quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

VOLTANDO AO CENÁRIO DA DESESCOLARIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o mais importante think-tank da educação global tem, nas últimas décadas, no âmbito do seu projecto "Schooling for Tomorrow" (SfT), delineado aquilo que designa por “cenários para a educação do futuro”. Sobre o assunto escrevi, com Cátia Delgado, um artigo (ver aqui). 

Um desses "cenários", que tem vindo a ser acentuado, é a dissolução da escola como instituição destinada a assegurar a escolaridade ou escolarização (aqui). Na última versão dos "cenários" ("Global Scenarios 2035"), tal proposta (que pretende impôr) não deixa margem para dúvidas (ver aqui, aqui, aqui e aqui). 

Noto que se trata de uma ideia que a organização apresenta como inovadora, mas devemos relembrar que a desescolarização da escola foi uma das bandeiras da ala libertária do Movimento da Escola Nova de finais do século XIX, princípios do século XX.

Mesmo que consideremos a ideia absurda, a verdade é que ela, em tempos mais recentes, tem feito o seu caminho, tem-se infiltrado nos modos de pensar social, nas decisões políticas e, como não podia deixar de ser, tem desencadeado múltiplas "experiências inovadoras" que são invariavelmente apresentadas como muito bem sucedidas.

Há, contudo, quem questione este "cenário". Em publicações da área da Educação (livros e artigos) o questionamento passou a ser frequente, e na comunicação social começam a aparecer textos no mesmo sentido. Deste contexto, guardei este texto, como especialmente interessante, e ontem mão amiga fez-me chegara a referência de um saído no Público de 8 de Janeiro com o sugestivo título que se pode ler no recorte ao lado, assinado por Joaquim Azevedo.

Escreveu o seu autor, de modo desafiante: "razão tinham os responsáveis políticos que não fizeram caso das projeções acerca da falta de professores. Grandes visionários!"

Passo-lhe a palavra, naquilo que entendo ser o mais relevante para o esclarecimento do desafio, notando a responsabilidade que ele imputa - e, no meu entender, bem - aos educadores, que deveriam estar atentos aos avanços deseducativos do mundo empresarial-financeiro e político (por esta ordem):

"É uma realidade em expansão, que se acelerou após a pandemia e que quase ninguém quer ver: já não há escolas, há alunos matriculados numa “certificação internacional” (...), que estudam sobretudo em casa, com apoio de plataformas eletrónicas de ensino (com todo o tipo de recursos didáticos para cada aluno aprender com eficácia) e inseridos em pequenos grupos que se encontram semanalmente em pequenos espaços das cidades e vilas do país.

Aqui, cada aluno(a) continua a trabalhar no seu portátil e pode interagir com os outros em workshops vários e conta com um learning coach. Os materiais disponíveis nas plataformas são quase inesgotáveis: aulas muito bem “dadas” por docentes muito experientes, materiais para estudo e apoio ao “saber mais”, exercícios práticos que a IA consegue personalizar na perfeição, sistemas de conversação com professores especialistas “eletrónicos”, avisos e alertas, etc.

Ou seja, cada aluno tem aqui uma oportunidade incrível de gerir autonomamente e de modo livre as suas aprendizagens, podendo assim escapar às “aulas de seca”, onde teria de ouvir professores a debitar matéria em P.Point, além de não ter de aturar colegas diferentes, alguns deles inoportunos, indisciplinados e até violentos.

Não será este o melhor dos mundos?

Nas novas “escolas algoritmizadas”, os “professores eletrónicos” (PE) são todos “excelentes”, serão necessários muito poucos professores de carne e osso e os que subsistirem terão de se transformar em learning coach ou em personal trainers. Os “PE” não se cansam nem se desgastam, produzem todo o tipo de relatórios para a tutela, ao minuto e sem qualquer reclamação, não faltam, não entram em conflito com a mesma tutela nem fecham as escolas.

