sábado, 24 de fevereiro de 2024

MERCANTILIZAÇÃO DA MEDICINA

(crónica de uma experiência pessoal)
Por A. Galopim de Carvalho

Como portador de doença coronária, vulgo angina de peito, de há uma vintena anos a esta parte, venho beneficiando do muito bom acompanhamento, por parte de cardiologistas competentes que regularmente (mais ou menos 6 em 6 meses) me têm acompanhado, prescrevendo os exames que se aconselham e a medicação adequada.

O último destes profissionais é uma jovem médica de um hospital privado (a ADSE, permite-me fazê-lo em condições de preço bastante acessíveis) que tem continuado esta rotina, ao estilo e ao ritmo próprios da mercantilização do acto médico que é, em teoria, reprovada pelo Código de Ética Médica, mas que, na prática, é a que existe nos hospitais privados, com administrações e accionistas naturalmente interessados no lucro. Em menos de meia hora esta doutora, delicadamente, mas quase sem falar comigo, cumpre, e bem, diga-se, as suas obrigações contratuais com a entidade que lhe paga o salário. Observa os exames que me prescreveu na consulta anterior, sempre calada, de olhos fixos no monitor e mãos a dedilharem no teclado. Ausculta-me com o estetoscópio, mede-me a tenção arterial e só me diz os valores se eu lhos perguntar. Uma vez mais, calada, dedilhando no teclado, prescreve os exames a fazer e a medicamentação habitual. Posto isto, levanta-se e, com um sorriso distante, estende-me a mão e abre-me a porta do consultório. E … até daqui a seis meses. O sistema funciona, mas, tristemente desumanizado, afastado de valores essenciais à vida em sociedade, como o afecto ou o carinho, tão apreciados nestas ocasiões.

À semelhança de muitos dos seus colegas, quando se me dirige, ela, uma jovem e eu um velho com mais de 90 anos, trata-me por você. Fui educado a não cometer essa deselegância, face e um desconhecido, sobretudo, se esse desconhecido for pessoa mais velha. Não aprecio ser tratado assim por pessoas de estatuto social elevado, como são, por exemplo, os juízes e os médicos, no exercício das respectivas funções, sobretudo, quando mais novos do que eu. Aceito-o perfeitamente se o você vier da boca de pessoa de mais baixo estatuto sociocultural, como, por exemplo, o caixeiro da drogaria, o amola tesouras que passa na rua ou a senhora da limpeza.

O doente é, via de regra, uma pessoa diminuída física e emocionalmente. Precisa que lhe cuidem do corpo e, quanto a isso, não há nada a dizer, mas também precisa (tantas vezes muito) de amparo e conforto psicológico. Salvo as pouquíssimas excepções, que sempre as há, os médicos e as médicas que me têm assistido, trataram-me e tratam-me, não como uma pessoa inteira, de corpo e alma, a necessitar de ajuda, mas sim e apenas como um corpo material, a pedir tratamento. Executam, e muito bem, essa a parte que lhes diz respeito, como bons profissionais, tal como um bom mecânico automóvel executa o seu trabalho na sua oficina. Pouco ou nada lhes interesso como pessoa. Não estabelecem qualquer diálogo de aproximação comigo, um seu doente. Agem como robots guiados por inteligência artificial. Não têm tempo ou disponibilidade para mais. Para eles sou, apenas, mais um “senhor António”.

Por uma questão de segurança para, em caso de necessidade, a poder contactar, pedi a esta minha cardiologista, logo na primeira consulta, o número do seu telefone, mas ela não me o facultou. Delicadamente, preferiu dar-me o seu e-mail. Acontece que, em começos de dezembro, último, comecei a sentir-me particularmente cansado. O próximo exame (ecocardiograma Doppler) e a subsequente consulta só estavam agendadas para meados de janeiro. Não podendo contactá-la, a pedir orientação, recorri à urgência do hospital, no dia 9 de dezembro, do que resultou a necessidade de antecipar os ditos exames e consulta.

