segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Paradoxos de uma educação global: o que pode e deve a tutela decidir?

Por Cátia Delgado

Em texto anterior (link), disse que o nosso Ministro da Educação parece saber o que beneficia a Educação, mas não quer ou não pode fazer valer o que sabe. A tendência de constituição de um sistema educativo global é real, de modo que as decisões que cabem aos Estados veem-se cercadas de constrangimentos.
 
A verdade é que estas decisões dependem substancialmente de duas estratégias promovidas por grandes instâncias extragovernamentais (vg. OCDE, UNESCO, União Europeia): 
- a pressão para que os sistemas nacionais não fiquem para trás, com a consequente marginalização nos círculos europeus e mundiais; e 
- um certo tipo de emulação, muito publicitada, àqueles que se revelam “bons alunos” na aplicação das suas “recomendações”. 
A influência social faz o resto. Desta, destaco duas forças que se conjugam na perfeição: 
- a promoção, tendencialmente acrítica, dessas estratégias pela comunicação social
- e a força competitiva do mercado, que reclama da educação respostas eficazes e eficientes. 
Juntas, tais forças, levam-nos a crer que, se a sociedade evolui e se moderniza num certo sentido, então a escola tem de evoluir e modernizar-se exatamente no mesmo sentido

Esquecemos (ou afastamos de modo deliberado) as suas funções educativas basilares e adotamos o seu contrário. E assim contribuímos – todos acabamos por contribuir – para a progressiva debilidade do sistema, que, temo bem, se revelará catastrófica a breve trecho. 

Por certo, os Ministros da Educação estão conscientes disto mesmo, mas, admitindo que tenham as melhores intenções em termos de política nacional, o seu compromisso primeiro, que é para com a educação da geração que está no sistema, não se vê vingar nas medidas que firmam. 

Dou um exemplo desse dilema, recorrendo às palavras do nosso atual Ministro: 
se dissermos aos professores, em todo o mundo, que necessitamos de mudança, isto pode ser mal interpretado. Pode ser entendido como: ‘Porquê? Não estou a trabalhar bem?’ (...) Esta mudança é necessária porque há mudanças ecossistémicas por todo o mundo e novas exigências colocadas a uma profissão que, globalmente, funciona bem” (João Costa, in The Transforming Education Pre‐Summit, UNESCO, 2022).
O próprio percebe o contrassenso. E di-lo! Como anunciar a profissionais que “trabalham bem” que têm de mudar (sem motivo substancial para tal)? Essa é a preocupação que manifesta. 

As justificações são de vária ordem, desde a inevitabilidade (There Is No Alternative, TINA), à tendência de modernização (que temos que seguir, pelo sentido competitivo com outros países!), passando pelo medo de ficar de fora (Fear Of Missing Out, FOMO).

E assim, sub-repticiamente, se encontram justificações para legitimar os milhões envolvidos na corrente reforma para a modernização da educação (600 milhões, é o número!).

4 comentários:

Rui Ferreira disse...

Isto de propor algo argumentando com o seu contrário não é de hoje e faz parte de uma estratégia muito bem pensada, o “duplopensar”. O termo introduzido por Orwell na sua obra 1984 integra um rol de outras estratégias de controlo como a verdade mutilada, a linguagem distorcida e o abuso do poder. O “duplopensar” serve para envolver aquele que ousa ter uma atitude crítica num labirinto sem fim, esgotando-se em refutações sucessivas e infinitas. Usar a lógica contra a lógica, manter duas opiniões em simultâneo que se anulam mutuamente, repudiar a moralidade enquanto se afirma ser moralista, ter uma consciência de honestidade enquanto se contam mentiras cuidadosamente construídas, esquecer o que seja necessário esquecer, e depois recordá-lo de novo no momento em que faz falta, e depois esquecê-lo de imediato outra vez.
(Isabel Lucas, Revista Ípsilon, Jornal Público, 26 de fevereiro de 2021).

Anónimo disse...

Há uns bons vinte anos, se a memória não me atraiçoa muito, fui incentivado, por uma professora do ensino secundário, autora consagrada de manuais escolares, a escrever um manual para os “formandos” do “formativo”, e muito atual, ensino profissional. A colega explicou-nos, a mim e a duas coautoras, que o conteúdo da obra, para corresponder aos parâmetros das didáticas e pedagogias da moda, deveria ser mínimo, tanto quantitativa como qualitativamente, indo ao encontro da regra sub-reptícia, de ontem e de hoje:
- Os professores não devem ensinar!
Admito que os autores desta estupidez apenas queiram dizer que “os professores não devem ensinar as competências e os conhecimentos próprios das velhas escolas”. Mas, com esta hipótese benevolente, os problemas de clareza e compreensão, levantados pela linguagem e propósitos gongóricos dos “revolucionários da educação sem causa”, agigantam-se. O novo conhecimento é a filosofia ubuntu, animada por animadores
sociais, ou são as aprendizagens essenciais por domínios e rubricas, com as cadeiras dispostas em U, em contexto de sala de aula?
A minha pergunta não é inocente: baseei-me nas perguntas dos exames caricaturais que restaram no nosso sistema. Em certos “exames”, para avaliar a inteligência do examinando da resolução de um problema, impunha-se na pergunta um caminho único a seguir, considerando-se errada a solução correta a que se chegava quando se percorriam “etapas diferentes”.

Cátia Delgado disse...

Caro Rui Ferreira, esta é uma, de entre muitas estratégias de convencimento, pois, ao apresentar uma tese e o seu contrário na mesma ideia, dificulta a sua crítica. É muito comum ver este tipo de construções nos documentos políticos, como documenta Shiroma (2005): "embora caracterizados por um tom prescritivo e recorrendo a argumento de autoridade, os textos da política dão margem a interpretações e reinterpretações, gerando, como consequência, atribuição de significados e de sentidos diversos a um mesmo termo" (p. 431). Daí ser imprescindível, ao analisar as narrativas de tais organismos, governamentais ou extragovernamentais, buscar também o omisso e compará-los com textos paralelos, da mesma entidade.
Cumprimentos, Cátia Delgado

Cátia Delgado disse...

Caro Leitor, o sistema transmite-nos, de facto, essas mensagens. Mas será que os próprios professores devem destituir-se do seu papel de ensinar (devidamente)? Penso que a "batalha" entre o que está instituído e até o que se vislumbra num futuro próximo não deve ser encerrada de ânimo leve, resignado-nos ao discurso dominante, sabendo-o cientificamente infundado, mormente movido por outro tipo de interesses, que não os pedagógicos. Os professores devem ter uma palavra a dizer, se não em contextos públicos mais amplos, no meio restrito das turmas que ensinam, na, ainda, sua sala de aula.
Cumprimentos, Cátia Delgado

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