Por Eugénio Lisboa
O texto que se segue foi publicado há muitos anos e constituiu um de vários com os quais quis avisar para os riscos que envolvia o futebol profissional e todo o desporto profissional. O aviso vinha de muito longe, dos gregos antigos, pelo menos, e era um aviso saudável. Infelizmente foi um aviso que caiu em saco roto e o resultado está à vista, na vergonhosa paisagem que agora se desvela, nos bastidores do Futebol Clube do Porto. Em vez de se aceitar decentemente a opinião divergente, oferece-se “porrada” a quem diverge, abusando obscenamente de uma impunidade que existiu tempo demais. Quando se vê o actual Ministro da Saúde como “padrinho” de Pinto da Costa, há que perguntar se ainda se pode descer mais, pela escadaria que leva ao inferno. Achei que valia a pena repescá-lo no momento que passa. Será por certo aquilo a que Montherlant chamava “serviço inútil”.
Não
há muito tempo, publiquei dois artigos relacionados com o futebol.
Entre outras coisas, afirmava – é uma convicção que tenho há largos anos
– ser o desporto profissional uma fonte inevitável de corrupção e
outras formas de degradação moral. Assim como as utopias levam
direitinho à opressão totalitária, o profissionalismo, no desporto,
obriga a uma “machine infernale” de financiamentos megalómanos que só
param ou na bancarrota ou na cadeia (ou nas duas, simultaneamente).
Dizia
Oscar Wilde, no seu leito de morte, que estava a morrer além dos seus
meios (completamente destituído, dava-se ao luxo de beber uma garrafa de
champanhe). Os clubes de futebol profissional nascem, vivem e morrem
além dos seus meios. Como chegam cedo a não ter com que pagar jogadores e
treinadores milionários, acaba por se instalar um conluio torpe e
inevitável entre os clubes, os dinheiros públicos e a construção civil. O
caso de Felgueiras configura um alegado financiamento clandestino de um
clube de futebol com dinheiros públicos não votados para esse fim. É,
como já se sugeriu, apenas a ponta de um monstruoso iceberg.
O mais grave é a emergência de uma cultura futebolística, com os seus
tenores convictos e tonitruantes, que não hesitam em ameaçar, impunes,
os poderes públicos que se atrevem a investigá-los. O futebol passa a
ser o assunto, o tema, que a tudo se sobrepõe. Dizia o “football
manager” britânico Bill Shanky que “o futebol não é assunto de vida ou
de morte – é muito mais importante do que isso.” De facto, ouvindo-se as
orgias verbais dos Valentim Loureiro, dos Pinto da Costa e atentando-se
na atenção obscena que ao futebol profissional dão a imprensa, as
televisões (incluindo a pública) e os representantes acreditados do
governo (dos governos), fica-se com a certeza de que o futebol tem muito
mais importância do que um mero assunto de vida ou de morte.
O
verdadeiro espírito do desporto não rima com este concerto grotesco de
bravatas, de gritaria, de agressões públicas, de trafulhices com
impostos, de dinheiros, dinheiros, dinheiros… O desporto é esforço
desinteressado e elegante, é exemplo de autodomínio e beleza. O grande
“sage” Samuel Johnson desculpava-se por não jogar cartas, nestes termos:
“É muito útil na vida: origina afabilidade e ajuda a consolidar a
sociedade.” Note-se que não passava pela cabeça do grande sábio que as
cartas pudessem ser um modo de ganhar dinheiro. Tratava-se, isso sim, de
gerar bondade e uma sociedade mais bem consolidada e solidária.
O
desporto, tal como os grandes filósofos gregos o viam, também não tinha
que ver com ganhos materiais. Perguntaram um dia a George Mallory por
que é que ele tinha querido trepar o Monte Everest. Respondeu, com
aquela “formidável infância” de Caeiro: “Porque ele estava ali.” Eis o
verdadeiro desporto: vou bater um record, porque o desafio está ali à
minha frente. Vou ver se um esforço de disciplina e concentração
consegue que eu faça um pouco mais do que o meu antecessor ou do que o
meu actual competidor. O desporto – o verdadeiro, o limpo - é isto. Não
é: vou bater este record, a ver se me pagam mais e me isentam dos
impostos sobre aquilo que irei ganhar.
O
futebol deve ser muita coisa: esforço coordenado e disciplinado de uma
equipa, com elegância e arte, para se obter um efeito bonito e um
resultado gratificante – e encorajar os outros a jogarem também. Mas o
futebol profissional, infelizmente, não é nada disto. “O futebol,
segundo me parecia,” observava Orwell, “não é realmente jogado pelo
prazer de chutar a bola de um lado para o outro, mas é antes uma espécie
de combate.” De combate e de profissão milionária.
