ao encontro de uma necessidade de novas formas de fazer, de outro tipo de expressividades, de se pôr em consonância com novas exigências culturais e estéticas, mas pode também ser só necessidade de dar nas vistas, exibicionismo vazio e mais ou menos inconsequente. No primeiro caso, dará origem a um cânone novo, ou renovado e enriquecido, no segundo caso terá provavelmente reforçará os cânones vigentes ou produzirá novas tentativas, que mais tarde ou mais cedo aparecerão e que terão mais ou menos sucesso, dependendo isto dos muitos fatores de que já aqui falámos.

João Boavida

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