É estranho pegarmos num livro que já lemos e parecer-nos um livro novo, que nos apanha de surpresa e nos desvenda frases que, quase juramos, estamos a apreciar pela primeira vez. Porém os sublinhados e as anotações, numa caligrafia que reconhecemos ser nossa, garantem-nos que passámos por elas antes.
Nesse momento, não podemos deixar de perguntar: para onde foram, em que dimensão de nós se esconderam? Apesar de não conseguirmos descobrir quando ou onde nos detivemos nelas, como influenciaram a nossa vida, pressupomos estarem arrecadadas na nossa memória, terem-se, até, tornado um pouco naquilo que somos.
O conhecimento do que já foi conhecido, o distanciamento do que já foi próximo é ainda mais surpreendente quando passamos da leitura para a escrita que saiu da nossa mão. Vêm estas considerações, a propósito do casual (re)encontro com o Livro do Desassossego. Fernando Pessoa, na fala de Bernardo Soares, disserta da seguinte maneira sobre o fenómeno:
“Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? (…) encontro trechos que não me lembro de ter escrito – o que é pouco para pasmar –, mas que nem me lembro de poder ter escrito – o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. É como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas – mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.”
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4 comentários:
Um artigo bastante interessante e pedagógico para a sociedade em geral.
Nunca me hei-de esquecer aquelas frases das minhas professoras de, Português e Filosofia, quando me diziam; "saber ler é ler outra vez".Conselho que segui,lendo neste momento o mesmo livro, pelo menos,duas vezes o que gozo me dá porque acabo de ter outra percepção do antes
lido.
É neste sentido que leio este artigo o qual pena me deixa não chegar à soiciedade,qui ça se não mudariam os hábitos de leitura.
Obrigados pela dica
António Santos
Encontro uma possível explicação nestes versos de poeta cujo nome não me ocorre no momento:
... ... ... ...
É de passos a dar que faço a viagem
E não de passos dados na paisagem
Já gasta de tanto a ver e ter de cor
... ... ... ...
Vergílio Ferreira disse:
A Consciência Débil da Nossa Autenticidade
A consciência que te acompanha no que vais sendo é o puro registo disso que vais sendo para o poderes ler, se quiseres, depois de já ter sido. Mas no instante de seres o que és, o que és é apenas, por uma decisão anterior ao decidires. O que és é-lo onde a tua realidade profunda em profundeza obscura se realizou. O que és é-lo no absoluto de ti. A consciência testifica-nos apenas como o ser privilegiado que sabe o que é por aquilo que vai sendo e pode assim reconverter-se à posse iluminada disso que vai sendo. A consciência constata mas não interfere senão para se não ser mais o que se foi, ou mais rigorosamente, para se não querer ser o que se é - o que é ser-se ainda, embora de outra maneira.
Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos actos que me presentificam e da consciência desses actos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que na origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam.
Vergílio Ferreira,
in 'Invocação ao Meu Corpo'
"... pressupomos estarem arrecadadas na nossa memória, terem-se, até, tornado um pouco naquilo que somos."
Aquilo que lemos, mesmo sem termos consciência disso, acumula-se na memória das nossas células pelos anos fora e "faz-nos", sem dúvida nenhuma.
Mas concordo com a estranheza que causa lermos pela segunda vez como se o estivéssemos a fezer pela primeira vez. Também coloco a hipótese de tal se dever não só a nós próprios, como à riqueza da própria obra.
Mas verdadeiramente estranho é não reconhecermos aquilo que escrevemos em tempos idos, como se de outra pessoa se tratasse. Esse fenómeno, que não entendo mesmo, chega a ser desconfortável.
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