quinta-feira, 6 de agosto de 2009

ARGAMASSAS E BETÕES


Post convidado de Jorge Lourenço, professor no Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, que é uma versão ligeiramente editada de uma lição que aí proferiu, onde a propósito de materiais de construção aborda questões do ensino superior politécnico (na foto, o Museu da Fábrica Maceira-Liz de Leiria). O autor já nos tinha dado para publicação aqui um texto sobre as catedrais góticas.

A história dos ligantes e dos produtos obtidos por acção destes remonta aos ensinamentos de Prometeu [1]. Valorizamos estes materiais em virtude da importância das suas funções, do seu fabrico e das suas técnicas de aplicação. Mas, se este assunto é tão importante, como devemos ensiná-lo? Há, para isso, que atender a dois aspectos essenciais:

i) Quem são e o que serão alunos, formados num ambiente de mudanças e de crises?
ii) E quais as melhores ideias para ensinar estas matérias?

i) Em relação aos jovens que demandam a engenharia, há uma enorme diversidade de intenções e uma grande dispersão dos níveis de saber, que dificultam uma transmissão de conhecimentos adequada universal. Muitos são vítimas de uma enorme e generalizada irresponsabilidade paternal e da grande incompetência das pessoas que têm gerido o ensino. Muito se fala e pouco se acerta, a julgar pela insuficiência de cultura e de saberes fundamentais adquiridos em Física, Matemática e Português. Há muitos vícios e pouco saber real. Os números forçados do “sucesso escolar” vêm confirmando cada vez mais que Mahatma Gandhi estava certo quando disse que “dissimular a ignorância é incrementá-la” [2]. No entanto, é neste mundo que trabalhamos e, passado algum tempo, todos nos vamos entendendo. A certa altura, a ligação surge forte entre todos, quase como se fosse familiar. Mas o que serão, depois, os nossos ex-alunos? Isto constitui para nós, que julgamos prepará-los, uma angustiante dúvida [3].

ii) Quanto às nossas ideias sobre o ensino das engenharias, consideramo-las suficientemente alicerçadas para não sentirmos grande abalo em relação ao enorme conjunto de preconceitos “modernistas” que vão surgindo a balizar um subsistema do ensino superior, o politécnico, já integrado na “causa de Bolonha”:
- decretos e outros documentos sobre uma via profissionalizante, como se toda a formação não conduzisse a um futuro exercício;
- a “aquisição de competências”, que mais não são do que os conhecimentos que sempre se tiveram de adquirir para realizar qualquer actividade;
- a necessidade de um ensino “participativo”, que quase dispensa as mal vistas aulas teóricas;
- a “normalização” da vida estudantil, ao ponto de se contabilizarem o número de horas para fazer este ou aquele trabalho, para estudar esta ou aquela disciplina, procurando robotizar o processamento intelectual de cada um;
- a compactação em tempo reduzidíssimo das matérias essenciais, desconhecendo que é com elas que se alicerça o pensamento científico-tecnológico e que, portanto, necessitam de maior maturação;
- a confusão dos títulos académicos e o “espírito sintético dos cursos”, por motivos economicistas;
- pensar-se que o “saber fazer” é algo menor, por não perceberem que uma e outra coisa interagem [4];
- a certificação corporativa, alimentada por docentes de algumas escolas superiores, que assim avaliam em duplicado;
- não havendo qualquer formação humanista no ensino superior tecnológico, a injecção de cursos de ética e deontologia, semelhante à obrigação dos jovens a frequentar um dia de “Defesa Nacional”.

São muitas as situações que mostram um “rei nu”, que só uma inércia comodista nos impede de assumir uma atitude mais imperativa: “Este rei está, há muito, nu!”

Independentemente do subsistema de ensino, devemos ensaiar uma formação global, isto é, devemos agrupar os conhecimentos culturais com os de ciência e tecnologia, nunca esquecendo a experimentação.

