"A epistolografia portuguesa não é, como outras, de outras nações, particularmente rica, embora se possam assinalar alguns exemplos de escritores que nos deixaram espécies significativas: a Marquesa de Alorna, o Cavaleiro de Oliveira, Herculano, Garrett, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Antero de Quental, Manuel Laranjeira e Mário de Sá-Carneiro deixaram-nos um legado não totalmente despiciendo.
Mas nenhum nos deixou um volume de epístolas que possa medir-se com os legados imponentes de um Rousseau (2500 cartas), Voltaire (20 000) ou Flaubert, com os seus cinco sumarentos volumes na Bibliothèque de la Pléiade, ou, mais próxima de nós, a correspondência abundante de um André Gide ou de um Roger Martin du Gard ou de um George Bernard Shaw, entre outros.
No caso de alguns destes escritores, há mesmo quem neles prefira a sua correspondência (pelo seu vigor, proximidade e vivacidade) ao restante da obra de criação literária.
É o caso de Voltaire e também o de Flaubert. Prefaciando uma recolha de 906 cartas do autor do Dicionário Filosófico, Jacqueline Hellegouarc’h não hesitou em afirmar que considerava a correspondência deste grande agitador de ideias e defensor de causas célebres como “um dos monumentos mais imponentes da nossa literatura”.
O mesmo se poderia dizer da vitalíssima correspondência de Flaubert. Seja como for, estes monumentais acervos fazem parte integrante do canon literário dos seus autores e não são apenas um anexo à obra de criação que eles produziram.
A correspondência de Flaubert está, no mínimo, em pé de igualdade com a Madame Bovary ou a Educação Sentimental. O mesmo se poderia, até certo ponto, dizer de Voltaire, de Roger Martin du Gard, de Antero ou de Eça de Queirós. As cartas destes, se serviram um propósito de comunicação, têm também o estatuto da mais elevada literatura.
Então, pergunto: e o que se passa com a volumosa correspondência que nos legou Jorge de Sena e que foi sendo publicada, postumamente, graças ao esforço empenhado da sua viúva Mécia de Sena?
De Jorge de Sena, conhecemos, actualmente, tomos de correspondência dirigidos a treze destinatários: Guilherme de Castilho, Mécia de Sena, José Régio, Vergílio Ferreira, Taborda de Vasconcelos, Eduardo Lourenço, Duarte Moreira Leite, Sophia de Mello Breyner, José-Augusto França, Raul Leal, Delfim Santos, António Ramos Rosa e João Gaspar Simões.
A maioria destas cartas foi escrita sobretudo depois de Sena ter saído de Portugal, para ir viver, primeiro no Brasil, depois, nos Estados Unidos da América, nunca mais tendo regressado ao seu país natal. Afastado dos seus amigos e confrades de literatura, restava-lhe, como meio de comunicação, a epístola. A ela recorria destemidamente, apesar da repetidamente alegada falta de tempo.
De facto, tanto no Brasil como nos EUA, Jorge de Sena entregou-se a fundo às suas funções de docente, investigador e escritor, não se poupando, em nenhum destes pelouros. Mesmo assim, fazendo das fraquezas forças, deu-se igualmente à epistolografia, não raro caracterizada por longuíssimas e pormenorizadíssimas missivas, nas quais se explicava, se defendia de alegados ataques enviesados, dava conta, miudamente, do seu emprego do tempo, dava curso à sua amargura crescente, no que respeitava ao Portugal que deixara para trás, invectivando, acusando, lamentando-se…
Tudo, numa prosa direita, vigorosa, cheia de circunvoluções bem congeminadas, embora nem sempre, aqui e ali encolerizada e vingativa, mas nunca flácida ou morna.
Será isto literatura? Será isto arte, susceptível de se medir com a estatura do poeta, do ficcionista, do ensaísta e do historiador? Creio bem que sim.
