sábado, 24 de fevereiro de 2024

TRANSHUMANISMO

Numa recolha de informação para perceber melhor o que é o transhumanismo, encontrei um texto que partilho com os leitores (ver aqui). Foi escrito por Paul Cullen, médico, professor e director de um laboratório na Alemanha e publicado, como artigo, traduzido, com a devida autorização, para o espanhol por José Mardomingo. Tomei a liberdade de o resumir esperando não ter traído o sentido original, que me parece de grande importância para os educadores em geral e para os professores em particular.

"O termo transhumanismo foi apresentado por Julian Huxley – irmão do escritor Aldous Huxley (1894-1963, autor do romance Admirável Mundo Novo), biólogo evolucionista, defensor da eugenia e cofundador da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) – no seu livro publicado em 1957, New Bottles for New Wine. O título, que alude à parábola do vinho novo em odres velhos (Lucas 5, 37), revela a sua intenção: o “vinho novo”, a nova tecnologia, já está disponível e é chegado o momento de pedir “odres novos”, o homem novo.

«A espécie humana – escreve Huxley – pode, se quiser, ir além de si mesma (transcender-se) (...). O homem continua a ser homem, mas vai além de si mesmo, concretizando possibilidades da sua natureza e para sua natureza» (...) a espécie humana estará na fronteira de uma nova forma de existência, tão diferente da nossa quanto esta é da do Homem da Idade da Pedra. A humanidade poderá cumprir o seu verdadeiro destino. Assim, o transhumanismo propõe-se não só melhorar as capacidades humanas mas redefinir a própria natureza humana.

Quarenta anos após a proposta de Huxley, o sueco Niklas Boström fundou a Associação Transhumanista Mundial (desde 2004 Humanity+) na Universidade de Oxford, com o objectivo de melhorar, através da tecnologia (...) as nossas capacidades, de tal forma que nos tornaremos “seres pós-humanos”.

Isto pode deixar-nos perplexos (...). Tudo que é viável e desejável? Quem deve decidir sobre essas questões?

As quatro novas tecnologias-chave a serem utilizadas para isso estão representadas na sigla GRIN (...): tecnologia genética, robótica, inteligência artificial e nanotecnologia (...)

[Elas] mudarão as nossas vidas (...) [por exemplo] no transporte comercial de passageiros e mercadorias. Nos Estados Unidos, cerca de 6% dos empregos estão relacionados com a condução e em breve a maioria desaparecerá (...) na utilização da nanotecnologia para obter materiais “inteligentes”, na presença dos robôs na vida quotidiana (um aspirador robô hoje custa menos do que contratar dois dias de limpeza) (...).

Como devemos reagir a esta mudança? Alguns, como Harari, apresentam uma versão pessimista de nos tornarmos “pessoas inúteis” (...). Receios como este têm sido formulados desde a Revolução Industrial, mas não se concretizaram, ao contrário, a tendência demográfica mundial indica que, a longo prazo, existirá falta de mão-de-obra.

A mudança tecnológica é inevitável e inexorável, e não é boa nem má, é neutra. As implicações morais não residem na tecnologia em si, mas na forma como é utilizada. Isto também se aplica à tecnologia que interage com o corpo humano (...). É importante distinguir entre a que apoia, melhora ou substitui uma função corporal e a que toca a essência do humano.

Um exemplo da primeira são os implantes cocleares, que podem restaurar, pelo menos parcialmente, a audição (...), um exemplo da segunda é a estimulação cerebral profunda por meio de elétrodos, usada para tratar distúrbios de mobilidade, como a doença de Parkinson (...) distúrbios comportamentais, como neuroses obsessivas (...). Embora não modifique a personalidade do paciente, pode provocar alterações no seu humor e sentimentos (...).

Temos de lidar com a tecnologia referida por Ray Kurzweil, nomeadamente a fusão da mente humana com a máquina, ainda que não haja evidências de que isso seja possível. Em primeiro lugar, porque existe pouca correspondência entre o modo de funcionamento do sistema nervoso central e o do computador binário, talvez os computadores quânticos abram essa possibilidade mas ainda é muito cedo para afirmar tal; em segundo lugar não sabemos bem o que é a consciência, como ela é gerada e onde está localizada, o mesmo vale para a memória a longo prazo e muitos aspectos da personalidade; além disso, não é certo que seja apenas o cérebro a estar envolvido na formação da consciência, ou que o sistema nervoso central também esteja, ou mesmo todo o sistema nervoso. Sabemos, por exemplo, quais as áreas do córtex cerebral responsáveis ​​pela visão e pela audição, mas não temos ideia de onde e como ocorre a experiência subjetiva desses fenómenos, o “cinema interior” da vida, por assim dizer.

Finalmente, a própria expressão “inteligência artificial” (IA) é enganosa. Ela simplesmente não existe: nenhuma máquina está “consciente” de nada, como Hubert Lederer Dreyfus mostrou de forma convincente em 1979 (...). Na vida real temos que tomar decisões em tempo real em ambientes mutáveis, com base em informações que, em muitos casos, são incompletas e confusas e, mesmo, falsas. Além disso, a formação de significado acontece predominantemente na interação com outras pessoas, envolvendo o nível cognitivo, nível emocional e espiritual (...). Acresce que a existência humana e as interações entre humanos ocorrem no mundo físico e a partir do nosso corpo (...).

Um computador que lê um texto em voz alta não “compreende” o texto, assim como um livro não “compreende” o texto escrito em suas páginas. Quem lê um texto entende-o de uma forma única: cada um cria a sua narrativa a partir das palavras escritas e da sua personalidade e experiência de vida. Ora, isto não é remotamente aplicável à forma como os computadores funcionam. 

Os desafios que o transhumanismo nos coloca são de natureza operacional e da ordem dos princípios. Os primeiros decorrem do uso de meios injustos ou desleais para aumentar um desempenho (...). A solução para eles pode ser encontrada em processos regulatórios já existentes. O verdadeiro desafio está na sua dimensão utópica (...). O transhumanismo é cientificismo, não ciência. Se o século XX nos ensinou alguma coisa, foi o perigo das crenças (...) Muitos pensam que elas se desvanecem por si próprias (...).

Porém, a história ensina-nos o contrário: quanto menos viável for a visão do futuro, mais energia será posta na sua realização. Como escreveu o biomédico alemão Stefan Rehder em 2017, a perigosidade de uma ideia não é medida pela sua viabilidade, mas pelo quão longe os seus apoiantes estão dispostos a ir para torná-la realidade”. O verdadeiro perigo do transhumanismo reside, portanto, não no uso da tecnologia para restaurar ou melhorar as capacidades físicas ou mentais do ser humano, mas na sua promessa escatológica (...).

É difícil regular as crenças humanas e as tentativa nesse sentido são, por princípio, inadmissíveis, mas quando actuam sobre o mundo real, pode ser preciso regulá-las. Este é o desafio para as sociedades abertas e pluralistas de modo a não sucumbirem ao sonho transhumanista."

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