Também no domínio das argamassas e dos betões é imperativa uma abordagem cultural, conhecendo a evolução destes produtos, entendendo os processos de produção e inserindo-os na vida. Vejamos como é importante conhecer a evolução dos ligantes e dos produtos que as utilizam.

O fabrico das argamassas, a partir da cozedura de pedras calcárias ou de gesso, é tão antigo quanto a elaboração de peças cerâmicas. Quando se conhece o tratado extraordinário redigido pelo arquitecto romano Marco Vitrúvio, que viveu no século I a.C., compreende-se melhor os conhecimentos milenares da arte de construir: No Livro Primeiro, Cap. IV - Da areia, lê-se “Para fazer edifícios, há que procurar a areia adequada...” e, no Cap. V – Da cal, lê-se “Depois da cal apagada deve misturar-se uma parte desta com três de areia...”

A evolução tecnológica nos séculos XIX e XX foi extraordinária. No nosso país, todo o futuro engenheiro civil deveria visitar o Museu da Fábrica de Cimentos da Maceira-Liz para aprender um pouco da epopeia da produção dos ligantes. Eram as margas da Gândara, as ferramentas e as máquinas agora obsoletas e o homem num trabalho muito mais penoso do que o de hoje. Em contraste, actualmente, e embora com esforços físicos menores, as relações de produção atingiram tal complexidade e dificuldade, que a qualquer jovem não bastam as ditas “competências” para resolver o seu futuro profissional.

Sem menosprezar os meios tecnológicos, que são escassíssimos nas nossas escolas, a preparação para qualquer actividade depende muito mais do formador e do formando do que de qualquer meio educacional. A imagem mostra o tipo de ambiente na relação aluno-docente [5] que propicia um desenvolvimento formativo: Hannes Meyer, o director que sucedeu a Walter Gropius, com dois dos seus alunos no terraço da Bauhaus.


Os alunos, se trabalharem ao longo do curso, não deverão sentir-se diminuídos pela falta de experiência profissional. Basta-lhes os saberes e as capacidades adquiridas, assim como a confiança por se haverem habilitado para enfrentarem o trabalho. Com uma boa formação global poderão enfrentar as dificuldades e dúvidas que lhes surgirão. O profissionalismo virá depois, a seu tempo, com a vida prática.

No domínio dos betões e das argamassas, assuntos há que deverão ser abordados não só de acordo com o state of the art, mas também de um modo prospectivo. Entre eles realçamos:

- A compacidade dos materiais granulares, nas suas mais variadas misturas. Os conceitos de compacidade das misturas de agregados e ligantes estiveram sempre presentes em qualquer composição de argamassas ou de betões, desde as experiências de Feret (fins do século XIX), até aos novos desenvolvimentos de Acker, Baron e Malier (século XXI).

- As reacções de endurecimento dos diferentes ligantes, associado às diferentes adições. Deve-se entender o que se passa no processo de endurecimento dos diferentes ligantes e na melhoria destes desempenhos, com as diferentes adições.

- O extraordinário desenvolvimento dos vários adjuvantes, promovido pela indústria química. Se verificarmos a sucessiva redução da água de amassadura e soubermos que esta diminuição promove uma maior compacidade de betões e argamassas, começaremos a entender a evolução destes produtos.

- As questões reológicas das diferentes “massas”. Esta é uma questão que se relaciona com a viscosidade das diferentes massas, isto é, com a maior ou menor facilidade de escoamento. Assim, há diferentes medidas de consistência e, neste domínio, também se evoluiu para produtos cada vez mais interessantes, como por exemplo os betões autocompactáveis.

- A substituição dos ligantes existentes, por outros (diferentes resinas, geopolímeros, etc.). Nas argamassas, a possibilidade de trabalhar com produtos mais flexíveis e resistentes levou-nos a resinas de reacção ou outras em dispersão aquosa. Por outro lado, a compreensão de que o fabrico de cimento é responsável por excesso de emissões de CO2, levou cientistas a procurarem outros ligantes de natureza mineral, menos prejudiciais ao planeta.

