terça-feira, 14 de abril de 2020

AUTO-BIOGRAFIA DE MARIA DE SOUSA QUANDO AINDA ERA ANNA BRITO

No livro "Mundos Imaginados", de June Goodfield (original norte-americano de 1981, edição da Gradiva de 1988, publicada por Guilherme Valente por sugestão de Onésimo Teotónio Almeida),  a cientista portuguesa Maria de Sousa é identificada com o pseudónimo de Anna Brito. Nesse mesmo ano um número especial da revista "Gávea-Brown" foi-lhe dedicado, encontrando-se aí comentários, alguns poemas dela e uma grande entrevista de Onésimo Teotónio Almeida, professor na Universidade Brown: 

https://www.brown.edu/academics/portuguese-brazilian-studies/sites/brown.edu.academics.portuguese-brazilian-studies/files/uploads/gavea%202.2.pdf

Há aí uma nota biográfica sobre Anna Brito, assinado por "Vieira do Canto Maia" (dito "freelance writer em New York"),  que é certamente auto-biográfico, atendendo ao manancial de informação privada que contém. Transcrevo-o aqui, com um abraço ao Onésimo, que  conheceu a Anna/Maria, muito antes de nós a conhecermos (ele tem este o jeito  de estar na altura certa na hora certa). Com a obrigatória e merecida vénia tomo a liberdade de o transcrever. Revela quem era Maria de Sousa, vista por si própria:

Nota Biográfica sobre Ana Brito

 Vieira do Canto Maia

 A Dra. Ana Brito nasceu em Lisboa no Outono de 1939, filha de mae lisboeta (freguesia de Santa Catarina) e de pai açoriano (freguesia da Fajã de Baixo). Ana é heter6nimo, Brito, nome da jamflia da Mãe que, de outro modo, se dissiparia por os av6s matemos s6 terem tido filhas; o seu uso representa, portanto, o gesto "quixotesco" de quem sabe ter a mulher igual responsabilidade biol6gica na carga genética que passa a filhos (ou filhas), e assim poder restituir à mulher o igual transmitir de nome, e ao  homem o direito de que seu nome se não sinta perdido por ter filhas e não filhos.

Cresceu no Dafundo entre o Tejo e o piano da prima com quem aprendeu a tocar piano. Desse tempo lembra-se da dificuldade de tocar a "Aveé Maria" de Gounod com mãos pequenas, de não querer aprender a ler, de brincar às famílias com um menino da mesma idade, e de ler O Capuchinho Vermelho quando teve escarlatina. Aos 9 anos entrou para o Liceu Rainha D. Leonor, onde completou o curso liceal em 1956. Nesses sete anos aprendeu a apreciar casas velhas (o liceu era então no Palácio da Junqueira), desenvolveu um raro gosto por andar de elétrico, começou a distinguir entre os que sabem e os que pretendem que sabem, sobreviveu à atmosjera exclusivamente feminina da escola fazendo algumas amigas e decidiu entrar para a Faculdade de Medicina, depois de muito debater seguir Matemática.

