quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Os ases do pedal


Terminada a Volta a França em bicicleta e iniciada a Volta a Portugal, o De Rerum Natura recupera um artigo de João Boavida, antes publicado no diário As Beiras.

O ciclista subindo a montanha, solitário, pedalando, pedalando sem fim, é a imagem do excesso do esforço face ao efémero do triunfo. Que só um alcança, mas que todos desejam. O homem vencendo a subida, que não termina, nunca, morrendo e ressuscitando a cada instante. Pelo esforço, pelo sacrifício sem medida o rei da montanha é a imagem da humanidade desde o mais fundo da sua origem e da sua luta.

Vem-me a paixão do ciclismo pelo entusiasmo que, na infância, era a Volta a Portugal. Com os primeiros altifalantes, logo pela manhã, a anunciá-la em ecos e papéis esvoaçantes: Recauchutagens Seiça e Leopoldo, amortecedores Koni e velas Champion, Mabor General (a borracha nacional), Couraça e Medicinal Couto, Beirão, o licor de Portugal. Ovomaltine e Farinha Amparo, se queres chegar à meta, mas a melhor de todas, era a Predilecta - para o avô, para a neta e também para o atleta.

Revoadas de folhetos que faziam da garotada gafanhotos pinchando em bulha aos papéis, como se fossem amêndoas. As Harley-Davidson da Polícia de Trânsito a varrer da estrada, com o seu alarme, mulheres faladoras, velhotes tresmalhados, cães distraídos ou inoportunos, e aumentando ainda, com o niquelado das botas altas, a excitação geral.

Mas que continuava a subir, sempre, à medida que se sucediam, como labaredas, ecos de que os corredores já tinham passado acolá, não podiam estar longe, já vinham perto, já estavam aí e com a sirene da outra Harley cortando o vento, aí estavam eles, como o Alves Barbosa de peito feito, à frente, comandando as hostes, e todos logo num enxame de aço, a mais pura leveza, num zut zut zut zut zut de cores traços manchas riscos, que nos cruzavam os olhos nos atravessavam os peitos entre gritos porque vira o Ribeiro da Silva, ou o Onofre Tavares, ou o Pedro Polainas, ou o José Firmino ou o Perna Coelho ou o Calquinhas ou, mais tarde, o João Roque e, anos depois, o Joaquim Agostinho, zut zut zut zut… o urgente era, naqueles relâmpagos, reconhecer alguns, ficar com essa glória para depois contar, trocar imagens, repetir, imaginar, recordar tais instantes de glória zut zut zut zut…. e pronto, já lá iam.

Alto, que a emoção continuava ainda com os carros de apoio em procissão, banheiras americanas com reclames colados na transversal e bandeirinhas a esvoaçar nas antenas: Benfica, Sporting, Águias de Alpiarça, Académico, Sangalhos, Porto, Ginásio de Tavira, umas caras mal barbeadas sob bonés coloridos e óculos Ray-ban, os aros das rodas, nos tejadilhos, rodando ao contrário como moinhos de vento. Ah, tanta emoção quase que fazia chorar… e de que alguns retardatários, quantas vezes, como o carro-vassoura e roer-lhe os calcanhares, bem perto andariam.

O ciclismo tinha então verdadeiras lendas. Como hoje, mas de que me valem estas agora? As maiores venciam os Alpes, atravessavam os Pirinéus, onde Federico Bahamontes era o rei. Vêm-me à memória os nomes: Andre Darrigade, Luison Bobet, Gino Bartali, Fausto Copi, Jacques Anquetil, Bernard Hinaut, Eddy Merckx, Felice Gimondi, e tantos, tantos. Serão para sempre, em mim, a imagem do homem no supremo esforço da sua superação.

Mas esta dimensão mítica está a mudar. Quintino Rodrigues, antigo ciclista, teve uma vez considerações interessantes. Falando dos atletas que, no seu tempo, ainda podiam «fugir desta religião dos sistemas tácticos», disse que hoje «o director leva a televisão no carro, vai a ver a corrida “in loco”, é capaz de tomar decisões sobre o ciclista. «Está quieto», ou «ataca agora», diz-lhe pelos intercomunicadores. «Antes, não» (…) o ciclista, segundo ele, tinha que ter uma visão mais solitária da corrida, e o próprio corredor tinha de estudar a corrida e tomar ele a iniciativa». Ou seja, hoje o ciclista está metido em jogos de computador que o técnico manobra pela consola que leva nos joelhos. É a estratégia e a táctica a imporem-se: avança cavalo, recua peão. E o electrónico, que já nos tomou a alma, está a entrar nos músculos dos ciclistas… e é se queres ganhar.

O mais interessante é que estas programações e estas obediências tácticas cerradas (no desporto, na produção, nos serviços) coincidem com os individualismos mais exacerbados e com os egoísmos mais duros. Quem compreende estes paradoxos?
João Boavida
Na imagem: Joaquim Agostinho

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