quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A ESCOLA COMO START-UP - 1


O Summit Learning requer demasiadas horas  sentados 
em frente ao computador e elimina grande parte da interação humana”
Extracto de carta de alunos dirigida ao fundador do facebook.

“Recolhemos assinaturas, mas inicialmente os colégios não nos escutavam. 
Então um pai viu que as crianças tinham tido acesso a conteúdo inapropriado, 
explicitamente sexual. Num dia, somaram-se 500 assinaturas. 
O distrito escolar já não podia mais ignorá-lo. 
Após as férias do Natal, já tinham tirado o programa”
Extacto da declaração de um representante de pais a jornais.

“Quando se visita uma escola assim, parece o futuro, parece uma start-up”.
Tencionava “modernizar”, numa década, a maioria das escolas dos EUA, 
e depois levar o modelo para o exterior. 
Declaração de Zuckerberg, em 2016, numa conferência em Lima


Através das suas fundações, dos seus think tanks, e de outras influências, nomeadamente na comunicação social, os empresários que operam à escala global instalaram com a complacência, quando não com o "engajamento" (mais ou menos informada, consciente e ponderada) de políticos, académicos e profissionais, um modelo muito concreto de “educação” escolar.

Esse modelo é, já se vê, aquele que concorre em seu próprio benefício, com o correlativo prejuízo – em termos de inteligência – de milhões e milhões de crianças e jovens, obrigados a estar na escola pública durante cada vez mais anos, sendo objecto de formatação em vez de formação. 

Já o disse em várias circunstâncias, incluindo neste blogue, que o facto de tal modelo vingar na escola pública e, mais, de se ver reforçado a cada dia que passa, não pode ser imputado só, nem principalmente, à acção desses empresários – afinal é da sua natureza expandirem tanto negócios como influências –, deve também, e sobretudo, ser imputada a quem tem responsabilidade directa na educação formal que tem lugar nesse contexto, a quem ela é confiada, seja em termos de investigação, como de decisão, como de ensino.

Acontece que estes, onde me incluo, ou se deixam seduzir pelas múltiplas formas de aliciamento que o modelo prevê, ou estão desatentos e nunca pensaram no que é por demais evidente, ou não têm conhecimentos que lhe permitam discernir o que está em causa, ou sentem-se rendidos a uma força que vêem como superior à sua capacidade de enfrentamento. 

Enfim… não têm constituído obstáculo aos grandes empresários, que, quer isolados quer em rede, através das suas acções “beneméritas”, disputam os sistemas educativos públicos ou parcelas deles a que conseguem aceder. Refiro-me, por exemplo, às fundações Gates, Varkey, e Zuckerberg… O que se possa pensar ser necessário para a "educação" (entendida segundo o tal modelo), elas providenciam, desde técnicos, a conteúdos, passando por computadores, manuais e outros recursos, plataformas e sítios na internet, congressos, prémios, etc, etc., etc. Tudo de graça! 

Mas, talvez as coisas estejam a mudar ligeirissimamente, uns milímetros. Vejamos… 

A última fundação que mencionei (Chan Zuckerberg Initiative) cujo lema é "Um futuro para todos", criou, também ela, dentro do "modelo-tipo", um “modelo inovador”, "personalizado" para a educação do futuro/do século XXI, delineado para conseguir o sucesso pleno. Este modelo designado por Summit Learning, foi entusiasticamente, acolhido, no passado ano, em 380 escolas públicas, distribuídas por dezanove estados dos Estados Unidos da América, envolvendo 72.000 alunos.

Imagem recolhida aqui.
À partida, cada aluno recebia um computador e, estando o currículo disponível numa plataforma, sozinho ou com os pares, decidia por onde começar, seguir, etc. Todo o trabalho implicava pesquisa… sobretudo no facebook, no youtube! Isto com o afastamento do professor, que passou a tutor pontual. O que se segue? A recolha de dados pessoais, evidentemente. Foi também detectado um "pormenor": o fácil acesso a “conteúdos impróprios”. De tudo isto se deduz que, afinal, o que é de graça, sai muito caro! 

Parece que os alunos e os pais, ou, pelos menos alguns deles, perceberam isso e manifestam o seu descontentamento que tem sido público, chegando a jornais como o The New York Timesonde foi designado como "início de uma rebelião". Curiosamente, nas notícias não é mencionado qualquer descontentamento por parte de professores e directores.

Algumas escolas suspenderam a colaboração mas não todas e, evidentemente, que a fundação não bateu em retirada, antes redefiniu a sua estratégia. Uma porta-voz veio dizer:
“Estamos profundamente comprometidos com a privacidade (...). As informações dos alunos não são vendidas e só são utilizadas para propósitos educativos.” 
“Não estamos aqui para ganhar dinheiro, estamos para apoiar os estudantes e os educadores. Há colégios que nos procuram e querem inscrever-se no programa, declaram ter necessidade desse apoio.”
Os protestos aconteceram porque “a mudança é difícil, especialmente na educação”. 
“Aprendemos várias lições (...). No futuro, daremos apoio geral e personalizado às escolas, em função de suas necessidades. Daremos oportunidade aos pais para transmitir os seus comentários, directa e pessoalmente, à nossa equipa. Queremos que os pais sejam aliados neste trabalho.”
Portanto, a fundação não desarma: quer igualar a escola pública a uma start-up. Não desarmar deveria ser também a atitude de alunos e pais, e também de professores e directores, mas para manter a escola pública como escola pública.

Este texto continua aqui.
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Notícias consultadas para redigir esta nota:
https://www.nytimes.com/2019/04/21/technology/silicon-valley-kansas-schools.html https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/29/tecnologia/1561832269_832729.html  

https://observador.pt/2019/07/01/programa-de-ensino-de-mark-zuckerberg-esta-a-gerar-protestos-nas-escolas-dos-estados-unidos/ 

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