Estas matérias só podem ser assimiladas se houver a possibilidade de estudar, em laboratório, os constituintes e, depois, aí, produzir diferentes argamassas e betões; e, a seguir, determinar-lhes as suas propriedades mais importantes para a sua aplicação na construção. Isto só é possível se houver apoio a estas acções e tempo para que os alunos contactem com estes materiais. A escolha destes, a sua aplicação, o diagnóstico de falhas de fabrico ou aplicação, são da responsabilidade do engenheiro civil. Para isso, é indispensável formação.

A formação tecnológica será a mais difícil de transmitir pelas dificuldades que as escolas sentem de complementar o seu ensino com a ligação ao mundo do trabalho; eis alguns dos factores: indisponibilidades, dificuldades de concertação com as empresas, dispersão das diferentes funções, rápida evolução tecnológica. No entanto, um esforço deve ser desenvolvido no sentido de conhecer os diferentes equipamentos, as técnicas de fabrico e de colocação, assim como a capacidade de entender o layout de um centro de produção.

O esforço de ensinar, um dos mais nobres da função humana, deve ser realizado pelos melhores; e, para que estes o façam, devem ter vivido na produção aquilo que ensinam. Tadao Ando [6] diz-nos: “é impossível convencer os outros apenas com o conhecimento, sem experimentar aquilo de que se fala.”.

Notas:


[1] Idealismo baseado na mitologia grega. Prometeu foi o Titan que deu o fogo aos humanos, símbolo da aquisição do conhecimento pelo homem. Foi este fogo que cozeu o barro e que transformou a pedra em pó ligante.
[2] Humanista indiano que, pela sua intransigente actuação pacifista, soube derrotar o império colonialista britânico.
[3] Esta preocupação solidária com o futuro dos alunos é magistralmente descrita pelo poeta brasileiro Vinicius de Moraes num texto que escreveu depois de um encontro com alunos politécnicos. Ele confessa esta dúvida sobre o devir: “Só sei que diante de mim existe aberta uma grande porta escura, e além dela é o infinito!”. No entanto, logo a seguir, encontra motivações para o futuro dos jovens: “Mas ao olhar mais uma vez seus rostos pensativos, …, meu coração subitamente se acendeu… E eu fiquei certo… que o meu amor haveria de protegê-los contra os males de viver.”
[4] Esta questão surgiu quando uma pessoa com responsabilidades académicas, em entrevista ao diário As Beiras de 27/3/07 fazia essa distinção de modo muito estanque. Para ele havia uns direccionados à “execução” e outros destinados às tarefas de “pensar” e projectar. Estas expressões dicotómicas poderão gerar alguma aceitação, mas não resistem a uma pequena reflexão. A falácia pode-se contradizer de muitas maneiras. Por exemplo, recordemos que Rómulo de Carvalho (o poeta António Gedeão) fazia, nas suas aulas, uma experiência de manipulação difícil, com o barómetro de Torricelli. Perguntamos: Este “pensador” “saberia fazer”, ou seria o “fazedor” que “sabia pensar”? Em nosso entender, a diferença entre os dois sub-sistemas de ensino superior poderá residir no aprofundamento dos saberes, mas todos, nos seus domínios, terão de saber e saber fazer.
[5] A Bauhaus foi uma escola de Artes e Ofícios alemã, que surgiu na primeira metade do século XX.
[6] Tadao Ando é um arquitecto autodidacta, que considera a experiência como a sua ferramenta mais importante. O betão era o seu material preferido: os painéis de 90 x 180 cm2, em betão de textura lisa, com seis furos para fixação da cofragem, são um elemento modular frequentemente repetido nas suas obras.

Jorge Lourenço

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente...Prof. Jorge Lourenço, outra coisa não seria de esperar de si..."o homem que faz poesia com o betão"...
Receba um abraço amigo
Pedro Alves (de Chaves)

Anónimo disse...

interessante!

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