sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

O ANO DE KANT

Meu artigo no último JL:

Em 2024 celebram-se na Alemanha e em todo o mundo os 300 anos de Immanuel Kant. De facto, Kant nasceu a 22 de Abril de 1724 de uma modesta família de artesãos de couro na cidade então prussiana de Königsberg, hoje Kaliningrado, um enclave da Rússia entre a Polónia e a Lituânia. Haveria de morrer na mesma cidade em 12 de Fevereiro de 1804, há 220 anos, estando sepultado na catedral. O filósofo viveu, portanto, quase 80 anos, sem praticamente ter saído da área da sua cidade, sendo proverbial a sua rotina pontual de celibatário. No entanto, hoje é considerado um filósofo global, um dos maiores de sempre. O ano de 1781, quando fez 57 anos, foi o ano da «revolução kantiana», isto é, da transição do seu período pré-crítico para o período crítico. A obra Crítica da Razão Pura, publicada em Riga, separa esses dois períodos.

A sua fase pré-crítica caracteriza-se pelo cultivo das ciências, então chamadas filosofia natural. O ano do terramoto de Lisboa, 1755, é um marco no seu trajecto académico, uma vez que obteve então o grau de doutor na Universidade de Königsberg, com a tese De Ignes («Sobre o fogo»), em que discute o éter, o suposto meio que permite a transmissão de luz e calor no espaço. Esta não foi, porém, a sua primeira publicação. Tinha escrito, em 1746, Reflexões sobre a verdadeira estimativa das forças vivas; em 1754, Exame da questão de saber se a Terra, na sua revolução em torno do seu eixo, pela qual produz a alternância do dia e da noite, sofreu alguma mudança desde os primeiros tempos da sua origem (sofreu!), e A questão de saber se a Terra está a envelhecer, considerada fisicamente (está!); e, em 1755, a História Natural Geral e Teoria dos Céus. Este livro, publicado em Königsberg e Leipzig sem indicação de autor, é mais do que um tratado que compila a física newtoniana: avança hipóteses novas, que se revelariam fecundas: o sistema solar nasceu da condensação de uma nebulosa em rotação (mais de quatro décadas depois Laplace sustentaria o mesmo, sendo a teoria chamada de Kant-Laplace); e as estrelas existem em grandes agregados, a que ele chamou «universos-ilha» e a que hoje chamamos galáxias (só nos anos de 1920 o astrofísico Hubble estabeleceria as dimensões da nossa). O subtítulo deste livro é elucidativo: Ensaio sobre a constituição e a origem mecânica do Universo segundo as leis de Newton. Nos 200 anos da morte de Kant saiu uma tradução em português: Teoria do Céu (Ésquilo), com prefácio de Joaquim Fernandes.

Se descontarmos uma memória que era um requisito adicional para o doutoramento, os três trabalhos que Kant escreveu a seguir à tese doutoral foram sobre o terramoto de Lisboa: Acerca das causas dos tremores de terra, a propósito da calamidade que, perto do final do ano passado, atingiu a zona ocidental da Europa (1756), História e descrição natural dos estranhos fenómenos relacionados com o terramoto que, no final de 1755, abalou uma grande parte da terra (1756), e Considerações adicionais acerca dos tremores de terra que, há algum tempo a esta parte, se têm feito sentir (1756). Estes escritos estão reunidos no volume traduzido em português Escritos sobre o Terramoto de Lisboa (Edições 70, 2019, reeditado em 2023). O primeiro e o terceiros saíram num semanário de Konigsberg em Janeiro e Abril de 1756. O segundo, maior, foi publicado em Março autonomamente. 

Não se sabe bem quando Kant tomou conhecimento do terramoto de Lisboa – talvez ainda em Novembro pois a noticia correu célere –, mas o certo é que a descrição naturalista de Kant precedeu a discussão filosófica entre Voltaire (Poema sobre o Desastre de Lisboa, em Março de 1756; Edições 70, 2013) e Rousseau (carta de Agosto de 1956). A polémica é bem conhecida: Voltaire acusa Deus dos males do mundo, contrariando a visão de Leibniz de que vivemos no melhor dos mundos, e Rousseau vê em Voltaire um antropocentrismo ingénuo, dizendo que a culpa não era de Deus, mas sim dos homens que deviam conformar a suas construções às forças da Natureza. Como Leonel Ribeiro dos Santos salientou, Kant respondeu-lhes antecipadamente, abonando as posições de Rousseau. 

Apesar de ser crente, não concebia Deus como a fonte dos males do mundo: «Vemos, todavia, que inúmeros malfeitores morrem tranquilos, que os terremotos desde sempre flagelaram determinadas regiões, dizimando indiscriminadamente velhos e novos, que a parte cristã do Peru não é menos sacrificada do que a pagã e que muitas cidades foram, desde o início, poupadas a esta devastação, sem que, por isso, possam reivindicar qualquer estatuto de impunidade». O nosso papel devia ser compreender a Natureza: «A Natureza só pouco a pouco se descobre. Não devemos tentar adivinhar, com impaciência e mediante fantasias, o que ela nos esconde, mas antes devemos aguardar até que ela revele inequivocamente os seus segredos em claros efeitos». Adoptando a famosa formulação kantiana publicada em 1784 num periódico berlinense em resposta à questão «O que é o Iluminismo?», devíamos «ousar saber». Kant não só ousou saber, como se tornou professor, dando saber aos outros. Após o doutoramento ensinou, entre outros temas, Geografia Física: depois dos sismos interessou-se pelos ventos.

Em 1770, publicou a sua dissertação inaugural para se tornar lente de Lógica e Metafisica na Universidade de Königsberg (Sobre a forma e os princípios dos mundos sensível e intelectual). Só após prolongada maturação silenciosa, abriu a fase crítica, na qual, abandonando a filosofia natural, se embrenhou na metafísica. Esse abandono não foi, porém, total, pois continuou a interessar-se por temas científicos, como, na antropologia física, as diferenças entre homens e animais e as diferenças entre as raças humanas. Mas ficou separada a ciência da filosofia.

Em Setembro próximo, terá lugar um grande congresso internacional sobre Kant em Bona (por razões óbvias, não pode ser na cidade russa). Na antiga capital alemã, pode ver-se uma exposição articulada em torno das três questões que Kant enunciou na Crítica da Razão Pura: «Que podemos saber? Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar?». Elas condensam-se na grande questão, sempre em aberto: «Que é o homem?»

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