A ciência como actividade livre e independente, sem constrangimentos de qualquer ordem, foi sempre mais ou menos uma miragem. Tal como todo o conhecimento, artístico, filosófico ou outro, ela não pode deixar de acontecer - estudar-se, ampliar-se, rever-se... - em circunstâncias concretas. Essas circunstâncias podem, naturalmente, potenciá-la ou condicioná-la.
Cientes disto, os cientistas foram procurando emancipar-se dos poderes que a constrangem, religiosos, por vezes; políticos, por vezes; económicos, por vezes. As sociedades terão percebido isso e dispuserem-se a contribuir, com parte dos seus impostos, para a construção da ciência. Em finais do século XX encontramo-la substancialmente dependente do Estado. E ainda bem, apesar de as questões relacionadas com a sua orientação neste ou naquele sentido, a sua (des)focagem neste ou naquele aspecto por parte do poder político continuarem a colocar-se, como talvez não pudesse deixar de ser.
Mas neste século as coisas mudaram, o Estado, representante de todos nós, diz que tem pouco ou nada a ver com a saúde, a educação, a ciência, as artes, o património, a justiça... tudo isso deve ser entregue a quem saiba e possa. Continuamos a pagar importos mas eles não servem para o que é fundamental: a saúde, a educação, a ciência, a ciência, as artes, o património, a justiça...
Indo directa ao assunto: a ciência (que só o é se for livre e independente face a qualquer poder) será agora (também) subsidiada por quem tenha muito dinheiro e queira obter autorização de residência em Portugal através dos espectaculares e muito neoliberais vistos gold. Trezentos e cinquenta mil euros é a base do que tem de dar para investigação em instituições públicas ou privadas integradas no sistema científico e tecnológico nacional (aqui).
Bem sabemos que o primeiro ensaio destes vistos, "voltado para o betão", fez correr muita tinta e mais do que isso. Diz-se no Público: "temeu-se que os vistos gold abrissem portas a pessoas indesejáveis, o que veio a revelar-se uma preocupação legítima". Ainda não assente o pó desse ensaio, eis que o nosso vice-primeiro ministro anuncia o segundo, este, "voltado para a produção artística, investigação científica e recuperação do património". E remate o jornal "do mal, o menos".
Do mal o menos!?
A ciência guia-se pela constante e desesperante procura da verdade. Nada mais almeja a não ser a verdade. Guiada por padrões éticos, a sua motivação é essa, só essa, nada mais do que essa.
Alguém acredita que tal missão é compreendida e respeitada por quem investe uma data de milhões!?
E ainda que seja compreendida e respeitada, sobre a ciência, qual mulher de César, cairá sempre a suspeita de falta de seriedade. A ciência não pode viver com tal sombra a pairar sobre si.
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
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1 comentário:
Mas vive e continuará a viver, até que os próprios cientistas, singulares e plurais se possam financiar a si mesmos. Será que isso é possível?
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