Cito uma passagem de uma recensão crítica que fiz à correspondência de Sena com João Gaspar Simões:
“Há, no vastíssimo acervo epistolográfico de Sena, cartas admiráveis, de densidade informativa, de vigor, de penetração crítica, de generosidade na entrega de si, de reflexão teórica, de observação fina e aturada; e há outras onde, não tudo, mas algumas passagens são claramente de antologia, a reter, para estudo e divulgação.”No entanto, desde logo, acrescentava:
“Mas há, por outro lado, momentos de mau feitio, de ressaca, de ressentimento agressivo, de ajuste de contas, de grande violência, que deixam mau travo na boca e desfeiam, de algum modo, o conjunto, que seria, de outro modo, inigualável.”Tudo visto, mesmo com estes senões, o conjunto epistolográfico de Jorge de Sena mantém-se de pé, inteiro, vigoroso, destemidamente interpelativo e desarrumador – e deve, fora de qualquer dúvida, ser inserido no canon literário do autor de Sinais de Fogo, por serem, indiscutivelmente, exercícios de exímia criação literária.
As cartas de Jorge de Sena são de uma grande riqueza e variedade de tópicos e pontos de vista. E, sempre, de uma grande intensidade ou, se preferirem uma imagem eléctrica, de uma grande amperagem. O brasileiro António Cândido, que Sena muito estimava, caracterizou assim a correspondência do autor de Metamorfoses:
“Sena escrevia cartas longas, vibrantes, de uma qualidade que as tornava verdadeiros textos literários, abrindo-se nelas frequentemente com a veemência que o caracterizava.”A estas características altamente positivas poder-se-ia opor, no que diz respeito à escrita de Sena, uma certa tendência para um estilo às vezes demasiado hermético, quando não à beira do opaco – o que se verifica, aliás, não só na sua correspondência, mas em toda a sua obra. José Régio, por mais de uma vez lhe fez essa reserva, como por exemplo, numa carta que lhe dirigiu em 20.02.1947, nestes termos:
“Quem tem um pensamento rico – e o Sena tem-no – pode bem procurar ser um bocadinho mais claro, que nada tem a perder.”E continua a sua crítica, acusando Jorge de Sena de
“fechar-se nessa forma de uma economia às vezes quase desdenhosa”.Cinco anos mais tarde, numa carta de 13.03.1952, Régio voltará à carga, o que não deixa de ser significativo:
“Pelo menos no sentido corrente do qualificativo - , Você nem sempre é suficientemente claro; a até às vezes parece comprazer-se num hermetismo que nem sempre lhe assegura uma pronta compreensão.”Outra característica a que já atrás aludimos, de passagem, incomodava também o autor de As Encruzilhadas de Deus, que em carta de 09.02.1947, lhe observa frontalmente:
"Quando conversarmos lhe direi que só me desagrada, às vezes, nos seus escritos, um tom de azedume, desconfiança, não sei quê, que acho impróprios de um rapaz que ainda não vi ter razões de queixa contra a Natureza ou o Destino.”O isolamento em que Sena se sentia viver, no Brasil e, sobretudo, nos EUA, e a falta de reconhecimento dos seus pares, em Portugal, induzem nele, algumas vezes, reacções de auto-afirmação claramente desafiadora e desproporcionada. Numa carta a Eduardo Lourenço, de Madison, por exemplo, Sena desabafa com mais do que alguma incontinência:
“Eu não preciso que ninguém me diga que sou um dos maiores poetas da língua portuguesa, um dos contistas mais originais, um dos críticos mais sérios e importantes, autor de algum do teatro mais significativo do século. Eu sei que sou.”Não admira que Régio, em carta de 1952, lhe tenha atirado o remoque:
“Nós dois, meu caro Sena, a respeito de megalomania, batemo-nos bem.”As cartas de Jorge de Sena são ricas em impressões acutilantes sobre o Brasil e os EUA e também em tópicos como o exílio, o estilo, o romantismo e o neo-classicismo, a crítica de livros, Portugal e a saudade de amigos, prémios literários, a impossibilidade do regresso, a morte (meditações sobre), a proibição de publicar em Portugal, Lisboa revisitada em 1968, etc., além dos que já ventilei. E seja dito de passagem que anoto aqui apenas a ponta visível do iceberg, deixando de lado, por falta de espaço, a imensa parte que fica submersa.
Dizia Goethe – e já citei isto noutra ocasião – que, ao pormos de lado cartas que nunca voltamos a ler e que acabamos por destruir, estamos a fazer desaparecer
“a mais bela e e a mais imediata respiração da vida.”No caso de Sena, felizmente, essa bela respiração da vida foi salva graças ao cuidado do escritor em guardar as cartas que escreveu e as que recebeu e ao esforçado empenho de Mécia de Sena em as publicar postumamente”.
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