Por Eugénio Lisboa
Aquele que deseja a rosa
deve respeitar o seu espinho.
André Gide
A admiração é algo de nobre, mas esconde compartimentos sombrios.
Num deles, habitam, encafuados, a inveja e o ciúme, que precedem a frustração e o rancor.
A admiração pode ser ou parecer que é motor de arranque para uma emulação construtiva. É, por exemplo, o caso do grito dado muito cedo por Victor Hugo: “Quero ser Chateaubriand ou nada!” Isso levou-o aos píncaros de ser Victor Hugo, o maior poeta da língua francesa.
Mas o querer ser alguém que se admira pode implicar uma alquimia produtora de vinagre ou mesmo de veneno. Admirar está cheio de armadilhas. A pior é a do amor supostamente não correspondido. O “Quero ser Chateaubriand ou nada” descamba, não raro, no ódio vesgo a Chateaubriand. Não foi o caso de Hugo, ou o de Barrès ou o de Montherlant, que terão tido esse sonho: porque, tinham eles próprios, génio de sobra.
Mas foi, no século passado, nos anos trinta, quarenta, cinquenta, o caso do “Eu quero ser Régio”, anseio de tantos jovens que, depois, não se cansaram de denegri-lo, de persegui-lo, de odiá-lo… de invejá-lo, tanto mais e tanto mais zangadamente, quanto mais ele se mostrava insubornável e admiravelmente independente. Que os novos acrescentadores de poesia ou de ficção se crispassem e o farpeassem – merece uma certa compreensão e atenuante: os que lavram o mesmo território, tendem a não se verem com particular carinho uns aos outros.
Wilde, com a finíssima perspicácia que o caracterizava, observou que os deuses, ao correrem nas suas carroças, fazem tanta poeira para os lados, que se não conseguem ver uns aos outros. Claudel não via Gide, Gide não via Proust, Tolstoi não via Shakespeare e o sereno, ponderado e objectivo Martin du Gard não via Balzac (este, felizmente, viu Stendhal).
Mas isto diz respeito aos que metem a mão na massa, isto é, aos criadores de arte. Mas que, por essa mesma altura, críticos, ensaístas encartados, professores, gente a quem compete outra objectividade, outra capacidade de perspectiva, gente que devia ver-se como verdadeiros guardiães do património, que gente desta sacudisse para o caixote do lixo uma grande e invulgar figura como o autor de MAS DEUS É GRANDE, de O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO, de A CHAGA DO LADO, de JACOB E O ANJO, de HISTÓRIAS DE MULHERES, de A VELHA CASA, de EM TORNO DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA, de ENSAIOS DE INTERPRETAÇÃO CRÍTICA, que um autor de uma obra vasta e de invulgar quilate fosse assim levianamente descartado, como imprestável, pergunto: que país é este? Que clercs são estes? Somos assim tão ricos que possamos dar-nos ao luxo de desprezar pepitas destas?
Dizia Malraux que “uma das mais altas qualidades de um homem que não é um animal é ser capaz de admirar”.
Infelizmente, entre nós, a capacidade de admirar merece sério escrutínio: quem se admira, como se admira, por que se admira e por que se deixa de admirar, para passar a desprezar e atacar. Observava um não muito conhecido escritor francês que “há no homem, quase sempre, duas vozes que falam simultaneamente: a admiração e a inveja”. À mínima suspeita de amor mal correspondido, a primeira torna-se na segunda, com particular rancor incluído…
Vi isso acontecer, em muitos casos, com o grande escritor de Vila do Conde e de Portalegre. Jovens escritores, ambiciosos e gulosos de glória, cedo concluíam que o sóbrio e muito ocupado escritor, professor, jornalista, colecionador de antiguidades e cuidadoso e muito requisitado epistológrafo, além de assíduo frequentador de salas de cinema, não tinha disponível, para eles e para a promoção deles, todo o tempo e energia a que se julgavam com direito: receita infalível para o amor se transformar em azedume de má catadura.
Vi, quando, na casa do escritor, em Vila do Conde, passei a pente fino as cartas que religiosamente guardara, a adulação ali manuscrita pela mão de jovens e empertigados autores que, depois, se passaram, com armas e bagagens, para o outro lado: o da denegrição.
A admiração que visa ser escada de acesso a uma promoção do admirador não traz felicidade. Os poetas, às vezes, dizem-no melhor e de maneira mais curta: “O segredo da felicidade reside em admirar sem desejar” (Carl Sandburg, poeta americano).
Eugénio Lisboa
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