A jornalista Raquel Ribeiro do Público fez-me algumas perguntas sobre as minhas leituras científicas e literárias para o seu trabalho. Pode a literatura ser a ciência mais pura? Deixo aqui as respostas:
P- Queria conversar consigo sobre a sua relação, como físico, com a literatura. Calculo que tenha sido sempre um grande leitor.
Quando era miúdo, o que lia? De que maneira o que lia o empurrou para a
ciência?
R- Sim, sempre li muito desde pequenino. Os meus pais dizem-me que comecei a ler pelos quatro anos juntando as letras dos títulos dos
jornais. Desde então fiquei viciado na leitura de jornais. Quanto a livros, para além dos
escolares, lembro-me de ter recebido de prenda aos dez anos "14 novelas
históricas portuguesas" (Estúdios Cor 1965). Fiquei impressionado com o "Bispo negro" de
Alexandre Herculano. Já escrevi um dia sobre isso. Mais tarde, entre a literatura juvenil que encontrei na Biblioteca Municipal
de Coimbra, li muito Júlio Verne. Mas não só: li de tudo. Nos portugueses descobri que Eça de Queirós me
agradava mais que Herculano. Na poesia, descobri um pouco tarde mas ainda a tempo, o Pessoa. Se na escola só
havia o "Mostrengo" e o "Menino de sua Mãe", foi na entrada na Universidade que li os heterónimos. Já estava no
início dos anos 80 na Alemanha em doutoramento quando me chegou, desassogando-me, o "Livro do Desassossego". Lembro-me
também de receber vindo da pátria "Os Cus de Judas" de António Lobo Antunes, que sempre preferi a Saramago. Essa época foi
de intensas leituras pois havia uma boa biblioteca em Frankfurt e eu dei aulas de língua e literatura portuguesa para
alemães e ainda explicações para jovens da segunda geração de emigrantes que queriam acabar o liceu. Li mais portugueses e descobri os brasileiros, para além dos clássicos
germânicos (Goethe, Brecht, Rilke, etc.)
Mais tarde, estive nos Estados Unidos: já conhecia o Edgar Poe e
aproveitei para conhecer o Joseph Roth.
A literatura que mais apreciei não foi a mais convencional: dos autores
nacionais gostei do Mário Henrique Leiria, do Luís Pacheco, do Manuel
João Ramos, do Onésimo Almeida e do Gonçalo M. Tavares. Na poesia do
Alexandre O Neill e da Adília Lopes. Dos brasileiros, do Millôr Fernandes
e do Rubem Fonseca. Dos espanhóis e latino-americanos e por razões
diferentes o Manuel Vásquez Montalbán e o Jorge Luís Borges. Dos
franceses, o Boris Vian, que li muito cedo, e o Georges Perec. Dos
italianos, o Italo Calvino e o Umberto Eco. Dos ingleses o G. K.
Chesterton e o David Lodge. Dos escritores de leste o Anton Tchekhov e o
Milan Kundera. Etc.
Mas li e leio sobretudo não ficção. Fui para a ciência talvez devido aos
livros de divulgação de ciência de Rómulo de Carvalho, que não por acaso
foi o poeta António Gedeão.
Ainda me cruzei com ele. E li tudo o que me parecei sobre a grande
aventura que me parecia ser a ciência. Na colecção Ciência Aberta da
Gradiva, com mais de 30 anos e que agora tenho a honra de dirigir,
encontrei Carl Sagan, Richard Feynman, Stephen Jay Gould, Hubert Reeves,
Richard Dawkins, Ilya Prigogine e vários outros. Por vezes nas páginas
de divulgação científica encontra-se não só literatura mas também grande
literatura. Que bem escrevem, por exemplo, Carl Sagan ou Stephen Jay
Gould! Ultimamente tenho lido muito sobre história da ciência para poder
escrever sobre ela. Passados muitos anos de prática científica e de
ensino e divulgação da ciência, ser-me-á permitida a conclusão de que a
ciência é, de facto, uma grande aventura. E não serve a literatura,
entre outros propósitos, para contar aventuras?