Em resultado, foi-me diagnosticado uma estenose aórtica grave e o subsequente encaminhamento urgente para o cirurgião cardiovascular. Foi assim que a 5 de janeiro recebi a implantação percutânea de uma válvula artificial, em substituição da minha, que estava já demasiado fechada.

Seguiram-se 24 horas em cuidados intensivos, mais três infindáveis dias e noites de internamento. Aqui, como no consultório, nada falta ao tratamento do corpo, mas tudo falta ao conforto da alma. Médicos, apareceu-me um, muito fugazmente, ao fim da tarde do segundo dia de internamento, sem tempo para conversar, e o que me operou, ao fim do último dia, apenas para me entregar o documento da alta. Não tive, sequer, visita da minha cardiologista (a trabalhar no mesmo hospital) a que me encaminhou, e bem, para esta cirurgia que me permitiu voltar à vida. A versão de 2017, do juramento médico, creio que, actualmente usada em Portugal, diz, num dos seus preceitos: «a saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações”»…

A. Galopim de Carvalho

4 comentários:

António Pires disse...

Abel Salazar disse:

"Um médico que só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe."

Anónimo disse...

Agora o que é preciso é ser consequente e votar no partido que não quer um SNS mercantilista.

Toda a gente pode sentir aquilo que o professor Galopim de Carvalho sentiu... escolher bem... isso requer inteligência.

Esclareça os leitores professor Galopim de Carvalho.

Mário R. Gonçalves disse...

Percebo que um idoso (como eu) sinta mais a falta de contacto humano durante uma consulta, sinta mais a distância e o silêncio de máquinas. Mas isso veio com os tempos , eu já senti isso lá fora (Suíça) , já não há aquele médico-amigo-da-família a não ser para previlegiados que têm médico na família ou entre os amigos próximos.

A essa médica só se lhe pede que seja competente - é a medicina de massas, não se trata nada de mercantilismo pois há gente muito pior, desumana, malcriada e indiferente no SNS. Quando a medicina é para todos, e ainda por cima os médicos são poucos, é evidente que as consultas são mais à pressa, e atender 30 ou 50 clientes por dia não permite estabelecer relação humana.

Aquilo de que o sr. Galopim tem saudades, vendo bem, é dos tempos em que pouca gente recorria aos médicos - so os endinheirados-, e poucos idosos como eu havia que ainda se atrevessem a ir a uma consulta. Era muito caro, os consultórios eram longe de casa, não tínhamos carro - só de táxi...

Esses médicos, sim, bem pagos, tinham uma hora para estar a conversar respeitosa e amigavelmente - fazia parte dos emolumentos. Até tive os que me telefonavam a saber como eu estava a reagir ao tratamento. Isso acabou, meu caro, e não tem nada a ver com mercantilismo.

Tem a ver com gente a mais, esta multidão exponencialmente crescente, que invade tudo e quer ter direito a tudo, excesso de gente, excesso de direitos e excesso de velhos. Nesses três excessos estou incluído. Por isso não reclamo quando alguém cunpre comigo aquilo para que foi contratado e é competente.

E pense bem: a lei dos grandes números não lhe garante que quantos mais médicos, mais maus médicos, quantas mais consultas, mais más consultas ? Culpe a vida, sr Galopim, culpe a vida, culpe o mundo, culpe a natureza, e se quiser culpe deus; mas não culpe as boas pessoas nem os bons serviços.

Anónimo disse...

Parabéns, Mário Gonçalves.
Compreendo o "Senhor António".
E desculpo o Prof. Galopim que deveria compreender que vivemos não só
em democracia política, mas também (?) em democracia social, democracia
económica e democracia profissional.
Declaração de interesses: também sou velho e nos hospitais privados que
frequento não me tratam pelos títulos académicos e profissionais. É a vida, como dizia o outro.

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