quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O QUE É VER? 4.ª E ÚLTIMA PARTE DA ENTREVISTA A MARGARIDA ALVES


(...)
Margarida Alves - Gostaria de colocar uma questão sobre a relação entre o tempo e a matéria, que é questão da  flecha do tempo, do crescimento da  entropia. Poderá falar acerca desta relação e dizer se a vida  pode ser vista como uma inversão do crescimento da entropia?
Carlos Fiolhais - Sabemos que o passado é diferente  do futuro. Há uma seta do tempo. Nós, seres biológicos, não podemos voltar atrás, e o Universo também não pode voltar ao Big Bang. Há  um antes e um depois tanto na vida como nos cosmos. Não se pode viajar no tempo, ou pelo menos parece ser extremamente difícil fazê-lo. No espaço não se passa isso, podemos ir de um sítio para o outro, para trás e para a frente. Portanto, o tempo é diferente do espaço, apesar de ser tratado matematicamente na teoria da relatividade tal como o espaço –  Einstein usou o  conceito de espaço  a quatro dimensões,  três de espaço e uma de tempo,  uma ideia que alguns artistas também consideraram naquela época.  Uma peculiaridade do tempo é a sua irreversibilidade. Portanto, uma questão fundamental é: de onde vem essa irreversibilidade? Temos algumas respostas a essa questão, mas são apenas parciais e nalguns casos desligadas. Quando analisamos as partículas constituintes da matéria, os quarks, os electrões e  os neutrinos e a relação entre eles,  que é  feita como disse através das forças, chegamos à conclusão de que, na escala microscópica, não existe tempo. As equações são reversíveis no tempo.
            O tempo só emerge quando  temos um grande número de partículas, quando  a matéria  é extensa, quando  existe suficiente complexidade. Temos de considerar não duas ou poucas partículas, mas  muitas.  É uma  propriedade global e não individual.  No  caso de existir um grande número de partículas, podemos fazer um filme e verificar que é fácil perceber qual é o princípio e qual é o fim:  o tempo corre numa certa direcção e não volta atrás. Este fenómeno é descrito por uma lei macroscópica, uma lei que diz respeito a sistemas de muitas partículas, a “Segunda Lei da Termodinâmica.” Esta lei introduz uma nova propriedade física chamada entropia, que nos permite distinguir o passado do futuro:  ‘num sistema isolado, isto é, num sistema em que não entra nem sai energia, a entropia, ou grau de desordem, tende a aumentar”. Pode haver flutuações estatísticas, mas serão insignificantes se o sistema for suficientemente grande, isto é, a lei só a aplica  a sistemas com muitos constituintes, sendo  uma lei estatística. A Segunda Lei  é facilmente observada no nosso dia a dia.  Dou um exemplo: colocamos uma gota  de tinta num copo de água e vemos que a tinta se espalha rapidamente. A tinta que estava antes num sítio vai ocupar todo o espaço da água e não voltará nunca a concentrar-se no mesmo sítio inicial. Um outro exemplo: numa caixa com gás em que as moléculas do gás estão inicialmente todas do lado direito e do outro lado, separado de início por uma parede, está o vácuo, as moléculas irão ocupar o espaço todo da caixa e não vão nunca voltar á situação inicial, criando o vácuo outra vez onde ele já esteve. Portanto, existem, nos sistemas macroscópicos, situações de impossibilidade física. Seriam viagens para trás no tempo,  que são impossíveis.
            A questão é: como é que se concilia a visão microscópica em que há reversibilidade com a visão macroscópica em que há irreversibilidade. Qual é o tamanho necessário para poder emergir a irreversibilidade? Parece, pelo que disse, que a irreversibilidade é um problema de escala. É como se o tempo não existisse para um indivíduo, mas existisse para a colectividade dos indivíduos. Estou a utilizar o termo “indivíduo” não no sentido antropológico, mas sim físico. Para uma só partícula  não existe tempo, para um conjunto delas  já existe,  como uma propriedade comum. Recusando a ideia do tempo ligado a uma  escala mínima, o químico belga Ilya Prigogine introduziu nas equações do muito pequeno termos em que a irreversibilidade já aparecia a priori. Existem, portanto, várias propostas para o problema. ..
