A ciência é uma coisa, a tecnologia é outra outra. Confundi-las, além de conceptualmente errado, acarreta consequências devastadoras para as pessoas, para o mundo...
O saber é a essência da ciência; a aplicação é a essência da tecnologia. Nem tudo o que sabemos por via da ciência tem aplicação tecnológica, ou não a tem num determinado momento. Aí não se pode ver qualquer problema pois à ciência, antes de se lhe reconhecer valor instrumental, tem de se lhe reconhecer valor intrínseco, valor próprio, valor em si.
Esta afirmação da "ciência pura" não serve, evidentemente, para negar as suas potenciais implicações. Na verdade, há muita coisa que sabemos por via da ciência que nos permite investir em aplicações perfeitamente justificáveis, melhorar a nossa vida é uma delas.
Mas não é tudo (antes fosse): há, nesta relação entre ciência e tecnologia, uma zona sombria. Penso que vivemos tempos em que essa zona se tornou particularmente sombria. Os subsídios, as bolsas, os prémios vão sobretudo para os frutos imediatos que se podem arrancar da ciência, para a tecnologia. O reconhecimento e o financiamento dos institutos/universidades/laboratórios passa por aquilo que produzem em termos tecnológicos, a imprensa é chamada e dá grande destaque sem fazer enquadramento ou reflexão, a sociedade fica reconfortada por ver que os dinheiros foram transformados em... maravilhas.
E que maravilhas são mostradas todos os dias (não falo do que não é mostrado, produzido em laboratórios reservados)! Fico-me só por alguns exemplos de programas de computador de que tenho falado neste blogue: para fazer a leitura da expressão facial de quem anda às compras, para fazer os trabalhos de casa pelos alunos, para substituir professores e poupar dinheiro que devia ser destinado à educação... Tudo, já se vê, acompanhado de um marketing notável, o qual, além de impedir as pessoas de pensarem no que estão a usar ou a serem sujeitas, faz com que elas desejem fortemente usar ou serem sujeitas.
O que disse neste último parágrafo quase perde sentido, parece inócuo, à vista de uma aplicação de que tive conhecimento na passada semana. Trata-se de uma aplicação que se diz capaz de determinar o momento da morte de quem quer saber o momento da sua morte. A publicidade destaca que, através de métodos estatísticos avançados, consegue-se determinar, não o momento aproximado, mas sim o "momento exacto" (aqui e aqui).
Se está no mercado é porque se vai vender... e muito. Isso deveria deixar pelo menos alguns de nós preocupados. Ou já estamos tão adormecidos que achamos tudo normal?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
2 comentários:
Senhora Professora Helena Damião é excelente este seu post.
Ele mostra ao leigo, e de uma forma primorosa, aquilo que é a ciência e o que é a tecnologia.
O De Rerum Natura já aqui fez "eco" das palavras do ex-ministro Mariano Gago "O crescimento da Ciência em Portugal é o maior da Europa" sem por em causa a bárbara afirmação, mas julgo que até em concordância!
O De Rerum Natura foi assim conivente com a mentira grosseira do ex-ministro (porque?!).
Já não o pode fazer agora, porque, "de olhos limpos" vamos-nos socorrer deste post e "exigir" as provas (resultados) a quem afirmar tais disparates.
Obrigado Professora Helena Damião.
Cordialmente,
Estas aplicações não são nem ciência nem tecnologia. São banha da cobra.
Enviar um comentário