quarta-feira, 6 de julho de 2016

ARMANDO SILVA CARVALHO, A SOMBRA DO MAR

    
Em A Sombra do Mar, livro publicado no ano anterior, o ritmo e a música de cada poema nutrem-se sobretudo de metáforas, como esta em Os Amigos:

            E aos pés oculto de todos corre um rio

de aliterações, por exemplo em O Poema Que Foi Curto:

             Num poema curto a corrente do sangue corria

e de assonâncias, leiamos o poema Ou:

              Pudesse a minha boca desbocada,

              feita rainha santa, milagrar palavras por sardinhas

              e a graça voadora da gaivota fosse cair…

No que toca ao conteúdo do livro, é um grito lancinante de um homem idoso que está mergulhado neste mundo deprimente, onde impera a barbárie tecnológica e a vida é entulho, onde a idade é uma senhora meio amarrotada e a água de que somos feitos a pobreza do corpo, onde o tempo é efémero e o homem de ontem já não conhece o de hoje, onde o prazer e a desilusão andam de mãos dadas e os sonhos são perversos, onde os loucos são os matemáticos e os astrofísicos e andamos todos de joelhos, onde as mãos maturas sorvem todo o sol e os media só nos falam de petróleo e de bancos e de contas divinas e de palácios inúteis, onde parece não haver lugar para os sons da natureza e para as árvores, onde o desporto está maculado pelo doping e as peregrinações são baixos delírios, onde os amigos se separam cada vez mais e as terras de pesca já não cheiram a pescado, onde vivemos entre o mel e o chumbo e a natureza natural não nos comove, nem à mesa…

Armando Silva Carvalho pinta tudo a cinzento, como a sombra do mar ou o homem ou os fantasmas das noites de luar sobre as ondas, e, quando o lemos, parece que estamos apertados entre O Caderno Gris de Josep Pla e The Waste Land de T.S.Eliot. Ao contrário dos Cantos de Ezra Pound, o poeta canta, palmilhando a história.


LEITURA DE JORNAL

Enrolado pelas nuvens duma eternidade,
debruado pelas franjas de catástrofes cósmicas,
soletrado numa lentidão de milénios pela voz sintetizada e virtual 
de Stephen Hawking,
podes tu alguma vez imaginar todo o espectro poético
da explosão do campo de Higgs?

100 000 milhões de gigaelectrões-volts não são bastantes
para tornar metastável
o campo desse senhor dos buracos negros,
e fazer dele
uma bolha de vácuo.


Tudo à velocidade da luz, é claro, que a partícula de deus
não é um caracol que vá deslizar
a sua vegetal e mansa paciência pelas folhas
do universo.


Mas a criatura irónica, imobilizada,
esse génio oráculo que fala através dos músculos da face,
esse cérebro de engenhos que desdenham deus,
concentra no seu sorriso um fulgor natural,
talvez o único,
e pretende, diz ele, seduzir as enfermeiras
com o sotaque do texas que lhe sai da máquina falante.


É um riso de fichas virtuais, e as meninges tremem
entre placas, galáxias, anjos megalómanos, funcionários divinos,
engenheiros do eterno e promotores da vida futura
na imensidão devoluta dos planetas.


Abençoado profeta, só eu não sei por que deuses,
fruto absurdo das matemáticas dos tempos,
és o trânsfuga da história
a imagem ambulatória do belo, próxima verdade de nós,
futuro reprodutor do universo.

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