            Enfim, o tempo é um problema não só científico como  filosófico: o que  é o tempo? Este é um problema com o qual  continuaremos confrontados, até porque há várias modalidades de tempo. Há o tempo físico, medido pelos  relógios, que é o que estou a tratar, mas há também  o tempo psicológico. Numa viagem, por exemplo, se eu estiver  a ter uma conversa interessante com alguém, parece que o tempo não passa enquanto os quilómetros passam. Não julgo  que esse tempo seja  redutível ao tempo físico.
Um parêntesis para acrescentar que a Segunda Lei da Termodinâmica é interessante do ponto de vista sociológico porque houve, nos anos 50 do século passado,  a famosa questão das “duas culturas.” O cientista e romancista inglês C. P. Snow afirmou que a Segunda Lei da Termodinâmica era desconhecida das pessoas dos  humanistas,  mas  que era tão  ignorante quem não conhecesse Shakespeare como quem não soubesse a Segunda Lei. Uma pessoa pode aprender como são as  mudanças nas sociedades humanas lendo as obras de Shakespeare, mas só pode perceber as  mudanças no mundo físico se souber a Segunda Lei.
            O tempo físico é ainda um mistério. Por que é que à pequena escala não há-de haver tempo? Donde vem em última análise  a diferença entre passado e futuro? Mas o mundo é como é, e não é como gostaríamos que fosse. Para o electrão, a vida poderá ser eterna, igual para a frente e para trás no tempo. Para os seres como nós, a vida tem um termo, embora os seres vivos não estejam de modo nenhum a violar a Segunda Lei da Termodinâmica. Há construção de ordem nos seres vivos. Mas eles não são isolados, pelo que  não se lhes pode aplicar a Segunda Lei. A entropia pode diminuir em sistemas não isolados, e é isso precisamente o que acontece nos seres vivos. A entropia diminui devido à interacção com o meio exterior. Nenhum ser vivo pode ser vivo sem um “diálogo” permanente com o exterior, que se faz de várias maneiras, em particular através da alimentação que lhes fornece energia. Se experimentarmos não comer, não conseguiremos assegurar  as nossas funções vitais,  deixa de haver a possibilidade de manutenção da nossa ordem biológica.  Mas  será que  não apenas é possível a ordem, mas existe um imperativo de ordem para sistemas afastados do equilíbrio?  Será que há uma espécie de Anti-Segunda Lei para sistemas não isolados, isto é, que a entropia tem mesmo em certas circunstâncias de diminuir?
            Sabemos pouco sobre sistemas complexos, nos quais  há trânsito de energia. Existirá alguma  obrigatoriedade os seres vivos funcionarem como funcionam? Só poderá existir vida tal como  a conhecemos na Terra, com a sua maquinaria de proteínas, todas elas feitas a partir de um código universal, gravado no ADN? Sabemos que existe uma grande unidade entre todos os seres vivos que é assegurada pelo ADN. Por isso é que desconfiamos que houve um primeiro ser vivo, que se reproduziu e iniciou o caminho para a actual biodiversidade. O código da vida  é o mesmo em todo o lado, seja um eucalipto seja eu próprio. Plantas e animais muito diferentes têm coisas comuns, por exemplo a constituição celular.  Com as quatro letras do alfabeto da vida  podem-se escrever infinitas combinações. A verdade é que nós só conhecemos seres vivos na Terra, não conhecemos outros, pelo que só podemos especular sobre outras possibilidades de vida, outras formas de assegurar as propriedades fundamentais dos seres vivos (metabolismo, reprodução, adaptação). Uma grande questão da ciência neste momento consiste  em saber se existe vida fora da Terra e, em particular, se existe vida inteligente. Se ela existir, será semelhante à que conhecemos? Se existe vida inteligente, serão os ET capazes de fazer o que nós fazemos? Serão eles, por exemplo,  capazes de fazer arte? Eu acredito que sim, que se há inteligência haverá arte: a arte é uma manifestação de inteligência. A arte  é uma tentativa inteligente  de apreensão do mundo. Através da  arte o artista captura o mundo e comunica-o. As regras de captura e os modos de comunicação próprios da arte, não sendo inteiramente livres, são mais livres do que as regras e modos  próprias da ciência, que é outra forma de apreensão do mundo. Arte e ciência não são de modo nenhum incompatíveis porque são dimensões humanas que coexistem na mesma humanidade e que podem coexistir  no mesmo indivíduo. Um indivíduo que seja  capaz de exercitar o método científico pode ter sensibilidade estética e pode ter capacidade artística.  A sensibilidade estética  é algo que nos caracteriza a todos os seres humanos, é algo que partilhamos. Uma questão muito interessante é a origem biológica da arte. Por exemplo, por que é que o nosso cérebro gosta de música? Por que é que, em geral,  o nosso cérebro gosta de arte? Será que outros animais, em particular os primatas, também gostam de música? São questões que estão a ser estudadas. Que inteligência têm os animais?  E que sensibilidade têm os animais? Desmond Morris, o autor do Macaco Nu, tem um livro traduzido em português, O Macaco Criativo, que mostra e discute pinturas feitas por macacos. Alguma pintura experimental feita por seres humanos poderá parecer indistinguível da dos macacos. Sabemos, porém, que os seres humanos têm características únicas e é tarefa da  ciência saber quais elas são.
