terça-feira, 31 de julho de 2007

O ERRO E A SUA AMIGA VERDADE

“Em vez de falar dum oceano de incerteza em torno de uma ilha de certeza, pode ser preferível falar dum oceano de incerteza no qual pequenas rochas de certeza constantemente aparecem e desaparecem.”
John Watkins, 1990, 99.

“Assim nos erguemos do marasmo da ignorância, assim atiramos ao ar uma corda e trepamos por ela desde que atinja um ponto de apoio, um ínfimo galho de árvore, por mais precário que seja.”
Karl Popper, 1996, 164.

No domínio científico, parece ser possível afirmar que o único critério possível para se demarcarem erros é tomar como referência verdades que se conseguiram reunir. Mas, logo de seguida, temos de acrescentar que este critério não é completamente seguro, pois há razões para admitir que as verdades, mesmo as mais consistentes, podem ser (não quer, necessariamente, dizer que o sejam) incompletas, imperfeitas e provisórias. Ainda assim, não nos parece tratar-se de um critério inválido ou sem qualquer relevância.

Para explicar melhor esta ideia é importante desmistificar um grave equívoco que lhe anda associado: sendo as verdades científicas, como todas as outras verdades, construídos por pessoas, não têm outro valor além daquele que elas lhe atribuem, ou seja, têm apenas e só valor para determinada(s) pessoa(s) ou comunidade(s), não havendo qualquer possibilidade de determinar o seu valor objectivo. Ora, daqui até se desvalorizarem as verdades ou se manifestar antagonismo contra o seu valor é um pequeno passo que, lamentavelmente, tem sido dado vezes demais.

Este é um raciocínio em que não podemos nem devemos cair, pois como escreveu Bronowski (1973, 373), “aquilo que conseguimos conhecer, apesar de sermos falíveis” mesmo que rodeado de alguma incerteza, possui um valor inestimável. E Popper (1999, 9; 122) acrescentou: “o conhecimento científico e a racionalidade humana que o produz são, em meu entender, sempre falíveis ou sujeitos a erro, mas são também, creio, o orgulho da humanidade”. Este último autor explicou que, de uma vez por todas, “devemos renunciar à ideia de que somos espectadores passivos do mundo, e acolher a ideia de que somos responsáveis, pelo menos em parte, pelo entendimento que temos dele”, até porque “uma das principais tarefas da razão humana é tornar o universo em que vivemos algo compreensível para nós” (1999, 63). Esse entendimento não será completo nem perfeito, porém, é preferível, notou Moles (1995, 16) com muita simplicidade, “saber de forma incerta do que não saber rigorosamente nada”.

Mas que verdades são estas, produzidas no seio da ciência e que, com alguma confiança, permitem demarcar erros? Watkins (1990, 14) explica de modo quase redundante que se trata de “um corpo organizado de saber sem a implicação de estar livre de erro” e Ziman (1999, 450) sublinha que o seu apuramento decorre da “resolução de disputas factuais” isto é, da submissão das proposições em debate — que, só por si, requerem integridade lógica — a provas empíricas. São verdades que se ajustam à realidade, “que se baseiam em dados verificados e que são aptos para fornecer predições correctas” (Morin, 1994, 19).

Ao contrário do que o pós-modernismo faz crer, não dependem tais verdades nem do consenso retórico nem do consenso democrático, uma vez que as estratégias de apuramento que as originam — o convencimento conseguido através da sedutora eloquência argumentativa e a eleição da opinião maioritária que se assume como legítima — não apresentam garantias factuais capazes de, com segurança, os rejeitar ou aceitar. No domínio científico, o consenso possui um sentido muito particular: reporta-se à “convergência entre diferentes indivíduos, raciocinando todos para chegar à verdade” (Nagel, 1999, 42), mas sempre apoiados em dados apurados, tanto quanto é humanamente possível, de maneira imparcial, sem interferência, portanto, de ideologias e de preconceitos alheios a essa intenção. São esses dados, e não outros, que permitem confirmar ou infirmar as proposições em debate.

A exigência de facticidade, num ambiente de objectividade — que a ciência impôs a si própria e se tornou, afinal, a sua característica mais marcante (Gil, 1999, 10) — permite atribuir, criteriosamente, a determinados dados, o estatuto de verdades e a outros o estatuto de erros.

Popper (1990, 48) — inspirado em dois pensadores por quem teve especial apreço, Immanuel Kant e Alfred Tarski — considerou, assim, que a reabilitação do conceito de verdade objectiva, ou seja, a verdade de acordo com a demonstração dos factos constitui “um dos resultados mais importantes da lógica moderna”, “o valor fundamental” da ciência e, afinal, “o grande baluarte” contra a suposição de que o puro pensar se basta a si próprio ou, como escreveu Brochard (1971, 16), de que é “sem sair de si mesmo, e pela virtude própria, que o espírito descobre a verdade”.

Não vejamos, pois, neste conceito de verdade objectiva qualquer indício de defesa do empirismo ou do dogmatismo positivistas mas, pelo contrário, o sustentáculo da actividade científica que possibilita, na opinião de Holton (1998), a redução de incertezas, que permite evitar alguns erros e ultrapassar outros.

