terça-feira, 2 de março de 2010

Apoios do ensino especial

Com a devida vénia, reproduzimos um texto da autoria de João Lopes, professor da Universidade do Minho, enviado ao jornal Público, a propósito de editorial recentemente publicado sobre os Apoios do Ensino Especial.

Não pretendendo discutir a questão do ensino especial propriamente dito, parece-me importante questionarmo-nos sobre a razão pela qual se procura sistematicamente e com tanto afinco incluir a hiperactividade e a dislexia na educação especial? E porquê misturar isso com o slogan da escola inclusiva?

A resposta mais óbvia é que se insiste, contra toda e qualquer evidência empírica disponível, em favorecer uma perspectiva médica do ensino/aprendizagem, em particular no que diz respeito aos problemas de aprendizagem da leitura e escrita (não vou ocupar-me aqui da hiperactividade, embora aconselhe as pessoas a, antes de se pronunciarem peremptoriamente sobre este assunto, consultarem a literatura especializada, portuguesa e estrangeira).

Por outro lado, seria interessante que alguém explicasse que tipo de apoio tinham os alunos com problemas da leitura (os erradamente chamados disléxicos) antes da alteração legislativa referida na notícia. A sugestão de que o apoio existia e foi retirado, é simplesmente falsa. De forma organizada (organizacional) esse apoio não existia, não existe e muito provavelmente continuará a não existir. Ainda assim, neste momento, em muitas escolas, há uma maior preocupação de sinalização e de intervenção junto de alunos com dificuldades, felizmente sem ter que se esperar por diagnósticos de dislexias, nem por autorizações de Direcções de Educação. E muito menos – felizmente – sem ter que se esperar por um ensino especial que vem tarde e a más horas e cuja utilidade é desconhecida (seria interessante que fossem fornecidos dados sobre os brilhantes resultados que o ensino especial obteve nos anos em que “havia apoio”).

Por ora e para não ocupar demasiado espaço, pretendo apenas demonstrar que os modelos médicos aplicados às questões de aprendizagem constituem, eles sim, uma verdadeira patologia social, incapaz de ajudar os alunos quando eles precisam. A medicina nada tem a dizer sobre este assunto, tornando-se simplesmente inaceitável que haja tanta gente a tentar patrocinar má ciência e caricatos modelos em que causas, características e intervenção nunca casam e nunca casarão. A este propósito, cinco pontos têm que ser devidamente realçados:
(a) não existe qualquer evidência de afecção cerebral (brain injury) em alunos com problemas de aprendizagem;
(b) os modelos explicativos da denominada dislexia não representam mais do que uma hiper-generalização a partir de sujeitos atípicos e adultos;
(c) a neuropsicologia (área da medicina que com maior persistência invade este território) tende a considerar como clinicamente significativos (de dislexia) sinais ou sintomas que têm uma taxa de incidência tão elevada, que virtualmente todos os sujeitos apresentam pelo menos um ou dois desses sintomas;
(d) a perspectiva neuropsicológica da dislexia e das dificuldades de aprendizagem é caracterizada por um elevado nível de inferência que se auto-dispensa de demonstrar a sua validade;
(e) não se conhece qualquer sugestão inerentemente neuropsicológica que apresente eficácia igual ou superior às já há muito tempo conhecidas estratégias eficazes de instrução (com filiação na educação e não na medicina, evidentemente).

Por tudo isto e ainda por razões que por falta de espaço não se desenvolvem aqui, as abordagens neuropsicológicas aos problemas de aprendizagem, de entre as quais a “dislexia” constitui porventura a mais representativa categoria, são irrelevantes para uma classificação eficaz, imateriais para uma intervenção eficaz, fornecem uma ideia errada sobre condições do cérebro para as quais não existe evidência sólida, e são potencialmente prejudicais, porque sugerem erradamente que processos ou estruturas físicas disfuncionais são a causa dos problemas de aprendizagem.

O arrastamento da questão da leitura para a genética e para a neurologia, tem-na desviado do seu campo óbvio e do único que plausivelmente a ela pode conduzir: o acto social do ensino-aprendizagem. E este desvio é tão acentuado e apriorístico que quando se postula que o mau ensino deve constituir factor de exclusão da dislexia, ninguém se dá ao trabalho de verificar se o sujeito foi bem ensinado. Parte-se simplesmente do princípio de que, se o sujeito esteve num grupo onde a maioria aprendeu a ler, é porque o ensino foi bom. E se o ensino foi bom, o aluno é que é mau (genética ou neurologicamente mau, bem entendido). Dir-se-ia que esta visão retrata um verdadeira fé em que o ensino grupal chega a todos da mesma maneira, desde que os sujeitos sejam minimamente inteligentes.