            Isso leva-nos a um outro capítulo da ciência, muito actual, que é o da inteligência artificial. É muito interessante saber se algumas das  capacidades do nosso cérebro podem ser colocadas em novos instrumentos, aos quais chamamos cérebros electrónicos ou robôs. Nós estamos a experimentar para ver o que é possível. Uma coisa que já sabemos é que os robôs são capazes, tão bem como nós e até nalguns casos melhor, de identificar  padrões. Os grandes avanços da inteligência artificial nos últimos anos  consistem em larga medida  no reconhecimento rápido e correcto de  padrões. Nós temos, por exemplo,  uma boa capacidade de reconhecer imagens. Somos muito rápidos a ver e a processar  imagens. O nosso olho e o nosso cérebro evoluíram nesse sentido . As máquinas não eram capazes de o fazer bem, mas agora, graças a avanços no hardware o nos software, já são.  Neste momento, elas já são mais rápidas do que nós nessa tarefa. Cometem erros, como nós cometemos, mas mesmo no caso de imagens científicas, como imagens de galáxias ou  de pulmões, as máquinas já conseguem ver  e classificar melhor do que nós. É verdadeiramente extraordinário… O  reconhecimento do rosto humano é feito,  neste momento, pela inteligência artificial com relativa facilidade, o que leva a aplicações securitárias  como a omnivigilância, o reconhecimento facial para acesso a cartas instalações, etc. Até já conseguem  conhecer caras de primatas, de chimpanzés, um é fulano e outro beltrano, só pelos retratos, apesar de serem muito parecidos. As máquinas não fazem apenas o registo e a salvaguarda de imagens, mas são capazes de comparações e de identificações sofisticadas.
            O registo fotográfico digital democratizou-se na actualidade através dos telemóveis. Graças a uma evolução prodigiosa da técnica fotográfica, hoje captam-se milhões de imagens em cada segundo. A fotografia forneceu um grande contributo à ciência no século XIX, mas ela vem da ciência, uma vez que ela foi conseguida através das lentes e sistemas ópticos.  Desenvolveu-se uma arte a partir dessa técnica. O mesmo aconteceu a seguir com as imagens em movimento, o cinema. Estas são  artes completamente novas proporcionadas por tecnologias oriundas da ciência. Há aqui claramente uma dependência da ciência de novas formas de arte, o que constitui mais uma ligação entre ciência e arte.
No mundo digital, além do fácil processamento de imagem acresce a possibilidade da sua cópia e envio rápido. Nas fotografias analógicas era caro fazer cópias e era caro enviar as cópias. Agora é fácil copiar e enviar. A Kodak acabou porque hoje basta  carregar num botão para  que uma  imagem digital seja enviada para qualquer sítio mantendo o  original. Toda a gente fotografa tudo e mais alguma coisa, mas provavelmente a maior parte das imagens não voltará a ser vista por ninguém. Se estiverem nalgum registo acessível elas poderão, porém, ser “vistas” por máquinas. Aliás, os smartphones já classificam fotografias, agrupando-as pelo espaço e tempo em que foram tiradas, pelo tipo, pelo seu conteúdo, etc. Há não só uma grande facilidade de captação de imagens como uma grande  facilidade do seu armazenamento, processamento  e  comunicação. A maior parte do espaço dos  nossos discos de computador está, de resto, ocupado com imagens, sejam elas fixas (fotografia) ou  animadas (cinema). A Internet está repleta de imagens: se atendermos ao tamanho da informação, é quase só imagens. veja-se o êxito do Instagram, do Pinterest, ou mesmo do Facebook, aplicações onde as imagens  dominam. Enfim, percebe-se esse êxito porque os humanos são muito rápidos a ver imagens. . Uma pessoa olha para uma certa imagem e  percebe-a imediatamente.  E o nosso cérebro é  facilmente impressionável com estímulos visuais.  Um texto não: demora a ser lido e percebido, tem de o ler até ao fim. Nós somos o que somos, conseguimos o que conseguimos no mundo, não apenas por causa dos nossos olhos, mas também e principalmente por causa do nosso cérebro. E o cérebro, para funcionar na sua plenitude, criando e comunicando ideias, precisa da linguagem e, por sua vez,  a linguagem precisa das palavras. A fotografia é rápida, mas  o entendimento humano não pode ser feito com só com imagens. A literatura é lenta. A filosofia é lenta. A política é lenta. Nós não podemos fazer filosofia só com imagem. Também não podemos fazer política só com imagens, embora  infelizmente seja  isso que esteja a acontecer. 