Imagem: Desenhando-se (1948) de Maurits Cornelis Escher

Referências bibliográficas:

Brochard, V. (1971). Do erro. Coimbra: Atlântida.
Bronowsky, J. (1973). The ascent of man. Boston. Litle, Brow and Company.
Gil, F. (1999). A ciência tal qual se faz e o problema da objectividade in F. Gil (Coord.). A ciência tal qual se faz. Lisboa: Ministério da Ciência e Tecnologia/João Sá da Costa, 9-29.
Holton, G. (1998). A cultura científica e os seus inimigos. Lisboa: Gradiva.
Moles, A. (1995). As ciências do imprevisto. Lisboa: Afrontamento.
Morin, E. (1994). Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América.
Nagel, T. (1999). A última palavra. Lisboa: Gradiva.
Popper, K. (1992). Em busca de um mundo melhor. Lisboa: Fragmentos.
Popper, K. (1996). O conhecimento e o problema corpo-mente. Lisboa: Edições 70.
Popper, K. (1999). O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70.
Watkins, J. (1990). Prefácio à edição portuguesa. Ciência e cepticismo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Ziman, J. (1999). A ciência na sociedade moderna in F. Gil (Coord.). A ciência tal qual se faz. Lisboa: Ministério da Ciência e Tecnologia/João Sá da Costa, 4

6 comentários:

sofia disse...

mas há muito que já se tem pensado em como melhorar a maneira como a ciência lida com a incerteza ou com o quão dificil é atingir verdades objectivas. Post-normal science do funtowicz e ravetz é uma hipótese, extended peer-reviewing do funtowicz outra, new social contract for science, de lubchenco e gibbons (socially robust science), outra ainda. foresight knowledge e a agora cada vez mais influente sustainability science também são passos importantes no repensar da ciência, nomeadamente daquela que tem interface directa com a sociedade ou com a política.
gostei do seu post.

Authors disse...

Como cientista e fan "amadora" de filosofia da ciencia (filosofia de modo geral na realidade) nao posso deixar de ver o seu post como uma explicacao clara e simples do que sao isso de "verdades cientificas". Gostava era que os nao cientistas desse mundo que se assustam com o conhecimento cientifico lessem o mesmo texto e respirassem serenamente no fim. Sempre a esperanca :)

Anónimo disse...

A refutabilidade popperiana acerca da ciência veio virar do avesso o "dogma científico". Bem mais modesto foi Sócrates (o filósofo, para evitar especulações), quando disse, "urbi et orbi", "só sei que nada sei" (como li algures, julgo ter acrescentado, "mas nem isso sei!"). Mas esta modéstia pode tornar-se numa vaidade ( para embasbacar o papalvo) como o caso da anedota que, a propósito,se conta com muita graça: "Um indivíduo senta-se à mesa do café e para impressionar os presentes, atira. 'Eu sou como o Sócrates, só sei que nada sei!'Saída pronta dos circuntantes: 'Todos nós somos como o Sócrates: todos nós sabemos que tu não sabes nada!'". Este post tem o mérito de nos chamar a atenção para o facto que nem sempre a ciência se movimenta entre laboratórios e provetas experimentais. Na opinião de J. Bronowski, "os processos da ciência são característicos da acção humana, porque se movem pela indissolúvel união do facto empírico e do pensamento racional". Também, e felizmente! Embora o pensamento racional, por vezes, tolha o progresso científico. Assim, Aristóteles, com lugar no pódio dos maiores filósofos da humanidade, ao debruçar-se sobre o funcionamento do corpo humano,"baralhou os espírtitos durante séculos" por considerar o cérebro como um sistema de arrefecimento do sangue e o coração como sede dos sentimentos. Ora, o coração (mais correctamente, o miocárdio ou músculo cardíaco) é apenas uma prosaica bomba aspirante-premente que não ama e não odeia, que não rejubila e não sofre, que não age e não sonha! Mas ainda mesmo hoje, no dealbar de um novo milénio, na tradição romântica do teatro e do povo, é difícil aceitar esta realidade que obriga, até, o próprio conhecedor do sistema límbico a levar a mão ao peito, no sítio em que o coração galopa em louco tropel, para exprimir à sua amada o fogo da paixão que lhe corrói as entranhas e as labaredas do amor que lhe enrubesce a face! Para Georges Gusdorf (1977) "a biologia aristotélica só foi verdadeiramente ultrapassada depois de um intervalo de 2.000 anos"! O estudo científico do sistema circulatório só viria a acontecer com William Harvey, no século XVII.O notável trabalho deste cientista lançou para o cesto dos papéis a teoria aristotélica, acima referenciada,sobre os fenómenos circulatórios, assumindo a importância de um tiro de partida para a Biologia coeva, agora, de olhos postos numa esperançosa biologia molecular.

Anónimo disse...

Um óptimo post que se situa num equilíbrio perfeito entre a dúvida e a certeza. Um bom exemplo de temperanca científica.

Anónimo disse...

Breve emenda. Onde escrevi "saída pronta dos CIRCUNTANTES", devia ter escrito circunstantes.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Vitamina e vestido de virtude, amizade.

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