P- Hoje ainda, como professor (e sabendo que continua a escrever e a publicar sobre ciência para o grande público), como vê a forma como os seus alunos lidam (ou não) com a literatura, ficção, poesia?
R- Tenho tido alunos que lêem muito. E alguns escrevem. Um deles, Ângelo Alves trazia-me para as aulas livros que eu não conhecia: de John Steinbeck e Paul Bowles,
por exemplo. Hoje, formado em Ensino da Física, tem publicado livros de
poesia. O Nuno Camarneiro, autor laureado com o prémio Leya, é também físico e foi também meu aluno na Universidade de Coimbra. Ao contrário do que se possa pensar, bastantes alunos de Ciências lêem literatura, tanto prosa como poesia. Não todos, mas
bastantes, talvez numa percentagem até maior do que nas Letras. Um dia quando estava a
aprender alemão o meu professor, que era das Letras, disse-me que os
alunos de Letras nunca leriam os livros que eu andava a ler por puro prazer
porque para eles esses títulos eram obrigação. A questão das "duas culturas" é um pouco
tola: de facto, não há duas culturas, mas uma só.
P- Por que razão continuamos a aprender (na escola) que há uma fronteira, separação, entre as ciências e humanidades?
R- Essa barreira tradicional foi estabelecida pela história e é transmitida pela
escola. Talvez seja a linguagem matemática que as separa, mas é um
divisão que, embora em parte se perceba, é um tanto ou quanto espúria e até injusta
para as duas áreas. A polémica das "duas culturas" de Charles Snow, um
cientista e romancista que contrastou Shakespeare e a Segunda Lei da
Termodinâmica, tem mais do 50 anos. Tanto Shakespeare como a Segunda
Lei nos ensinam sobre a mudança, embora de maneira diferente. E é tão
pobre desconhecer Shakeapeare como essa lei. E também, no mundo da
língua portuguesa, desconhecer Camões, para quem "todo o mundo é
composto de mudança / tomando sempre novas qualidades", uma bela maneira
de enunciar a tal Segunda Lei, a única lei da física que nos permite
distinguir o passado do futuro. A ciência - a descoberta do mundo,
incluindo neste o próprio homem - é do homem e é para o homem e, por isso,
pertence às humanidades!
A literatura tem muito mais a ver com a ciência do que se pensa. Ambos
correspondem a atitudes e a necessidades de expressão humanas. Ambas
exigem criatividade. Ambas requerem uma grande dose de imaginação: a
grande diferença é que na ciência a imaginação está confinada pela
imaginação da Natureza (que não é pouca!). Escreveu Fernando Pessoa no
seu "Fausto":
"Da alma sobriamente louca / Tirei poesia e ciência/ E não pouca."
Olhe para alguns dos autores que referi. Lobo Antunes é médico de
formação (esqueci-me de referir Jorge de Sena, que era engenheiro
civil, autor do notável "Sinais de Fogo"). Júlio Verne e Edgar Allan Poe
falam da viagem à Lua, na senda de ficção científica aberta pelo astrónomo Johannes
Kepler e continuada por Voltaire e Cyrano de Bergerac. Onésimo
Almeida é um grande apreciador da componente científica da cultura.
Adília Lopes estudou Física. Jorge Luís Borges é apreciadíssimo pelos
matemáticos, tal como Pérec. Umberto Eco escreveu "O Pêndulo de
Foucault", um dos grandes instrumentos históricos da Física. E por aí adiante.
Vemos em muitos sítios literatura inspirada pela ciência. E a ciência
não deixa de, por vezes, buscar inspiração na literatura, na ficção
científica e não só. Escreveu Antero de Quental: "O que é ciência foi
já poesia. O sábio já foi cantor, o legislador poeta: e a evidência uma
adivinhação, um admirável palpite, cujas profundas conclusões são ainda
o espanto e porventura o desespero das mais rigorosas filosofias."
1 comentário:
Para má fortuna do pretensioso, a mudança a que se refere Camões e a mudança que é expressa na segunda lei da termodinâmica pouco têm em comum. Aliás, melhor teria feito se tivesse ido ler um pouquinho do velho Aristóteles (que é o mínimo para minimizar o drama das duas culturas).
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