Quando
escrevi os dois artigos que acima refiro, ainda alguns escândalos não
tinham estalado: Felgueiras, Pimenta Machado… Nem era preciso. Era fácil
de antever que o futebol profissional, nos termos em que tem estado a
desenvolver-se, só podia ter fundações de lodo. A aritmética não vive de
milagres. A megalomania tem custos. Acreditar em milagres de Dona
Branca dá sempre com os burrinhos na água.
O desporto é energia e uso controlado – se possível, artístico – dessa energia. “A energia é Eterno Deleite”, dizia o poeta William Blake. O verdadeiro desportista não procura gratificação para além da satisfação que lhe dá um trabalho bem feito, um esforço bem orientado, um elegante resultado conseguido: “A gratificação para uma coisa feita é termo-la feito”, dizia o filósofo americano Ralph Waldo Emerson.
O desporto é energia e uso controlado – se possível, artístico – dessa energia. “A energia é Eterno Deleite”, dizia o poeta William Blake. O verdadeiro desportista não procura gratificação para além da satisfação que lhe dá um trabalho bem feito, um esforço bem orientado, um elegante resultado conseguido: “A gratificação para uma coisa feita é termo-la feito”, dizia o filósofo americano Ralph Waldo Emerson.
Nada
disto tem que ver com o futebol que para aí se promove, degradando
moralmente crianças e adolescentes, num ambiente de bravata balofa, de
gritaria oca, de competição mal compreendida. Se o Estado quer gastar
dinheiro com o desporto – e deve fazê-lo! – não é a financiar,
clandestina ou descaradamente, clubes de desporto profissional, nem a
construir estádios megalómanos e desnecessários, desbaratando
insensatamente o dinheiro dos contribuintes. É, isso sim, a construir
boas estruturas gimnodesportivas, nas escolas e universidades. Não é a
isentar de impostos metade do salário milionário de indivíduos que nunca
entenderam a sério o que seja o espírito do desporto.
Vem-se
muitas vezes com a falácia de que o desporto internacional ajuda o
entendimento entre os povos… O que se tem visto dá pouca cobertura a
isto: “É o desporto internacional”, observava o romancista E. M.
Forster, “que tem atirado com o mundo pela ladeira abaixo. Iniciado por
atletas tontos, que pensavam que iria promover ‘compreensão’, é hoje
sustentado pelo desejo de prestígio político e pelos interesses ligados à
bilheteira. É absolutamente pernicioso.” É realmente esta mistura de
política com futebol profissional, com o medo concomitante que os
políticos têm da influência dos barões da bola e do imenso público que
os segue, que tem ajudado a envenenar e a prostituir o verdadeiro
desporto – aquele que tem sido desprezado, que se não protege, que se
não acarinha, porque não dá votos. Uma juventude sem desporto por ela
praticado desinteressadamente é uma juventude sem saúde. Retirar fundos a
este desporto para os dar àquele é roubar os pobres para dar aos que
nem chegam a ser ricos – porque são apenas corruptos: que gastam
milionariamente o que não têm (e quem paga?)
O petardo lançado para o relvado, no jogo entre o Benfica e o Vitória de Guimarães e a bárbara agressão de jogadores do Porto, no prélio com o Sporting são o resultado previsível de uma cultura futebolística com características sonoras e comportamentais do mais obsceno e desprezível fascismo. O Sr. Secretário de Estado dos Desportos faz o voto pio de que cenas destas se não repitam… É óbvio que vão repetir-se, em pior. Deitou as culpas aos dirigentes desportivos e ao discurso aquecido dos media. Mas esqueceu-se de que estes são apenas parte de toda uma cultura que desencadeou uma reacção em cadeia, que pode e deve levar ao seu próprio aniquilamento.
O petardo lançado para o relvado, no jogo entre o Benfica e o Vitória de Guimarães e a bárbara agressão de jogadores do Porto, no prélio com o Sporting são o resultado previsível de uma cultura futebolística com características sonoras e comportamentais do mais obsceno e desprezível fascismo. O Sr. Secretário de Estado dos Desportos faz o voto pio de que cenas destas se não repitam… É óbvio que vão repetir-se, em pior. Deitou as culpas aos dirigentes desportivos e ao discurso aquecido dos media. Mas esqueceu-se de que estes são apenas parte de toda uma cultura que desencadeou uma reacção em cadeia, que pode e deve levar ao seu próprio aniquilamento.
Por
mim, só desejo que a explosão venha depressa – e engula estes
jogadores, estes treinadores, estes dirigentes desportivos, estes
governantes que pactuam com tudo isto, e, já agora, estes comentaristas
desportivos que de tudo falam menos de desporto e do seu espírito
verdadeiro.
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