terça-feira, 8 de junho de 2010
EXCELSA BIO-SINERGIA (1)
Nova crónica de António Piedade, saída no "Diário de Coimbra":
A cooperatividade é ubíqua à vida. Isto quer dizer, que é os seres vivos cooperam entre si, desde os as primeiras células, ao longo de pelo menos 3400 milhões de anos. Cooperam para quê? Para resolverem problemas que de outra forma e sozinhos não seriam capazes de resolver, pelo menos tão eficazmente. Ou de outra perspectiva, cooperam para se ajustarem finamente às adversidades ambientais, tendencialmente no sentido de uma maior eficiência energética, com um resultado final sempre na mira: conseguirem sobreviver e propagar os seus genes. Por outras palavras, garantir uma eficiente organização e transmissão de informação bioquímica/biofísica com um mínimo de gastos energéticos e de assimilação de matéria-prima, como sejam biomoléculas ou radiação electromagnética (luz solar, exemplo principal).
Há muitas evidências de que a célula evoluiu no sentido de manter um estado de energia interna mínimo, com um determinado desequilibro químico dinâmico, de forma a produzir a maior quantidade de trabalho útil para a sua sobrevivência. Trabalho significa aqui, entre outras coisas, a assimilação de matéria-prima criteriosamente seleccionada para o seu interior, o movimento de um cílio que propulsione a procura de alimento ou a fuga do perigo, a síntese de biomoléculas próprias e necessárias a uma função específica e competitivamente valiosa, a duplicação da sua informação genética e estrutural para originar duas cópias idênticas de si. E tudo isto com um concomitante aumento de desordem (entropia) no meio envolvente. Aliás, a segunda lei da termodinâmica mostra que a seta do universo aponta para o aumento da entropia. Logo, à manutenção de uma estrutura extremamente “arrumada”, como é a célula, tem que corresponder um aumento de desordem no exterior dela. Quando a célula já não consegue manter este estado “livre” de aumento de entropia, morre.
É interessante verificar que a evolução da vida está salpicada com exemplos de cooperação para executar melhor está “transacção termodinâmica”. Células que se associam em colónias, inventando seres pluricelulares, com distintas diferenciações (células protectoras – pele; células contrateis – músculos; etc.) para a execução de trabalhos ou funções especificas. Numa cooperação dita sinérgica. Isto é, uma cooperação em que o efeito retroactivo do trabalho minuciosamente regulado e coordenado de vários subsistemas celulares permite executar tarefas progressivamente mais complexas com um mínimo de energia, impossíveis de realizar com eficácia igual por cada uma das partes isoladamente. Como se costuma dizer, o resultado é “maior” do que a soma das partes e, tal como escrevi noutro lugar, a vida tem uma álgebra própria.
É possível encontrar na natureza muitos exemplos dessa cooperação sinergética. Entre eles, há um fascinante em múltiplos aspectos: o da relação simbiótica entre as células eucariotas e as mitocôndrias.
Apresento as mitocôndrias com aquilo que quase toda a gente sabe: São organelos intracelulares responsáveis pelo processamento final das substâncias ricas em energia (açúcares, gorduras) para uma forma de energia bioquímica “universal”, o ATP (trifosfato de adenosinia, um nucleótido), que a célula e o organismo de que faz parte (se for o caso) utilizam para os trabalhos mais diversos. Por exemplo, cerca de 25% do ATP produzido é “gasto" para manter os neurónios (células do sistema nervoso) activos, sem que o organismo “pense nisso"!
São autênticas centrais de transformação energética (“nada se cria, tudo se transforma”, para citar Lavoisier). Através de vias metabólicas conhecidas por ciclo de Krebs (ou dos ácidos tricarboxílicos), cadeia respiratória acoplada a uma fosforilação oxidativa e a beta-oxidação dos ácidos gordos, as mitocôndrias permitem às células retirar o máximo rendimento na conversão de combustíveis como a glicose em energia na forma de ATP. E fazem isso “libertando” dióxido de carbono e água. Como oxidante, ou carburante, o próprio oxigénio molecular. Aliás, precisamos de respirar oxigénio para que as mitocôndrias consigam operar na máxima eficiência.
Mas afinal, onde é que está a anunciada cooperação sinérgica? É que, ao que parece, as mitocôndrias foram outrora seres unicelulares. Algures na história da vida, parecem ter sido “capturadas” por células com núcleo como as nossas. E, em vez de uma digestão apetitosa, teve início uma “bela amizade" muito vantajosa para ambas as partes.
Mas esta é a história da próxima crónica...
