domingo, 20 de outubro de 2019

O falso problema da falta de professores: esquecemo-nos que há a internet, o google...?

Nos últimos dias tem sido formulado como um enorme problema nacional a falta de professores para leccionar no ensino básico e secundário. Há regiões do país mais críticas do que outras, o mesmo se aplica às disciplinas. São para cima de 2000 turmas onde falta pelo menos um professor (ver, por exemplo, aqui, aqui, aqui). Devemos perguntar: este problema é, de facto, um problema?

Se tivermos em conta o discurso educativo vigente, veiculado por
- organizações internacionais que têm o poder de traçar a política educativa;
- altos representantes da política educativa nacional;
- associações e confederação de pais e encarregados de educação;
- académicos prestigiados que participam nas decisões da tutela e na sua implementação;
- sindicatos e outras organizações com voz no sistema de ensino;
- empresários que influenciam as políticas educativas e se infiltram no sistema;
- jornalistas e outros agentes/parceiros educativos;
- associações de professores, directores de escolas e professores isolados;
- outros que, individualmente ou em grupo, se pronunciam sobre a educação,

não pode haver qualquer problema.

De facto, nesse discurso, é reiterado que os alunos:
- devem decidir o que querem aprender, para quê e como (é a "voz dos alunos" declarada pela OCDE e aplaudida e escrupulosamente cumprida por Portugal);
- são (à partida) autónomos, têm (à partida) capacidade de auto-orientação, auto-aprendizagem, auto-monitorização, auto-regulação e outros "autos";
- são, portanto, capazes de construir o seu próprio conhecimento, sozinhos ou com os pares;

e que os professores:
- são meros guias,orientadores (tão antiga que é esta meia-verdade!);
- são recursos, que os alunos solicitam no caso de precisarem;
- são gestores da tecnologias, o seu lugar é nos bastidores;
- além de que não sabem tudo!

Além disso, o conhecimento (e, em particular, o conhecimento  disciplinar):
- é apenas um meio para construção de competências adequadas ao século XXI;
- deve dar lugar à expressão das emoções, dos afectos e dos sentimentos, isso, sim, fundamental na "sociedade do... conhecimento!";
- não tem grande sentido ser aprendido, pois acaba por ser esquecido;
- deve, quando muito, ser usado para "aprender a aprender".

Não esquecer também que:
- as fronteiras entre as disciplinas têm de ser esbatidas ou anuladas, em favor da interdisciplinaridade. Logo a Aprendizagem Baseada em Projectos (ABP), recomendada pelo Ministério da Educação como "o método", permite que, não havendo, por exemplo, um professor de Geografia, o de História possa guiar, orientar os alunos e vice-versa.

E, prodígio dos prodígios, temos a tecnologia digital, que, afirma-se com todas as letras, é muito mais eficaz do que os professores, além de que alegra os alunos, pois:
- o conhecimento está todo no google, na internet, basta pesquisar, o que torna a aprendizagem activa e, até, significativa; 
- os écrans, os robots, os hologramas, os registos faciais, as plataformas são muito mais respeitadoras da individualidade e dos ritmos dos alunos;
É a tecnologia que concretiza uma educação verdadeiramente "humanista".

No caso de as escolas não disporem das mais recentes e radicais "TIC", podem sempre socorrer-se dos materiais produzidos por empresas como as editoras escolares, que têm desde manuais a power-points, passando por planificações a longo, a curto e a médio prazo, bem como testes e fichas com as respectivas grelhas de correcção. Ou a RTP que tem um sítio ("RTP ensina") com tudo o que é preciso para aprender... E, poderia continuar... no muito que é disponibilizado "graciosamente" por entidades não escolares, tendo em vista "a melhor aprendizagem dos alunos". 

Sem professores o sistema funciona! Mais, livres dos professores, os alunos serão, enfim, críticos e criativos, imaginativos, empreendedores... passados alguns anos, serão os adultos verdadeiramente preparados para o futuro!

Certamente, o leitor terá percebido o tom de ironia que usei até aqui. Que outra estratégia se pode usar para lidar com a incoerência de quem nega veementemente a importância dos professores na aprendizagem dos alunos mas que, agora, quando faltam professores, se manifesta, com a mesma veemência, contra a falta de professores?

Esta é uma ocasião adequada para perguntarmos: para que queremos, afinal, os professores nas escolas?

7 comentários:

Abraham Chevrolet disse...

Ninguém se lembra da Telescola?
Demos a volta e lá retornamos!
Fiat Lux !!!

Helena Damião disse...

E as emissões pela televisão da aulas do "ano propedêutico" (acompanhadas de manuais elaborados no Ministério da Educação), no início dos anos de 1980, o ano de escolaridade entre o "serviço cívico" e o 12.º ano.
MHD

Anónimo disse...

Neste modelo de ensino planificado a régua e esquadro, como é o nosso, os professores têm o papel principal. Evidentemente que em Portugal não falta gente muito mais sábia do que os professores, que mais não seja a multidão dos diplomados pela universidade da vida, com muitos que ainda se lembram do tempo em que uma sardinha tinha de ser dividida por três, mas para elaborar planificações em folhas excel, de longo, médio e curto prazo, com uma para cada aula, grelhas de avaliação objetiva com mil e um parâmetros, que abarcam, para além dos conhecimentos clássicos, todas as vivências emocionais e sentimentais de cada um dos alunos em sala de aula, e critérios de correção de testes tão científicos que têm mais valor do que o próprio saber avaliado, atualmente os professores são os únicos profissionais com a indispensável formação em Ciências da Educação.
Com a desvalorização do conhecimento em meio escolar, os burocratas da educação já só precisam dos professores que planeiam e fazem muitas grelhas!

Anónimo disse...

Caro anónimo
Os professores têm de ter sempre um papel de destaque, principal se quiser, na educação formal.Porquê? A educação e a aprendizagem ocorre na relação pessoal entre quem sabe (embora o professor não saiba tudo, tem de estar científica e pedagogicamente preparado) e quem está a aprender.
E se os professores estão desvalorizados, podem culpar-se. Nunca lutaram pela dignificação do ensino ( não estou a dizer carreira, embora estejam associados), deixam que os alunos mandem e TÊM MEDO DOS DIRETORES E DA TUTELA. Vivemos um tempo em que falham os ideais e, tristemente, também falham na educação.

Anónimo disse...

Fazer imensas grelhas não é bem pedagogia - é mais serralharia!

Ana nim, Ana não disse...

O melhor é dar notas a olho, sem grelhas.

grealha disse...

Claro, claro... Quando um encarregado de educação pede fundamentação de nota do seu bijú, no âmbito da deplorável burrice ou da competição nefasta entre os melhores, o pessoal docente deve responder que deu a notinha porque sim e porque sei lá e me parece, dizendo que corrige os testes (se os fizer) ao calhas.

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