 Jornadas diárias entre o Dafundo e o Hospital de Santa Maria não eram fáceis em 1957; apercebeu-se pela primeira vez, nesses primeiros anos da Faculdade, de quanta gente, alem de seu Pai, começava a trabalhar às 6 da manha. Frequentando ao mesmo tempo o Conservat6rio Nacional, teve a oportunidade de descobrir, por si só, sempre só, o Bairro Alto e a beleza das grandes casas vazias de tudo menos de música. Nunca acabou o curso superior de piano, mas o ter de frequentar o Conservat6rio contribuiu largamente para a sua apreciação dos elevadores da cidade de Lisboa. Na Faculdade de Medicina aprendeu, como era sua obrigação, coisas que satisfizeram favoravelmente o apetite voraz de examinadores nem sempre competentes. Duas grandes fascinaç6es, nunca avaliadas por exame, tomaram forma nessa altura: 1. a microscopia do momento da fecundação do 6vulo; 2. o fazer de perguntas em silêncio, ao microscópio. Da companhia dos colegas ficaram cheiros de tabaco de cachimbo, a seriedade de ouvir Hindemith em grupo, o  tempo que se perde a conversar, o  julgar-se apaixonado de quando se é novo, e um sabor à futilidade da agitação política falada, de microfone, sem compromisso de acção e vida. Sabor, portanto, a tempos perdidos e ganhos, gosto pelo silêncio das bibliotecas e a decisão de fazer investigação. Memórias das primeiras experiências: provocar tumores no estômago de coelhos,' em parte por inspiração do professor com quem veio a fazer a tese, em parte pelos coelhos, em parte pelo colega com quem as jazia. Em Outubro de 1963, completou o curso de Medicina em Lisboa e, na companhia do Petit Prince, partiu para Londres em 1964. Aí, onde esteve até 1966, mudou muito. Científica e humanamente evidenciaram-se os primeiros sinais de uma mudança mais exactamente descrita pela distinção entre a geleia e a compota. Um breve voltar a Portugal entre 1966 e 1967 resultou mal, e bem, porque decidiu lá não ficar. Em 1967 tomou a primeira posição de ensino em Imunologia, na Universidade de Glasgow, onde se doutorou em 1971. Em terra de cinzentos aprendeu arco-iris pessoais, da mulher que começou verdadeiramente a ser, e científicos, de ver hipóteses crescer por si próprias exigindo outras escolhas e outros paises. Assim, em, 1975, fez uma sabática nos Estados Unidos e, em 1976, para cá veio trabalhar deixando atrás um arco-iris, para só mais tarde se transformar noutro, definitivo.

Nos Estados Unidos, da compota que ainda era, reganhou o azedo e o real sabor dos frutos que detestam tudo o que e desumano no sistema capitalista (v. "Prayor for the hurricane men" e "Rewriting the book of Job with fountain pens', e, ao mesmo tempo, reconhecem que todos os sistemas humanos são falíveis (e têm falhado) e que o mais importante é o que fica feito "malgré tout" (v. "A Naive Picture of American History"). (Publicados a seguir)

 "Malgre elle-meme,"publicou, em 1981, um livro sobre a circulação dos linfócitos e apercebeu-se recentemente de que tem 100 artigos científicos publicados. Meteu-se-Ihe primeiro na cabera, depois nas pobres cabeças de quem tem trabalhado com ela nos últimos cinco anos, e recentemente noutras cabeças, noutros países, que há um mundo a explorar na fronteira entre o sistema imunologico e o sistema do metabolismo do ferro.

Presentemente, sob influência do pensador português Agostinho da Silva, acredita também que há um futuro de grande esperança para a língua portuguesa (v. Agostinho da Silva, Nova Renascença, Primavera de 1982), que um dos fulcros desse futuro é o Porto, e que há um número suficiente de bons imunologistas portugueses para aí se começar a construir o futuro pensado do pensador. Na hora em que este número vai para o prelo, sente-se tal como se dizia Saint-Exupery em Dezembro de 1939: "Je ne suis ni vieux ni jeune. Je suis celui qui passe de la jeunesse a la vieillesse. Je suis quelque chose qui se forme. Je suis un vieillissement (Saint Ex, Écrits de Guerre, Gallimard, 1982). Não tem automóvel.

1 comentário:

Amplifi6ar ou simplificar? disse...

A biografia é sempre um trabalho incompleto de transvisão (palavra inventada) de quem a escreve, o que deforma o reflexo do visado. As atmosjeras de ambos fundem-se e criam um sujeito parecido com a personagem principal do filme "A mosca", o que é tremenda e globalmente deteriorante.
Por outro lado, as autobiografias são exercícios de vaidade, parecidos com as entrevistas. Não fui 6u que disse, foi o António Lobo Antunes.
O melhor é não fazer nada disso. O escritor escreve, o cientista descobre (e por aí fora), a comunidade lê, aprende ou não e só isso importa. Temos todos direito às nossas virtudes e defeitos e não vejo ninguém melhor do que isto.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...