terça-feira, 2 de novembro de 2010

Poema do alegre desespero


Na sequência do texto anterior, reproduzo o Poema do alegre desespero, de António Gedeão, publicado em 1967 no livro Linhas de Força (Coimbra: Atlântida).

Sendo Rómulo de Carvalho professor, percebia claramente que o conhecimento tem valor, e estava consciente de que a função de quem ensina é transmiti-lo, fazendo-o renascer, fazendo-o servir... para que a herança da Humanidade possa ser preservada, revista, acrescentada.

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de um certo Fernão Barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludos
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

6 comentários:

Cônsul Fraxinus Excelsior disse...

também gostei.

Anónimo disse...

Ante a beleza do tema,
como é que não haveria
de gostar deste poema,
que é modelar poesia?!

JCN

Anónimo disse...

Poesia é poesia,
tenha ela a forma que tenha:
o que importa é a fasquia
da inspiração que nos venha!

JCN

Anónimo disse...

"No ano três mil e tal"
ninguém de nóa falará:
acaso até Portugal
nem sequer existirá!

Anónimo disse...

Corrijo a gralha "nóa" por "nós". JCN

Anónimo disse...

Helena,e deve estar mundo numa caixinha; tudo enquadrado num quadrado do que deve ser, cada coisa no seu lugar e o tempo monotono com a cadencia dos que aborrecem com a sua loucura enfiada numa camisa de colarinho branco passadinha a ferro, passadinha mil e tantas vezes.

Artur Campos

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