A dislexia, enquanto categoria ou doença não existe, porque a leitura se distribui num contínuo, não existindo pontos de corte que separem grupos de leitores entre si. Isto é simplesmente um facto, que muita gente reconhece (muita outra nem disto se apercebe) mas que finge ignorar, insistindo na mirífica ideia de um grupo de pessoas que comete erros que ninguém mais comete e que, enquanto grupo, apresenta característica únicas e idênticas.

Infelizmente, o que se vislumbra no estudo referido pelo Público, é um desejo de injectar mais professores no sistema de ensino. É um desejo legítimo, porque parte de organizações sindicais cuja obrigação é defender os interesses dos seus associados. O Estado, porém, tendo em conta as melhores práticas nesta área, deve rejeitar liminarmente as perspectivas médicas que inspiram estudo e deve ainda afirmar com todas as letras que as dificuldades de aprendizagem constituem um problema do ensino regular e não do ensino especial (o mesmo se deve dizer, aliás, da hiperactividade).

Termino lembrando que durante anos a fio houve muita gente no ensino especial que se empenhou em evidenciar que este não servia para nada e que tudo tinha que ser ensino regular (ou ensino inclusivo). Essas mesmas pessoas não se coíbem porém de clamar por ensino especial para disléxicos e hiperactivos, sem que consigam explicar onde está a patologia e qual o grau conhecido de eficácia do ensino especial na intervenção com estes sujeitos. No meio disto, continua-se a discutir os problemas dos professores, não dos alunos.
João Lopes

4 comentários:

OLiveira disse...

A grande maioria dos professores sente-se traída pelo seus sindicatos.
A grande maioria dos professores não se sente bem representada pelos sindicatos.
A grande maioria dos professores, como tal, não irá participar em acções levadas a efeito pelos que assinaram o acordo com o ministério da educação deixando de fora aspectos importantes como a contagem integral do tempo de serviço e a transição de estatutos, que prejudica de sobremaneira umas grandes dezenas de milhares de professores que se encontravam na 1.ºmetade da carreira docente.

Quando os sindicatos mandaram às malvas a exigência da contagem integral do tempo de serviço, pois isso não afecta os docentes mais antigos, perderam a confiança dos professores.

Ao contrário dos sindicatos, os professores não têm receio da avaliação.
Ao contrário do que os sindicatos quiseram fazer passar, os professores não têm receio de trabalhar.

Os professores apenas querem aquilo que qualquer trabalhador quer que é respeito, que é ter o seu tempo de serviço integralmente contado.

Os sindicatos defendem mal os direitos dos professores.

Fartinho da Silva disse...

Este texto é um hino à fé das "ciências" da educação!

O autor está de parabéns, conseguiu num breve texto demonstrar a enorme arrogância de quem professa esta fé. Só tenho pena de todos aqueles pais que acreditam na conversa da banha da cobra e que acabam por acreditar que o seu filho não aprende porque o professor não conseguiu encontrar as estratégias mais adequadas para o seu caso em particular. Enfim...

É por estas e por outras que continuo a afirmar que quem trabalha na "escola" pública o melhor que tem a fazer é concorrer para um bom colégio privado. Esta conversa mole não entra e muito menos o lobby que representa.

Carlos Pires disse...

Há uma maneira muito simples do dr. João Lopes justificar o que afirmou: ir leccionar 3 ou 4 anos para uma escola do 1º ciclo, permitindo que observadores independentes escrutinem o seu trabalho. Será que depois ainda escreveria coisas como as que a seguir transcrevo?

"ninguém se dá ao trabalho de verificar se o sujeito foi bem ensinado. Parte-se simplesmente do princípio de que, se o sujeito esteve num grupo onde a maioria aprendeu a ler, é porque o ensino foi bom. E se o ensino foi bom, o aluno é que é mau (genética ou neurologicamente mau, bem entendido). Dir-se-ia que esta visão retrata um verdadeira fé em que o ensino grupal chega a todos da mesma maneira, desde que os sujeitos sejam minimamente inteligentes".

Anónimo disse...

Manteria com toda a certeza, embora o acto seja completamente dispensável, dado que, em Portugal como noutros países, as pessoas que fazem os "diagnósticos" destas situações, que são usualmente psicólogos ou outros profissionais(nunca são professores), utilizam a definição clássica da DA, dislexia e afins, a qual exige expressamente que o ensino tenha sido adequado. Ora, o que se verifica por esse mundo fora mundo fora é que os diagnosticadores nunca tratam de verificar a qualidade do ensino, isto é, um dos pressupostos básicos em que assenta o seu "diagnóstico". A propósito, conhece algum que o tenha feito ou o faça por sistema?
Por fim, não se percebe o que é que eu ir dar aulas para a escola primária tem a ver com o diagnóstico, que é feito - insisto - usualmente por psicólogos - fora da escola. O que é que eu iria ver na escola, a propósito de diagnósticos, quando estes são feitos fora da escola? Não se percebe. Aliás, se eu fosse leccionar na escola, escrutinariam o meu papel como professor, nunca como o de diagnosticador de "dislexias".

João Lopes

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