quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Porto Santo

Este Largo do Pelourinho, em Vila Baleira, na ilha de Porto Santo, envolve-me, sem eu querer, numa emoção vaga, vinda de longe, e onde apetece repousar levado por evocações antigas. Sem dar por isso, olhando, volto à minha infância, à vila de Penamacor, na Beira Baixa raiana, e às brincadeiras de Verão, sob as palmeiras do jardim público – “A Avenida”, como lhe chamávamos.
Os ecos de longe, os gritos das crianças entre as conversas pausadas das mães, sentadas nos bancos do jardim, os homens conversando em pequenos grupos, para cá e para lá, ou recostados na esplanada do clube, lá em cima, perto dos muros do quartel da “Companhia Disciplinar”. E as nossas corridas e jogos, depois o sono que avançava nas pernas cansadas do regresso e nas sandálias sujas da poeira. E em seguida as vozes dos que passavam na rua projectando sombras que rodavam atravessando o tecto do quarto de um lado ao outro; vozes cada vez mais distantes, difusas, boas. Era o verão, por todo o lado, enchendo os recantos até ao mais recuado da casa, e por toda a noite até à fresca claridade da manhã seguinte.

Aqui, em Porto Santo, subindo e descendo, passam as mesmas famílias muito compostas, como nesse tempo, as crianças pela mão, os adolescentes aos grupos, a fila de velhos e novos em frente da casinha dos gelados (os sorvetes de antigamente) sempre com as vozes, próximas e distantes, cruzadas, sobrepostas, envolventes como algodão doce. Sentado na esplanada da “Baiana” (“fundada em 1950”, respeitinho, portanto) olho a antiga casa da Câmara, a sua traça quinhentista, o seu belo balcão centrando, em força, o desequilíbrio pensado e propositado para o equilíbrio arquitectónico do todo. E em frente as palmeiras, e em baixo, em volta, os bancos de jardim, antiquíssimos, iguais aos que nós cavalgávamos nas brincadeiras da “Avenida”, mas impecáveis ainda, servindo velhos e novos, sempre. E o empedrado miudinho a seixos brancos e pretos, um rendado de paciência a que o tempo deu o verniz de mais paciência ainda: “Porto Santo, Julho de 1935”. À esquerda a igreja matriz com a sua campânula rouca emergindo da brancura das paredes, dos muros tão próximos e envolventes do adro, da torre com seu pálido olho de horas quase ausentes.
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E de novo Penamacor dos meus tempos de infância. E a beleza inefável de um Portugal que permanece em tantos lugares como o melhor que tem. E que atravessa décadas, e mares, «tanto mar, tanto mar», porque, sem saber como, vem-me à memória a “Evocação do Recife”, do Manuel Bandeira, onde, «depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas». A brincadeira das crianças por entre o calor e a dolência dos adultos, às portas, sorvendo a frescura que passava. As vozes das pessoas conversando entre as cantigas e os jogos infantis. E a nostalgia que se liberta de um idade que se julgava eterna mas se foi, e de uma cidade que era só memória e já não existia assim.
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Mas, Manuel Bandeira, desculpa-me, há em tudo isto algo de eterno, mesmo para os que já “dormem profundamente”, como dizes noutro poema. Olhando esta praça e estas casas, nestas vozes e nesta brisa, com a memória do teu Recife, em fundo, parece haver, em tudo isto, algo de eterno. Um eterno à nossa medida, é certo; mas que outro devemos querer? Um eterno à medida das memórias de infância, e das sugestões que me chegam de muito longe e de muitos anos antes. Um eterno de tão terno, talvez só para nós e para alimentar o “nosso contentamento descontente”, como diria Camões.

João Boavida

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