Com um ordenado mensal de 500$00 (2,5 Euros), procuraria tirar, nas comissões, algo que compensasse tal magreza. Iniciado e inexperiente neste tipo de comércio de porta em porta, foram mais os meses em que nada conseguia vender. Nos relatórios diários que tinha, por obrigação, de entregar no escritório da empresa, indicava as visitas e os contactos que fazia, os eventuais clientes, apontando os possíveis compradores. Na posse destes contactos, o meu superior hierárquico, sem que eu o soubesse, consumava as vendas. Assim, a comissão que, em princípio, eu pensava ser minha, esfumava-se.
Na necessidade de garantir a minha subsistência consegui, em acumulação, um lugar de delegado de informação médica. Por um salário de 600$00 mensais, cumpria-me visitar uns 4 ou 5 médicos por dia, numa zona compreendendo a Avenida da Liberdade e suas envolventes mais próximas. Este trabalho era normalmente feito ao fim da tarde, percorrendo consultórios nos quais exerciam clínicos de diversas especialidades. Assim, muitas vezes, num único local, cumpria a minha obrigação contratual sem perder muito do tempo que me era precioso para estudar.
Nesta actividade que, como a outra, se prolongou por pouco mais de um ano, houve situações que retive bem vivas na memória.
Uma delas passou-se com um médico, homem de meia idade, que me recebeu com simpatia e cordialidade. Devo começar por dizer que entre as especialidades farmacêuticas que eu representava, havia uma pomada e uns supositórios para alívio do hemorroidal, em cujos princípios activos figurava vitamina F99, dois fármacos cujos nomes eram, respectivamente, Algan e Sulgan. Acontece que, quando entrei no gabinete deste simpático clínico, como de costume sempre à pressa, não me dei conta dos equipamentos ali bem à vista. Comecei, de imediato, a “desbobinar a cassete” adequada à gama dos medicamentos que me competia propagandear, com ênfase especial nas propriedades terapêuticas, quase milagrosas, da vitamina F99 na aludida enfermidade.
Com bonomia, o meu interlocutor deixou-me “estender o lençol”, já muito estereotipado, por força da repetição, e só no fim, quando abri a mala em que transportava as amostras e lhe perguntei quais desejava, ele olhou-me nos olhos e, num admirável sentido de humor, disse:
- Tendo em conta as afinidades com o meu trabalho, só se forem aqui estes supositórios. Esta resposta e o sorriso que se lhe abriu no rosto, ao dizê-la, denunciaram-me a associação que fez entre os olhos da cara e o outro, escondido na base das costas, Só então me dei conta de que entrara no consultório de um oftalmologista.
Este texto continua aqui.
A. Galopim de Carvalho
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