domingo, 5 de abril de 2020

Elucubrações num país futebolizado


Num país, no extremo mais ocidental da Europa, antes da pandemia do "coronavírus” que mudou por completo o “modus vivendi” da população do mundo, os jornais desportivos (e o próprio jornalismo generalista) dedicavam numerosas páginas ao chamado desporto-rei liderando a venda de jornais de todos os géneros pelo maior número dos seus  compradores..
Num país em que as “coisas do espírito” eram escravizadas pelo ser e endeusadas pelo ter, seria bem vinda uma brisa de esperança que arejasse certas mentalidades, numa linguagem sem freio na língua, que pensavam com os pés enredados numa teia de transferências faraónicas, de casarões, de bólides, das namoradas dos craques (qual delas a mais bela entre as belas). 
Num país, hoje, em época de defeso forçado sem “sine die” marcado para o seu término, e em que, ainda sobrevive uma matéria arrogante que diz a um espírito submisso: “Aqui estou, arreda-te para o lado!”   
Num país em que o pensamento reflexivo da Filosofia se debate na escuridão e a ignorância se ilumina com archotes.  
Num país herdeiro de uma época de decadência desportiva romana, sem sequer ter conhecido o apogeu de uma educação helénica integral. 
Num país futebolizado em que, porventura, corro risco de todo o apóstata de ser havido como um renegado, por estas minhas elucubrações, ao correr da pena, contra um clubismo exagerado e o ódio entre as claques, apoiando-me na máxima latina “ridendo castigat mores”, faço apelo final ao dito jocoso, de que o homem pode mudar de mulher, de partido, de clube isso é que não jamais em tempo algum. 
Neste “statu quo” encontro parte de justificação, para as disciplinas de Humanidades continuarem parentes pobres dos currículos escolares, centrados num mundo cientificado que se encontra, apesar do seu inegável avanço, tolhido de pés e mãos, tal como há milénios atrás, incapaz de combater um vírus que atacou a Humanidade ceifando milhões de vida. 

Daqui, retiro razão, em momentos de reflexão gerados por me encontrar em clausura entre quatro paredes, qual monge tibetano, para a reprodução de um meu artigo de opinião crítico sobre a desvalorização da Filosofia no âmbito do ensino secundário (Diário de Coimbra, 13/02/2006). Trancrevo-o: 
“Vai para um ano, publiquei neste jornal (13/02/2006) um artigo de opinião em que criticava veementemente a desvalorização da Filosofia no âmbito do ensino secundário. Duas notícias de jornal trouxeram para os media esta temática: Primeira: Um artigo do professor universitário de que ressalto: «Se a filosofia deixar de ensinar nas escolas, a comunidade científica no seu todo fica mais pobre» (Diogo Pires Aurélio, Jornal de Notícias, 19/12/2006). Segunda: Algumas empresas norte-americanas decidiram recrutar para os conselhos de administração quadros com formação superior em filosofia” (Mário Bettencourt Resendes, Diário de Notícias, 04/01/2007). 
Na Grécia Antiga, através da máxima “primum vivere deinde philosophari”, zombavam dos que só sabiam filosofar não sendo capazes de ganhar meios de subsistência. Em nosso tempo, assiste-se à guerrilha institucional entre gigantes do conhecimento científico e luminares de saberes humanísticos. 

Como escreveu Georges Gusdorf, professor da Universidade de Estrasburgo, festejado autor da bem documentada obra “Da História das Ciências à História do Pensamento” (Pensamento - Editores Livreiros, Lisboa 1988), em meados de 60 do século das luzes, docentes da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências de Paris, preveniam, “ex cathedra”, a família e os interessados que a passagem por um estágio na classe de filosofia representava para os futuros médicos “uma deplorável perda de tempo e de inteligência”.

Em testemunho, ainda, de Georges Gusdorf, um jornalista da radiodifusão foi então perguntar a estudantes de Medicina, escolhidos ao acaso, o que pensavam desta declaração. Com lúcida maturidade cultural, foi-lhe por eles respondido que lhes parecia, pelo menos, impensada.

Ainda segundo este mesmo autor, “os estudantes tinham cem por cento de razão em denunciar esta forma particularmente nociva de obscurantismo contemporâneo que existe entre os potentados universitários como no homem da rua”.
Ora, este descabido ataque à própria matriz de todas as ciências é tanto mais insólito porquanto nomes maiores da Ciência contemporânea se têm distinguido no deambular de uma Sabedoria sem fronteiras, v.g. Bertrand Russel e Albert Einstein. Razão de sobra para Georges Gusdorf sentenciar: “O fascínio tecnicista e cientista é um sinal dos tempos, cujas repercussões se fazem sentir na organização ou antes, desorganização do ensino a todos os níveis. Esta desorganização com espaldar no sistema educativo português, em que as reformas curriculares se sucedem em vertiginoso carrossel, tem conduzido à desvalorização da Filosofia e, “ipso facto”, ao desprezo por um importante legado da antiga civilização grega: a do Homem que se questionar e ao mundo que o rodeia, tornando-se, simultaneamente, num processo de realização ética. Desta forma, pondo em causa o generoso papel do conhecimento filosófico como personagem de um processo cultural que abriria espaçosas fronteiras à Ciência hodierna”.
Regressando ao filósofo acima citado, Platão, encontro numa das sua máximas o conselho judicioso, diria mesmo profético: 
“Não espere por uma crise para descobrir o que é realmente importante na sua vida”!

2 comentários:

Rui Ferreira disse...

Muito bom mesmo, agradeço a partilha.
Tudo isto faz parte de um esquema de vida que se pretende impor.
A máquina, infelizmente, está bem oleada e prospera.
Ontem no "Público":
Em nada conta para aqui a nossa consciência, aliás já dissociada da inteligência. Em nada conta para aqui a nossa sensibilidade emocional e espiritual. Os organismos são algoritmos e estes não possuem nem sentimentos, nem consciência, nem espírito. O critério é agora não o do Bem, do Belo e do Justo, mas o da eficácia, da utilidade e da funcionalidade.
Maria Fátima Bonifácio (Historiadora)

Rui Baptista disse...

Agradeço o seu comentário demonstrativo do interesse que a leitura do meu post lhe despertou e que sintetizou : "Tudo isto faz parte de um esquema de vida que se pretende impor". Ou seja, para mim, trata-se da alienação do povo para que esqueça o que se passa à sua volta, quer na política, quer na educação, quer na economia, quer, ainda, na saúde. Nero, na Roma Antiga, domesticava o povo com "panem et circense", mau ou bom grado meu, "hoje só me diverte o circo de Domingo de toda a semana da minha infância" (Fernando Pessoa). Um abraço com votos de boa saúde.

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