quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

QUANDO OS DISCURSOS SAEM DOS SEUS LUGARES. UM PROBLEMA DA DEMOCRACIA E DA EDUCAÇÃO

Qualquer entrevista a um jornal diário está condenada ao esquecimento imediato ou quase imediato, a menos que nela alguém encontre algo que faça sentido e, por isso, a guarde para o caso de ser precisa. Tenho várias entrevistas guardadas em papel e no computador, que já me deram muito jeito. 

Certo acontecimento fez-me hoje voltar a assentar os pés na terra e a olhar para o lamentável estado da democracia no mundo, Portugal incluído. E lembrei-me de uma entrevista com o título A Internet cria “um leitor mais burro e mais violento”, realizada em 2015 pela jornalista, do Público, Isabel Lucas a Bernardo Carvalho, onde se fazia referência a um livro que acabara de publicar com o título Reprodução.  

Dizia a jornalista que o livro era a reacção do escritor "a este mundo que privilegia o discurso único, a leitura de primeiro grau, sem ironia nem imaginação, a ideia de que existe uma verdade num meio que parece absolutamente democrático, quando a democracia tem pouco a ver com absolutos".

Explicava o próprio. "a grandeza da democracia é que se pode conviver com a contradição e essa contradição não precisa de ser eliminada, faz parte da estrutura social. Nas sociedades autoritárias não existe contradição, existe uma deliberação única de uma fonte única. Uma vez entrevistei o Lévi-Strauss e ele dizia que a grandeza e a fraqueza das sociedades ocidentais é que elas trazem dentro um gene suicida. A sua grandeza é mostrar a própria vulnerabilidade. Mas ao mesmo tempo possibilita muitos extremismos (...). Há muitas contradições internas que enfraquecem o próprio discurso da democracia. É aí que está a força desse mundo que se deixa contaminar, se expõe à contradição. Isso é incrível, mas muito difícil de manter."

Mais adiante, faz alusão a algo que me incomoda sobremaneira na Educação e precisamente do modo que refere: falo do uso de elementos discursivos que se afiguram certos e razoáveis (à luz do melhor conhecimento que temos disponível e da ponderação que o mesmo solicita) para se defender o contrário do que esses elementos fariam prever. Nas suas palavras: "vejo uma espécie de oportunismo generalizado de apropriação dos discursos, o que é muito assustador". Acrescenta que o livro "é o retrato dessa perplexidade e desse incómodo; dessa impotência perante a apropriação dos discursos que antes estavam bem definidos (...) vem do desconforto de não saber como me posicionar politicamente nesse mundo actual."

Termina o raciocínio com uma declaração que faço questão de citar sempre que surge a oportunidade pela possibilidade de reflexão que ela integra e, por isso mesmo, aqui deixo ao leitor: "acabei reconhecendo em pessoas que abomino, em discursos que odeio, coisas com as quais concordo. Acontece ouvir alguém, estar de acordo e acompanhar o discurso, acreditando que é bom, e de repente dar-me conta de que quem falava era um representante da extrema-direita, por exemplo. Essa mobilidade dos discursos, o terem saído do lugar (...) no qual eu podia reconhecê-los, inquieta-me."

3 comentários:

Anónimo disse...

Veja-se o discurso dominante, qual seja o das políticas da OCDE para a educação, nos salões e corredores do poder, em Lisboa, e adotado, de alma e coração pelos professores e educadores de infância de Portugal inteiro. Resumindo, o discurso impõe a chamada escola inclusiva, onde o sucesso, a todos os níveis, é obrigatório (não, não exagero, a própria lei define o PERFIL que todo o aluno deve ter à saída da escolaridade obrigatória!), assim como a felicidade de todos e de cada um dos alunos também é obrigatória, nem que, para chegar aos mais altos patamares de consciência, o aluno seja constrangido a estudar filosofia ubuntu!
Na prática, verifica-se que as escolas C + S, entre outras, estão tomadas pela indisciplina e violência, que não se pode dizer que seja o estado mais prazenteiro para alunos que querem aprender e para professores que querem ensinar. No contexto escolar, dentro das próprias salas de aula, o rei vai nu à vista de todos, mas se for um indivíduo de extrema-direita a dizê-lo, aqui d’El Rei!, afinal o monarca leva um mato de arminho e coroa de ouro! E nega-se a realidade!... Assim nunca mais vamos sair da cepa torta!

Helena Damião disse...

Prezado Anónimo
Teço dois comentários ao seu comentário.
1. Como saberá, uma das marcas da OCDE, que ela declara e faz questão de deixar perceber nos seus relatórios, é a sua absoluta neutralidade política. Portanto, não se pode considerar afecta a nenhum alinhamento político, o que, de resto, é compatível com a sua orientação neoliberal.
2. Uma ideia não está certa ou errada por ser defendida por alguém de esquerda ou de direita, está certa ou errada, no caso da educação, em função das finalidades legítimas que a devem guiar.
Cordialmente, MHDamião

Carlos Ricardo Soares disse...

Assim, está mau para os independentes e os que se pautam por preocupações de objetividade e de razoabilidade, porque pode ser difícil de saber se não estarão a reconhecer razão àqueles que pertencem a um pacote, ou sistema de ideologias, ou partido, com que não devem identificar-se, até porque, devem ser independentes. Um problema da polarização e antagonização, ou exclusão insanável dos “pacotes comerciais”, do “tudo incluído” e da “fidelização”, é que não se pode votar apenas no melhor de um ou mais pacotes.
A democracia ainda não conseguiu criar uma solução política do tipo “self-service”.
Não são os eleitores que destroem a democracia, são os partidos, democráticos por convenção e por força da Constituição, mas antidemocráticos por natureza e por definição, apesar de alguns se auto designarem democráticos. Esta incompatibilidade entre a democracia e os partidos devia ser assumida mais explicita e expressamente, quer pelas populações, quer pelos partidos, quer pelas forças armadas, que pela própria filosofia das leis e soluções eleitorais.
Desta incompatibilidade decorre que, quanto maior a abstenção, mais forte é a democracia e, quanto mais poder for “transferido” para um partido, mais o cidadão e os partidos pequenos estão desempoderados.
Uma forma de limitar um partido maioritário, ou perto disso, ou que divide o eleitorado com outro, é a sua legitimidade democrática diminuída. Sendo a abstenção, normalmente, superior à votação do mais votado, dificilmente um partido, ainda que maioritário, mas com reduzida percentagem de votos, se sentirá encorajado a prepotências e arrogâncias ou ameaças antidemocráticas, como temos assistido nos EUA e no Brasil.

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