Em A Sombra do Mar, livro publicado no ano anterior, o ritmo e a música de cada poema nutrem-se sobretudo de metáforas, como esta em Os Amigos:
…E aos pés oculto de todos corre um rio
de aliterações, por exemplo em O Poema Que Foi Curto:
Num poema curto a corrente do sangue corria
e de assonâncias, leiamos o poema Ou:
Pudesse a
minha boca desbocada,
feita
rainha santa, milagrar palavras por sardinhas
e a graça voadora da gaivota fosse cair…
No que toca ao conteúdo do livro, é um grito lancinante de um
homem idoso que está mergulhado neste mundo deprimente, onde impera a barbárie
tecnológica e a vida é entulho, onde a idade é uma senhora meio amarrotada e
a água de que somos feitos a pobreza do corpo, onde o tempo é efémero e o homem
de ontem já não conhece o de hoje, onde o prazer e a desilusão andam de mãos
dadas e os sonhos são perversos, onde os loucos são os matemáticos e os
astrofísicos e andamos todos de joelhos, onde as mãos maturas sorvem todo o sol
e os media só nos falam de petróleo e de bancos e de contas divinas e de
palácios inúteis, onde parece não haver lugar para os sons da natureza e para
as árvores, onde o desporto está maculado pelo doping e as peregrinações são baixos delírios, onde os amigos se
separam cada vez mais e as terras de pesca já não cheiram a pescado, onde
vivemos entre o mel e o chumbo e a natureza natural não nos comove, nem à mesa…
Armando Silva Carvalho pinta tudo a cinzento, como a sombra
do mar ou o homem ou os fantasmas das noites de luar sobre as ondas, e, quando
o lemos, parece que estamos apertados entre O Caderno Gris de Josep Pla e The
Waste Land de T.S.Eliot. Ao contrário dos Cantos de Ezra Pound, o poeta canta,
palmilhando a história.
LEITURA DE
JORNAL
Enrolado pelas nuvens duma eternidade,
debruado pelas franjas de catástrofes cósmicas,
soletrado numa lentidão de milénios pela voz sintetizada e
virtual
de Stephen Hawking,
podes tu alguma vez imaginar todo o espectro poético
da explosão do campo de Higgs?
100 000 milhões de gigaelectrões-volts não são bastantes
para tornar metastável
o campo desse senhor dos buracos negros,
e fazer dele
uma bolha de vácuo.
Tudo à velocidade da luz, é claro, que a partícula de deus
não é um caracol que vá deslizar
a sua vegetal e mansa paciência pelas folhas
do universo.
Mas a criatura irónica, imobilizada,
esse génio oráculo que fala através dos músculos da face,
esse cérebro de engenhos que desdenham deus,
concentra no seu sorriso um fulgor natural,
talvez o único,
e pretende, diz ele, seduzir as enfermeiras
com o sotaque do texas que lhe sai da máquina falante.
É um riso de fichas virtuais, e as meninges tremem
entre placas, galáxias, anjos megalómanos, funcionários
divinos,
engenheiros do eterno e promotores da vida futura
na imensidão devoluta dos planetas.
Abençoado profeta, só eu não sei por que deuses,
fruto absurdo das matemáticas dos tempos,
és o trânsfuga da história
a imagem ambulatória do belo, próxima verdade de nós,
futuro reprodutor do universo.
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