António Piedade
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
13 comentários:
EXCELENTE!!! ^_^
Lanço a temática: as mitocôndrias ou os mitocôndrios? ;)
Outro exemplo da preponderância da entropia nos sistemas vivos, o ciclo da Ca2+-ATPase de Retículo Sarcoplasmático (para escolher uma das suas isoformas...): a transdução da energia, contida no residuo aspartico fosforilado por ATP, em trabalho (o transporte vectorial de dois iões cálcio). Pensa-se que esta transdução esteja associada a variações na entropia.
Em português: mitocôndrias. Em português do Brasil: mitocôndrios.
Venha lá a próxima crónica, com a teoria endossimbiótica: englobadas as mitocôndrias (bactérias capazes de usar oxigénio molecular como receptor final de electrões...) por células de maior tamanho mas com metabolismo mais antiquado, de tipo fermentativo, deram-se as "células comedoras" conta de que as "células fagocitadas" eram potentes máquinas de produzir energia útil (ATP). E vai daí, em vez de digeri-las passaram a fornecer-lhes o combustível (compostos orgânicos, como a glucose) e a receber em troca moléculas de ATP que as hóspedes lhes proporcionavam. E assim nasceu a célula eucariótica aeróbia, resultado de uma união tão feliz que se tornou indispensável para ambos os seres associados, que passaram a constituir um só. A seguir, a evolução seleccionou estas células e agregados delas para progressivamente se formarem todos os seres pluricelulares. Até nós, que agora procuramos compreender o processo.
Desculpe, Dr António Piedade, não resisti a meter aqui o bedelho. Mas, por favor, continue, porque terá muito para nos contar...
Será isto o que, em termos poéticos, se poderá chamar a saga das moléculas rumo à sua hominização ou antropização, alcançada 3400 milhões de anos depois da sua comprovada emergência no globo ? Que belo poema! JCN
Caro José Batista
Não tem de pedir desculpa. Eu é que agradeço o contributo. O tema é tão interessante que daria para uma conversa de muitos milhões de anos.
Cara "Vani"
Obrigado pela alusão a essa outra "manifestação" das leis da termodinâmica aplicadas à bioquímica. O exemplo fantástico da bomba de Ca2+ATPase, cujo funcionamento, com gasto de ATP, permite alternar entre os estados de relaxamento e de contracção muscular, que macroscopicamente se estende ao movimento, pela "simples" variação na concentração citoplasmática do catião Cálcio!
Caro José Castro Nunes,
Esta história da cooperação simbiótica entre a mitocôndria e a futura (actual) célula eucariótica aeróbica, dá um belo poema homérico. Nem imagina quanto.
E há ainda outra ainda mais fantástica e admirável: a das plantas. Também elas resultam de uma situação complementar à que descrevi e que será também tema de uma futura crónica. Estou a falar, claro está, da relação entre as células vegetais e os cloroplastos, estes funcionando como os mais eficientes colectores de energia solar alguma vez desenvolvidos neste planeta na via láctea plantado.
Cumprimentos a todos.
António Piedade
Sob o véu da poesia, ao Dr. António Piedade:
Que Homero, que Vergílio, que Camões
um dia há-de surgir para cantar
das células a saga... até chegar
ao ser humano em suas mutações?!
JCN
A Ca2+-ATPase e o sistema actomiosina são pura poesia eheheh. (Cada qual com o seu poema! :) ) O estudo termodinâmico do seu ciclo faz-se há anos e é já exaustivo; um dos maiores contribuidores é o Professor Leopoldo de Meis, do Brasil :), um grande e simpático senhor.
Segundo "ouvi" a um professor de Bioenergética, já há uns anos (mas, confesso que nunca aprofundei) o tema mitocôndrios vs mitocôndrias não trata de um português de portugal e português do brasil, mas sim de uma tradução de "mitochondrion" errónea, não sei muito bem qual nem como, desculpe... mas sei que há muitos colegas portugueses a utilizar o termo "os mitocôndrios" (tal como há colegas brasileiros a proferir "as mitocôndrias"), bem como "os enzimas". O que me foi dito, na altura, é que desde que se mantivesse a coerência,os termos poderiam ser indistintamente aplicados.
O próprio papel do ião Ca2+ como segundo mensageiro dava uma odisseia ;-). Daí que o papel da bomba de cálcio, que tantas isoformas tem, não se resuma à regulação da contracção muscular.
Terão os poetas que estimular o acordo entre os cientistas ?! JCN
O acordo entre cientistas será a morte da ciência ^_^
Donde se depreende... que a sobrevivência da ciência passa pela guerra entre os cientistas, "penso eu de que". JCN
Ironizando:
Se os cientistas um dia
todos o mesmo pensassem,
a ciência morreria,
só faltando que a cremassem.
JCN
Enviar um comentário