quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia de Mello Breyner Andresen e a química


Como disse a Alice Vieira há pouco na rádio, a maior homenagem que se pode fazer a um escritor é lê-lo. É uma leitura de Sophia de Mello Breyner Andresen, procurando novas perspectivas do texto, o que proponho no excerto seguinte do artigo sobre a literatura para jovens publicado no Boletim da SPQ

fotografia de Eduardo Gageiro, 1964
"O Cavaleiro da Dinamarca", datado de 1964, de Sophia de Mello Breyner Andresen, é um livro que nos transporta numa viagem pela Europa até à Terra Santa. Nas suas interacções com a Química, é muito relevante a parte em que o cavaleiro fica doente e o seu tratamento:
Mas já no fim do caminho, a pouca distância de Génova, adoeceu. Foi talvez do sol que o escaldava enquanto cavalgava por vales e montes, ou foi da água que bebeu de um poço onde iam à noite beber os sardões. Tremendo de febre, foi bater à porta dum convento. Os frades que o recolheram tiveram grande trabalho para o salvar, pois o Cavaleiro parecia ter o sangue envenenado e delirava dia e noite. (...) 
Os frades trataram-no com chás de raizes de flores, com pílulas de aloés, com xaropes de mel e vinho quente, com pós misteriosos e emplastros de farinhas e ervas. (...)
Só no século XX começaram a conhecer-se os mecanismos moleculares e químicos das doenças. Mas há algumas dúvidas para as quais ainda não temos respostas simples. Por que razão adoecem mais facilmente as pessoas que apanham sol ou frio? Ou, será que essa afirmação é cientificamente válida e pode ser verificada? No tempo em que viveu o cavaleiro, a vida dos animais e a contaminação das águas eram mistérios explicados com preconceitos e conceitos mágicos. Na verdade, em geral, os sardões não são venenosos e alimentam-se tanto de noite como de dia. E, embora existam alguns lagartos que são mais ou menos venenosos (os dragões de Komodo) estes não contaminam as águas. As águas das fontes do tempo de cavaleiro estariam, de facto, provavelmente, contaminadas, mas a razão era outra.

Nesse tempo as contaminações eram, em geral, devidas a falta de higiene. As grandes epidemias de cólera estavam relacionadas com os esgotos e despejos que contaminavam as fontes e cursos de água, mas, na ausência das informações que a Ciência moderna veio trazer, era comum pensar-se que seriam causadas por bichos peçonhentos, maldade humana, ou castigo divino. Hoje em dia podemos evitar e resolver as contaminação das águas e alimentos, controlar a sua qualidade e tratar as infecções, em grande parte devido à Química.

São também relevantes os remédios dos frades que Sophia de Melo Breyner refere. Trata-se de medicamentos à base de plantas e, na altura, não havia outros que fossem tão eficazes e seguros. Era com certeza melhor para a saúde um chá ou um emplastro de plantas do que uma sangria. E muitos destes tratamentos naturais eram, de facto, eficazes. A casca do salgueiro para as febres, ou o hipericão e os aloés para aumentarem as defesas do organismo. Mas é preciso notar que os tratamentos com produtos naturais têm quase sempre riscos pois muitas plantas são venenosas ou têm efeitos secundários. Também os primeiros medicamentos sintéticos à base de mercúrio, antimónio, ouro, prata, e outros metais, desenvolvidos pelos alquimistas apresentavam bastantes riscos. Com o aparecimento de antibióticos, como a penicilina, antipiréticos como a aspirina, e muitos outros medicamentos, a infecção vulgar de que sofreu, provavelmente, o cavaleiro não seria tão dramática. Os medicamentos desenvolvidos no século XX em conjunto com a higiene e controlo da qualidade das águas e alimentos contribuíram para que a esperança de vida média quase duplicasse no último século.

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