1
Gostaria de dormitar, eternamente,
Dentro do xaile negro da minha avó,
Longe da poeira:
Gostaria, só, de ouvir cair a enxada,
Como chuva, e ouvir
A chuva de inverno
Bater na terra e na oliveira.
A Sandro Penna
2
No teu olhar cor de sépia, vejo de modo claro o brilho do desejo. nas maçãs-do-rosto ruboresce-se o riso e ri-se o rubro do pudor. no rosa brando dos lábios desabrocha o cicio lúbrico dos ramos vernais em flor. na trança húmida de mar perdem-se os barcos azuis do elevado espanto pueril. e, na pele da mão em delírio, augura-se a profunda rota de um toque breve e subtil.
3
Sempre o peito, em tuas palavras.
Não a palpitar,
Mas num riso modesto
A entregar as pálpebras.
4
Ergo-me agora como um velho choupo,
Dobro de leve o tronco
E abro os braços e a alma
Ao voo excelso de uma cegonha branca,
Nos campos e no brilho metálico
Da água.
Agora céu azul claro à ilharga da cidade,
Clareira-colina,
E a mágoa a ir ao encontro
De um riso de sonho e vergonha.
De um riso tão aberto lá atrás
E tão sombra aqui,
Tão distante e inatingível
Como o alto voo da cegonha.
5
Aproxima-se o negrume desbotado da boina basca. o rumor da bicicleta e a inclemência do frio. aproxima-se o estalo do engaço na argamassa do pátio. a rachadela exangue no lábio. o adesivo no polegar enrolado. aproxima-se o fôlego da exaustão. o jorro de água assomando às maçãs-do-rosto. o grunhido debaixo da porta do curro de tábuas. as mãos quebrando sarmentos no crepúsculo hostil. o sopro chamando a chama à face. aproxima-se a trepidação da bucha. o gorgolejo do vinho. o calor da batata assada na cinza. o sopro aliviando a ponta dos dedos. o verdor do azeite embebido na côdea sombria da broa. aproxima-se o sopor do bule rente às áscuas. os pés chapinhando na bacia azul-céu. o creme das paredes do quarto. aproxima-se o baque do relógio de pulso na cómoda. a coroa de espinhos ensanguentada. os joelhos protuberantes aconchegados um ao outro. aproxima-se a concentração íntima. a gravidade da oração e a paz de um até amanhã se deus quiser. aproxima-se o ressono do coração. a eternidade do homem e a lágrima da bacia.
Ao pai
6
O brilho áureo, entre chuvas plúmbeas, é que fere o meu olhar. a nora carcomida, e a gárgula desvalida, é que irriga o barro da minha inspiração. a serpente exígua, que talha o mutismo do cerro, é que aproxima a minha língua da tua pureza. o pendor das fúchsias é que abre os teus lábios róseos à purpúrea embriaguez. a retração das maravilhas é que é o prenúncio do lume do riso. a fraqueza das minhas mãos é que caminha para a loucura do teu aceno. A volta sempre inopinada dos luze-cus é que inicia a perseguição da íris terrosa. e a melancolia, presa à albumina da tarde, é que pousa nos lilases longínquos e sobressalta o meu coração.
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