Margarida Alves -  Falou da fotografia como uma das artes? Aí o mundo é capturado a duas dimensões. E a tridimensionalidade?
Carlos Fiolhais - A captura da tridimensionalidade é uma questão muito interessante.  O nosso cérebro está preparado para perceber a profundidade. Mas existem várias questões. Como é que o nosso cérebro captura o 3D?  E em que medida o 3D é relevante para dar contas das formas espaciais, na ciência, para objectos de qualquer tamanho, microscópicos ou macroscópicos?  E, na arte, é claro que a pintura capta, graças à perspectiva, a tridimensionalidade, mas a escultura vive no espaço a três dimensões?  Não há dúvida de que uma representação  plana pode iludir.  As fotografias podem iludir. Muitas vezes é preciso considerar  a profundidade.. Uma imagem fotográfica por  vezes não nos  diz correctamente  o que é uma certa coisa.  A ciência sabe isso e cada vez mais tenta extrair as suas  conclusões a partir de representações  tridimensionais, imagens estereoscópicas por exemplo.
Termino como  comecei: falei da Revolução Científica logo no início e vou terminar da mesma maneira.  Galileu olha para a Lua com o telescópio em 1609. Isso passa-se mais ou menos um século e meio depois de a perspectiva ter entrado na arte. A perspectiva nasceu  no Renascimento italiano, o tempo que precedeu a Revolução Científica. Leonardo da Vinci, que faleceu há quinhentos anos, era um mestre da perspectiva,  o  seu “Tratado da Pintura’” refere as leis da perspectiva. Antes dele,  Filippo Brunelleschi,  Leon  Alberti  e outros introduziram a perspectiva na pintura, e essa mudança é uma nova forma de ver o mundo. Começar e ver o mundo a três dimensões foi uma mudança anterior à Revolução Científica que lhe preparou o caminho.  Há na perspectiva  uma componente científica no sentido em que, para captar a tridimensionalidade, é preciso usar a geometria.  Alberti escreveu  um tratado geométrico da perspectiva, De Pictura,  e os artistas que o leram perceberam a importância da nova técnica. A propósito da geometria, há todo um conjunto de discussões que nos poderiam levar muito longe sobre a chamada “razão dourada”, um número relacionado coma geometria a que alguns atribuem propriedades místicas. Essa tentativa de matematização da estética é, na minha opinião, um  caminho errado. Mas há muita gente que pensa que  é possível encontrar  uma forma matemática para a estética, explicam o Partenon e a Vénus de Milo com base na razão dourada. Acho que essas tentativas são  muito forçadas. Um dia o arquitecto suíço  Le Corbusier encontrou-se com o físico Einstein e, como estava muito  interessado pela razão dourada,  perguntou ao sábio a sua opinião.  Einstein teve uma resposta genial: “o senhor está à procura de uma forma que torna o belo fácil e o feio difícil. Ora isso dificilmente pode existir.”  Por outras palavras, o belo será para nós sempre difícil. No entanto, é  fácil, muito fácil, para a Natureza.


1 comentário:

Rui Baptista disse...

Sobre o conceito de tempo, lembro-me de Santo Agostinho que ao lhe ser perguntado o que era o tempo, respondeu (cito de memória): "Se não me perguntarem o que é o tempo, eu sei o que é o tempo; se me perguntarem o que é o tempo eu não sei o que é o tempo". Uma vez mais, o Professor Carlos Fiolhais descomplica o que é complicado, condição tão necessária aos verdadeiro pedagogos!

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