A escolarização tende assim a abandonar o espaço público e a remeter-se para o consumo particular e individual. A circulação internacional dos novos cidadãos globais fica desde logo assegurada e também deixa de haver políticas nacionais de educação (já não deixou de haver há muito?), basta estas novas “escolas” seguirem as orientações programáticas das grandes agências mundiais, como a OCDE.

Pode, assim, deixar de haver escolas, essas instituições onde se convive, aprende e traba-lha em conjunto.

Nós damos a lenha para essa fogueira

(...) Que será feito da riqueza relacional da escola (...) e do próprio acesso mediado ao conhecimento? Que sucederá se perdermos progressivamente o ambiente escolar de socialização e de aprendizagem da vida em comum? Que será feito da própria sociedade como a conhecemos e da possibilidade de vivermos uns com os outros, se tudo se fecha sobre cada indivíduo e em redor de grupos de mesmidade?

(...) se é verdade que o mercado espreita todas as oportunidades, também não é menos verdade que as políticas educativas têm aberto as portas para este futuro sem escolas poder acontecer (...).

Alguns ainda agitam a bandeira: e a escola pública? A resposta é clara e o jogo está a ser jogado à vista de todos: a escola pública corre sérios riscos de ser a opção de excelência para os pobres, para os que não conseguem escapar-lhe (...).

As plataformas eletrónicas e a IA promovem muito melhor a competição e (...) fazem-no de modo brilhantemente individualizado, apoiam cada aluno no minuto certo e guiam-no na senda de uma completa “aquisição das aprendizagens essenciais”; cada aluno pode gerir o seu quotidiano, aprender a qualquer hora e em qualquer lugar, ao ritmo que pretender.

Quanto mais a educação for um bem de “consumo alienado”, mais se desfaz o laço social que ela contém e a sua utilidade passa a declinar-se em redor da sua mensurabilidade.

Quanto mais tornamos a escola antropologicamente exígua e axiologicamente estreita, liofilizando o ensino e a aprendizagem, mais estamos a contribuir, nós mesmos, para a algoritmização da educação.

Não, o que acontece não é apenas obra dos outros, dos perversos que seguem a lógica do mercado educacional, nós próprios somos os atores-autores que, provavelmente sem o sabermos, já fomos capturados pela sua lógica (...).

Os avanços da tecnologia estão a ser e serão os principais fatores da mudança do subsistema escolar, não são os reformadores educacionais, os belos decretos e Projetos Educativos ou os intermináveis Planos de Atividades ou os inenarráveis Relatórios de Autoavaliação. Eles enchem-nos os dias, esgotam-nos o ser, esmagam-nos o sentir, mas não nos enriquecem.

Enquanto uns continuam a esgrimir as utopias educacionais dos séculos XIX e XX (...) as distopias estão a encarregar-se de fazer o trabalho sujo de as corroer e destruir (...).

Optar por sair à rua e gritar até à exaustão “escola pública”, “escola pública”, sem mais, é pouco, é mesmo muito pouco, cheira a fim de época, a estertor (...)."

2 comentários:

Anónimo disse...

Dou de barato que nós, os professores, nos deixámos manietar pelas grandes políticas económico-financeiras de organizações internacionais, como a OCDE, e por filosofias exóticas, como o ubuntu, e agora ei-nos aqui sem autonomia técnico-científica ou pedagógica.
Com papas e bolos se enganam os tolos!
Prometeram-nos um mundo feito de facilidades e felicidade se desistíssemos de ensinar e , infelizmente, acreditámos que a escola devia se feita, essencialmente, de grelhas, perfis à entrada e à saída, Projetos Educativos, Planos de Atividades e Relatórios de Autoavaliação, para beneficiar os pobrezinhos. O resultado já está à vista: o pouco que ainda resta da escola pública, está transformada num inferno, cheio de indisciplina e violência, para alunos pobrezinhos e professores proletarizados!

De Rerum Natura disse...

Precisamos, em suma, caro Anónimo, de pensar o que, como professores, devemos fazer, sendo que a nossa acção tem consequências... nos mais jovens, na sociedade, no mundo. Cordialmente, MHDamião

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